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CAPÍTULO 6 – Marcha das Margaridas

6.3. Os Bastidores da V Marcha das Margaridas

6.3.1. Os atravessamentos singulares das reverberações da Marcha das

A.D., aos 35 anos, é coordenadora do movimento de mulheres na cidade de Cândido Godói e está participando da MM pela segunda vez. Ao narrar sua trajetória na marcha, assinala mudanças no seu modo de pensar, sentir e se posicionar em relação à família, de uma edição da marcha para outra. Expressa, também, mudanças atreladas ao processo de articulação e mobilização das pautas e os objetivos do movimento de mulheres.

Essa é a segunda vez que eu vou para marcha hoje e já vou mais tranquila. Mas a primeira foi bem complicado porque eu deixei duas crianças, a guria de 4 anos e o guri de 8, em casa com o pai. E ai, foi difícil a saída, porque deixar duas crianças pequenas… só que eu tinha certeza de que o pai… eles eram muito apegados a ele também… eu tinha certeza de que ele ia cuidar deles muito bem... mas eu sei que é difícil […] Foi bem complicado aquela época porque eu também era um pouco inexperiente no movimento sindical, eu não tinha aquela motivação “o porquê” de uma viagem, para mim era mais uma viagem de conhecer, não estava envolvida assim a fundo no movimento ainda... hoje são mais de dez anos que estou no movimento, que eu estou abraçando a causa, então hoje a marcha para mim é muito diferente o sentido da marcha já é diferente não é mais igual, como a oito anos atrás. Eu estou envolvida, eu sei do que se trata, eu sei das nossas pautas, das lutas, então é uma marcha que tu vai e quer ver as coisas acontecer, quer ver resultado. Há oito anos atrás, parece que não tinha tanto… e também eu nem procurei me informar se tinha resultado ou não sabe… porque ao voltar para casa e ver a família de novo ao teu redor é muito bom… agora eu não vou dizer que não vai dar aquela sensação... mas agora tu já sabe como é... e olha que não é fácil, não é fácil… mas alguém tem que fazer esse trabalho. Alguém tem que ir atrás, tem que lutar! Porque se todas vão pensar, ah eu não vou porque vou deixar os filhos... pensa nesse sentido, nós nunca vamos conseguir alguma coisa… Eu sempre penso… nós temos lá [na

cidade] uma presidente que me incentivou muito a vir para o movimento(…) foi ela que me trouxe para o movimento sindical, foi ela que me fez entrar no movimento eu sempre que consigo me lembrar dela, ela para mim é uma referência de mulher que também deixou os filhos pequenos na época da previdência de 88, ela ficou dez dias em Porto Alegre ocupando (…) pra nós conseguir os nossos direitos, e quatro filhos pequenos ela tinha, então daquela vez foi ela que me pegou para ir para marcha. E ela me disse assim, A.D. não te preocupa eu já viajei muito com as crianças pequenas e o marido sempre cuidou delas… então eu sempre lembro dela com otimismo, que ela teve essa garra, então eu também vou fazer, eu vou fazer a minha parte! Vou tentar fazer o possível para conseguir fazer alguma coisa pelas mulheres e pelos homens também porque todas as conquistas que nós mulheres tivemos os homens também tiveram benefícios, né... Ei, mulheres, continuem na luta!

A.D. ao compartilhar sua trajetória no movimento de mulheres e na segunda viagem na Marcha, expressa as dificuldades e as preocupações com a saída de casa e, como aos poucos, foram sendo vencidas. Expressa, em sua narrativa, um receio em se ausentar e “em passar” o cuidado dos filhos para o marido. Em suas preocupações estão explícitas as dificuldades em enfrentar os discursos normativos de gênero que atribuem, com exclusividade à mulher, o cuidado com os filhos, com a casa e com o marido. Romper as amarras, sutis mas persistentes, de uma normatividade naturalizada de geração à geração tem sido um dos maiores desafios enfrentados no processo de luta das mulheres.

