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Os artistas franceses e a estética renascentista

CAPITULO I OS ANJOS MUSICOS EM DEPÓSITO NA CASA-MUSEU

4. Os artistas franceses e a estética renascentista

As últimas décadas do século XV e a primeira metade do século XVI foram para Portugal tempos de extrema riqueza cultural. O período manuelino caracterizou-se por uma miscigenação de tendências estilísticas que são a prova de um país aberto e receptivo à novidade.

Ao mesmo tempo que a estética do gótico final se continuava a praticar e se manteve profundamente ligada ao que nos chegava dos países a Norte da Europa, íamos recebendo os primeiros laivos da arte do Renascimento que, ainda que leves, denunciavam inovação. Mas com os longos anos de predominância das raízes flamengas, esta nova proposta resultante também das boas relações que mantínhamos com Veneza e Florença, foi de lenta aceitação já que só as elites mais ilustradas a conseguiam apreciar. Era uma nova linguagem mais contida nos gestos, que contrariava o dramatismo da estética flamenga, concentrada em atingir as proporções perfeitas do corpo humano típicas do classicismo e que veio impor-se, lentamente, pela mão de artistas e artífices franceses e mais uma vez através da importação de peças com o patrocínio de D. Manuel I e depois de D. João III78.

Desde cedo que Portugal mantinha boas relações comerciais com os portos franceses de Bordéus, Nantes, La Rochelle e Ruão, o que fomentou a vinda de artistas franceses, “a quem, inevitavelmente chegavam as notícias das muitas e grandes obras que então se faziam neste extremo ocidental e também, certamente, pela falta de mão-de-obra especializada que por cá se fazia sentir.”79

.

Também aqui Espanha deve ser tida em conta já que desde o século XIII entraram naquele país “arquitectos e escultores franceses formados em Reims e Amiens”80, que na bagagem traziam a formação base de uma escultura de grande qualidade técnica que emprega uma grande delicadeza no talhe dos seus personagens, tornando-os mais

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ANDRADE, Sérgio Guimarães de – “The sense of images. Anthology”. In The Sense of Images:

Sculpture and Art in Portugal [1300-1500]. Lisboa: Museu Nacional de Arte Antiga, 2000, p.78. 79

DIAS, Pedro – “Portugal e a Arte Francesa na Época dos Descobrimentos”. In No Tempo das Feitorias:

Arte Portuguesa na Época dos Descobrimentos. Lisboa: Museu Nacional de Arte Antiga, 1992, p.211. 80

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próximos da realidade. Humanizando-os. “O sorriso dos rostos, a suave inclinação das cabeças, a graça do gesto e até o movimento dos drapeados estão em acordo com um ar de benevolência, de ternura ou de malícia”81

. Perante esta qualidade, podemos imaginar o peso que os contributos destes artistas possam ter tido no desenvolvimento da escultura nacional, em direcção a uma maior naturalidade.

Contudo, o facto de ser uma arte mais ligada à pedra, e apesar da forte tradição que cidades como Coimbra tinham na produção de escultura naquele material, um dos aspectos que terá retardado a sua aceitação é precisamente o facto de se distanciar tanto daquilo a que a madeira dos flamengos nos habituou. A pedra, um material muito mais pesado, acarretava uma série de problemas que não ajudaram: o transporte dos blocos de pedra, esculpidos ou por esculpir, o peso das peças e um natural acrescento no tempo de execução levou a que fosse recebida com algumas reticências e por isso vemos que durante o século XVI “many sculpted images still speak the medieval language, in line with Portuguese tradicional images sculpting or due to Flemish influence, while other French-inspired pieces show the Renaissance ideas. In other images we find either a compromise between the two languages or a misappropriation of the new aesthetics by Gothic-trained sculptors”82.

Ainda assim, esta nova linguagem conseguiu impor-se pela mão de artistas como Nicolau Chanterene, João de Ruão, Jacques Loquin, Hodart e Francisco Lorete. Coimbra, com a reformulação do Mosteiro de Santa Cruz foi uma vez mais palco de uma actividade artística inovadora, onde estes artistas participaram activamente, dando resposta às encomendas que recebiam, escrevendo a sua história como parte essencial na imposição desta nova linguagem. Dagoberto Markl, além de reconhecer o valor dos artistas referidos, defende que o processo de aceitação da estética renascentista beneficiou da actividade artística que se viveu “antes e simultaneamente”83 em Portugal, já que o trabalho dos artistas estrangeiros vindos do Norte europeu, bem como o surto de importação de peças, “contribuíram para um novo sentido da plasticidade do

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FOCILLON, Henri – Arte do Ocidente. A Idade Média românica e gótica. Lisboa: Editorial Estampa, 1978, p. 257.

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ANDRADE, Sérgio Guimarães de – “The sense of images. Anthology”. In The Sense of Images:

Sculpture and Art in Portugal [1300-1500]. Lisboa: Museu Nacional de Arte Antiga, 2000, p.78. 83

MARKL, Dagoberto – O Renascimento. História da Arte em Portugal. Volume 6. Lisboa: Publicações Alfa, 1986, p.62.

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corpo humano e dos panejamentos”84 e prepararam “a sensibilidade das elites para a assimilação das novidades trazidas pelos gauleses”85

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Chegara a vez do Renascimento e é desta estética que os artistas nacionais vão querer aproximar-se. Na segunda metade do século XVI vive-se já em plena sintonia com esta estética que levou a uma recaída das ligações que durante anos existiram com as regiões do Norte da Europa o que demonstra, uma vez mais a capacidade que Portugal teve em adaptar-se à novidade e dela retirar os melhores proveitos, enriquecendo e, naturalmente, evoluindo.

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MARKL, Dagoberto – O Renascimento. História da Arte em Portugal. Volume 6. Lisboa: Publicações Alfa, 1986, p.62.

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- 62 - CAPÍTULO I - OS ANJOS MÚSICOS EM DEPÓSITO NA CASA-MUSEU

GUERRA JUNQUEIRO

Os Anjos Músicos, objecto deste Relatório de Estágio, fazem parte da colecção que Guerra Junqueiro foi formando ao longo da sua vida e, à sua morte foram deixados pelo poeta ao Museu Nacional de Arte Antiga. Contudo permanecem em depósito na Casa- Museu do escritor, no Porto.

Expostos na “Sala Catedral”, a sua qualidade não deixa dúvidas a quem visitar aquela colecção, tão rica em arte do final da Idade Média.

Sobre eles apenas se aponta uma datação e uma possível proveniência. Estão unicamente identificados os instrumentos que cada um toca.

Quando nos decidimos debruçar sobre estas peças ainda nada sabíamos acerca delas além das informações que estão disponíveis a quem visitar a exposição. Tentar perceber estas esculturas e devolver-lhes a sua identidade tornou-se o nosso objectivo e é neste capítulo que essa intenção será cumprida.

A tendência de todos aqueles que se debruçam no estudo de peças sobre as quais apenas se adivinham alguns elementos, é de querer chegar a conclusões sobre tudo quanto possa ser possível. Origem, datação, função e até autoria fazem parte da lista de objectivos a cumprir. No entanto, raras serão as vezes em que isto é possível e nesses casos é nosso dever construir hipóteses baseadas no que já existe, elaborando comparações formais, estilísticas e iconográficas. As comparações revelam-se um processo indispensável e são de tal forma enriquecedoras que nos dão a perceber determinados aspectos que de outra forma não detectaríamos. As diversas possibilidades que surgem numa primeira análise das peças podem deixar de fazer qualquer sentido mas também podem ganhar novos contornos e conduzir a outras e mais acertadas hipóteses.