A presença de “uma referência” externa foi de grande importância. O apoio de uma outra mulher que a incentivava a participar do movimento de mulheres relatando suas experiências, transmitiu a ela a segurança que lhe deu forças para participar. Aqui, podemos pensar numa interação de forças em que as duas se fortalecem. A.D. encontra coragem para sair de casa e seguir o exemplo da presidente do sindicado, e a própria presidente encontra mais uma aliada para compartilhar a luta. As duas potencializam forças e compõem estratégias conjuntas de enfrentamento para vencer as amarras normativas

produtoras de opressão. O afastamento do espaço doméstico, pela necessidade das viagens, pode ser considerado uma oportunidade de ao estar “de fora” refletir, avaliar e fortalecer posicionamentos políticos sobre questões “de dentro” do espaço doméstico.

A.D., também, associa uma maior inserção e participação no movimento de mulheres, o que pode ser acompanhado nas significativas mudanças de posição em relação a si e aos outros, entre uma edição e outra da Marcha. Ao ter claros os objetivos da viagem, as pautas e reivindicações, bem como suas expectativas em relação à marcha, modificam-se. Ela manifesta interesse em saber informações e ter o retorno sobre as pautas encaminhadas, as deliberações e os resultados. Com base na narrativa de A.D., se pode pensar nas transformações ocorridas entre a primeira e a segunda marcha, em uma maior sintonia e integração às lutas do movimento de mulheres. Os efeitos da participação política mais intensa produziram experienciafetos na “mulher militante” e, como resultado, o fortalecimento de um “nós” que demarca uma identidade coletiva.

I.P está integrada às atividades da Marcha desde a primeira edição, sendo esta sua sétima ida à Brasília. Aos 57 anos, relata sua experiência no movimento de mulheres e, ao contar sua trajetória, avalia quais os avanços e os desafios desta a quinta edição.

[a minha participação no movimento] aconteceu com o convite de uma coordenadora que nós tínhamos lá em Giruá... Na época eu tinha 32...33 anos…até muitas mulheres diziam: - “o que tu vai fazer... tu ainda é uma menina e está aí em movimento de mulheres?” Mas vai chegar o dia em que a gente também vai conseguir se aposentar... e vai estar na luta por todas e não seria a luta por uma pessoa só. Em 2000, quando começou, então a luta das mulheres, a MM, a gente começou a participar. Só que como eu vim no Grito da Terra Brasil no ano de 2000 [outra grande ação política dos trabalhadores rurais] deixei a vaga para outras mulheres virem. Então, dali em diante todas as outras marchas eu sempre participei. E a gente sempre incentivou para outras mulheres virem participar também, integrar no movimento porque é muito bom, porque

de repente o que não servir para mim, vai servir para os meus filhos, para os meus netos. É para a família, né? Porque a gente que mora na agricultura, né, e pretendo ficar lá até quando puder, né. E, sempre, ensinar o melhor para os filhos, e a luta sindical é uma batalha que não termina por ai, ela sempre tem uma continuidade, porque não tem como parar assim... vai evoluindo, a gente vai, também, tendo que evoluir, não pode parar no tempo. E todos os anos vai mudando. Eu já fui coordenadora regional, sou municipal agora, a gente vai trocando […] Ninguém nasce sabendo a gente vai ganhando experiência no andar da carruagem... e cada vez, tu se sente mais… O sindicado para mim é como uma segunda casa, uma segunda família porque tu te sente bem… claro, eu também faço parte da diretoria, sou a tesoureira a uns quantos anos. Mas a luta sindical sempre continua, porque sempre vem uma nova reivindicação para gente fazer. E a gente tem que ser, tem que estar preparada para preparar aquelas que vêm depois da gente. Porque a gente... tem que sempre dar espaços para as outras (…).

I.P recorda seu momento de inserção no movimento de mulheres ligado à luta pela aposentadoria. Relaciona sua pouca idade a uma luta coletiva de quem vê a perspectiva futura de se aposentar um dia e, portanto, a necessidade de participar dessa ação coletiva. Ela, também, relaciona a oportunidade em participar das atividades do movimento de mulheres a um processo de aprendizagem, como possibilidade de aprender coisas novas para si e para a família.

[apoio da família] sempre! No início, em 2000, foi mais difícil porque eu tinha os filhos pequenos… mas eles sempre diziam “vai, mãe, que a gente dá um jeito.” Essa, que eu espero agora seja a última, porque em casa nós estamos só os dois né. Daí... ficou meu marido sozinho lá e eu aqui, né... Eu acho, não por

não gostar, participar por participar, a gente vai até quando for bem velhinha, mas para viagem eu acho que tem outras pessoas… tem que dar o espaço para outras também. Porque senão essas mais novas, que dizem que “eu não sei se eu vou ficar sempre na lavoura ou não...” elas já têm umas ideias diferentes, mas assim mesmo a gente sempre consegue preparar aquelas que continuam, que ficam na roça e que continuam essa batalha sindical. Eu sempre digo que é muito gratificante a gente estar nesse movimento, e cada marcha, cada encontro, e cada evento que tu promover e que tu fizer sempre tem novidade.

Tanto no caso de A.D. como de I.P pode-se perceber estreitas relações entre as pautas do movimento de mulheres e as relações familiares, sendo atribuídos os ganhos com a participação como benefícios a toda família (filhos e marido). Neste sentido, o apoio da família e a figura do marido mostraram-se fundamentais para o ingresso e participação nas atividades do movimento, em especial as que envolviam viagens.

I.P levanta preocupações com a sucessão rural dentro do movimento de mulheres e como se dará a continuidade com a crescente migração de um número significativo de mulheres, mais jovens, para a cidade em busca de trabalho. É nesse sentido que se torna estratégica a preparação de sucessoras que darão continuidade à luta. As discussões sobre qualificação, formação e capacitação das próximas gerações estão em um dos eixos priorizados pelo movimento sintetizado nas palavras democracia, poder e participação. Essas discussões emergem da constatação e necessidade de ampliação dos espaços políticos pelas mulheres, o que requer mulheres cada vez mais preparadas para assumir esse lugar. Para isso, há necessidade de formação e preparação para que possam se sentir à vontade para se inserirem no processo político de modo qualificado e crítico.

Tanto no caso de A.D. como de I.P, esse espaço foi sendo construído com o apoio, suporte e exemplo de outras mulheres ativistas

e também com o apoio da família. Ao levarem em conta que “ninguém nasce sabendo” e que “a experiência vem com o tempo”, as mulheres sentem-se mais seguras para ocupar esses lugares políticos historicamente negados.

Esse processo de mudanças subjetivas possui estreitas ligações com a história de mobilização realizada por meio da participação na Marcha, para a conquista e avanços as bandeiras de luta. Ao verem suas demandas sendo ouvidas, são fortalecidos o interesse e engajamento de um maior número de mulheres.

[avaliação da marcha]…com certeza houve muitos avanços! Desde o crédito fundiário, minha casa minha vida, são coisas que a quinze e vinte anos atrás não tinha, e se tinha era mais complicado, não era tão acessível como é hoje... até ano passado porque agora vamos dizer está tudo meio parado [...] mas tem muita coisa boa...

Na avaliação feita por I.P sobre os resultados dessa edição da Marcha, verifica-se o reconhecimento de importantes avanços, que se refletem em pautas históricas do movimento como os direitos sociais e previdenciários. Entre eles estão o acesso ao crédito fundiário e ao Programa Minha Casa Minha Vida. Uma das preocupações diz respeito à continuidade desses programas. Sobre o crédito fundiário ela explica:

Ele teve uma paralisação, não estava dando andamento nos projetos e essa foi uma das reivindicações da pauta que nós entregamos para o ministro (ministro da fazenda) para ver se ele libera esse crédito para dar andamento, né... porque, as pessoas querem… porque se vai ter que ter alguém que vai plantar para o futuro, para gente não comer só industrializado, tem que ter alguém para plantar… Temos que ver se vai ter alguém lá fora [campo].

Os programas Crédito Fundiário e Minha Casa Minha Vida foram apontados como programas fundamentais para oportunizar a permanência das pessoas no campo, em especial as mais jovens. Os dois programas visam o financiamento, com juros baixos, para a aquisição de terra, inclusive dentro da própria família que poderia ampliar o tamanho da propriedade e dar continuidade às suas atividades produtivas. E, também, a possibilidade de aquisição da casa própria. Os entraves desses programas, prioritários, configuravam as principais preocupações das mulheres, de modo especial, as relacionadas com a sucessão rural. Esses programas refletem as questões mais significativas para suas vidas entrelaças dos valores de terra, trabalho e família. Se, no passado esses valores eram garantidos através da auto-organização, agora que é o Estado o provedor, é para ele que a luta se direciona. Pode-se avaliar que, mais uma vez, mudam-se os meios, mas os objetivos continuam os mesmos, a tentativa de manutenção da proximidade dos laços familiares e com a terra, próprios de um modo de subjetivação campesina.

6.3.2. (Re)clamar na porteira da fazenda: meu pedaço de terra e minha casa para morar com minha família

O clima na viagem era de expectativa com a chegada e a primeira ação política do movimento que se daria em frente do Ministério da Fazenda (MF). Algumas mulheres expressavam receio do que poderia ocorrer: o “medo do que a gente pode encontrar lá”, verbalizado por uma das mulheres, mostrava a clareza de que entravam em um terreno adverso, de enfrentamento com o Leviatã104. O “medo”,

portanto, estava associado com ao receio de enfrentamento com a polícia, mas não desmobilizava o objetivo prioritário da vinda que era fazer justamente fazer pressão, partir “para luta!”

104 “Leviatã” numa referência a figura monstro utilizada por Thomas Hobbes como

Na frente do MF, nos encontramos com outras mulheres da região sul. O grupo se reuniu e planejou suas estratégias. Percebo que se juntaram ao grupo alguns homens que depois fico sabendo que são da coordenação da Contag e também um outro grupo de mulheres pertencente a juventude rural. À pauta de reivindicação das mulheres, se somam outras pautas transversais, como as de gênero e geração, em especial, as questões associadas à sucessão rural. No MF, a ideia era entrar para falar com o ministro da fazenda e entregar uma carta com as reivindicações das mulheres. Ao chegar, o MF já estava cercado, muitos homens armados faziam o policiamento reforçado, e a porta de entrada estava coberta com lâminas de aço preto. Deputados, representantes da região, vieram receber o grupo e ficaram de fazer a articulação e as tratativas para a entrada. Enquanto esperavam, as mulheres cantaram e discursaram na frente do MF. Era esperado que outras delegações se juntassem a aquele momento, o que não ocorreu. O retorno foi negativo, o ministro não receberia o grupo, então uma comissão de mulheres recebeu autorização para entrar e

protocolar o documento. Na avaliação da ação, o presidente da Contag valorizou a mobilização das mulheres e se avaliou que a ação tinha cumprido seu objetivo, dentro das possibilidades. (Anotações de campo, agosto de 2015).

O cenário político daquele momento estava imerso em um clima de incertezas sobre os rumos da política e da economia. Em todo país, esse foi um ano de mobilizações de massa de grupos, prós e contrários, ao governo federal. Brasília não era diferente e configurava a Esplanada dos Ministérios como palco de mobilizações. Já ao lado esquerdo, próximo ao grupo de mulheres, havia um trio elétrico com um grupo de pessoas que gritavam palavras de ordem contra cortes econômicos. Essa ebulição, dentro e fora nos bastidores de Brasília trazia reverberações que já se faziam sentir na descontinuidade de algumas políticas públicas fruto do ajuste fiscal do governo.

A preocupação das mulheres, da região sul, estava vinculada com as dificuldades de acesso ao crédito fundiário e o aumento de juros que contribuía para aumentar o endividamento das famílias. A preocupação, também, estava relacionada com a sucessão rural. Se não conseguissem ter acesso à terra, os filhos não poderiam continuar na “colônia”. A pauta de reivindicações estava relacionada com o tripé: terra, trabalho e família. Ali, as mulheres estavam lutando pela possibilidade de continuarem no campo. As mulheres estavam em marcha marcando resistência contra a opressão de uma política econômica de aumento de juros e às ameaças de retrocesso aos direitos, já conquistados em lutas anteriores. A pauta de reivindicações, de modo geral, era uma pauta reativa, de posicionamento contrário a política econômica do “Ministro Levy”. Sim, o cenário nacional era povoado por muitas incertezas (Notas de campo, agosto de 2015).

Pode-se afirmar, com base nas narrativas das mulheres, que em certa medida havia um descolamento entre as vaias e as críticas endereçadas ao ministro da fazenda Joaquim Levy, e o apoio ao governo do Partido dos Trabalhadores, historicamente considerado como um aliado dos movimentos sociais.