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O plural e o singular: muitas marchas dentro da Marcha das Margaridas

CAPÍTULO 6 – Marcha das Margaridas

6.4. As Margaridas são iguais? A produção de singularidades e identidades no

6.4.1. O plural e o singular: muitas marchas dentro da Marcha das Margaridas

Outro ponto da avaliação da Marchas foi relativo ao papel e às estratégias políticas de luta do movimento social de mulheres. Na avaliação do processo de organização e estruturação, ampliação de seu poder de ação e mobilização, a Marcha criou esferas representativas (regionais, locais) e de mediação com o Estado. No que pese a pluralidade de movimentos presentes na sua constituição, há uma tentativa em manter relações de autonomia entre os diferentes movimentos e o Estado, unificada pela pactuação e reivindicação de pautas comuns. Daí, emergem as maiores tensões, refletidas de um lado nas aproximações com o Estado na discussão e formulação de políticas públicas e, de outro, no exercício de pressão e reivindicação, próprio do movimento social de luta pelos direitos das mulheres. Na Marcha, essas tensões foram acirradas pelo momento e composição do cenário político nacional, mas os jogos de forças imersos na articulação e tensão são inerentes ao processo histórico de seus quinze anos de existência.

As relações entre a Marcha e o governo federal se transformaram ao longo desses quinze anos. Se a primeira, realizada no ano 2000, marca um posicionamento combativo, com claras divergências à conjuntura política econômica, a partir da segunda, no ano de 2003, se pode acompanhar aproximações com o governo. A fala da coordenadora da Comissão Nacional de Mulheres da Contag, Raimunda Mascena (CFMEA, 2003), reconhecia no governo do presidente Lula um representante dos movimentos sociais, embora reafirmasse a autonomia política da marcha diante do governo.

Ao mesmo tempo em que enfatizava a apresentação e negociação da pauta de reivindicações nos anos de 2007 e 2011, a marcha se consolida como a maior estratégia de ação e mobilização das trabalhadoras do campo. A força da Marcha e do Grito da Terra, se constituem nas principais ações políticas de visibilidade da luta do campo.

Diferente das três últimas edições, o ano de 2015 marca o acontecimento da Marcha das Margaridas em meio à crise política e econômica que assola o país como um todo. Esse cenário compunha-se de muitas incertezas, ameaças de retrocesso de direitos conquistados, tensionamento político e instabilidade da permanência da presidente

Dilma Rousseff no governo naquele momento, ajustes na política econômica, estagnação e corte de verbas dos programas de acesso a crédito e moradia, prioritários para agricultura familiar.

A gente quer que tudo que a gente já conquistou nesse tempo não tenha o retrocesso. Como até a própria aposentadoria que eles tão querendo mudar, a gente não quer isso! Porque uma coisa que com tanta luta e caminhada a gente conseguiu, que não pare e tenha um retrocesso, ao menos fique como está então, mas não volte atrás… porque tem tanta coisa boa: tem o auxílio-maternidade, tem o acidente de trabalho, coisa que no passado a gente não tinha e hoje tem… a gente não quer isso volte atrás, isso tem que seguir em frente… e assim sempre tem, tu nunca para sempre vai ter o que para lutar para não tirar… a luta continua e para o bem da nossa sociedade, em especial, nós mulheres agricultoras e trabalhadoras rurais.(I.P)

Ao participar da marcha e acompanhar esse jogo de tensões me questionava: Qual será a posição de cada mulher a partir das posições tomadas pela coordenação da Marcha diante dessa conjuntura de crise? Será que todas concordaram com suas dirigentes nacionais? E mais, qual papel do movimento social daqui para frente? Tendo presente a complexidade dessas questões que, certamente, têm sido objeto de muitas discussões e teorizações nos últimos tempos. Não é meu objetivo aqui aprofundar considerações. Ao sinalizar esses questionamentos, busco pensar a estratégia da Marcha a partir das singularidades das mulheres que se deslocam de várias partes de país para colocar em ação e conjugar o verbo potencializar.

O desconforto que as mulheres expressaram ao acompanhar vários momentos de manifestações coletivas pró-Dilma representa um aspecto dessa singularidade, na unidade da Marcha. O coro forte das vozes com o nome de Dilma, no estádio Mané Garrincha, sinalizava o apoio de grande parte das mulheres ali presentes, representando as cinco regiões do Brasil. Entretanto, chamou minha atenção algo que destoava do comportamento predominante no estádio em relação ao grupo de mulheres que acompanhei. Percebi um certo incômodo com a cena política pró-governo que se organizava no calor do momento. As mulheres apresentavam críticas ao uso político das mobilizações pró-

governo no contexto da Marcha, pois entendiam que o movimento perdia muito e deixava de lado seu papel de combatividade na luta por seus direitos.

A política está todo dia na nossa vida, em qualquer coisa que a gente faça tem política. Não é só política dos partidos. A gente, como movimento social, tem que tomar um lado, aí apoia a presidenta e esse governo. Mas mais do que defender um governo, a gente veio aqui para lutar pelos direitos das mulheres (S.E.).

Nessa avaliação, ao colocar a defesa do governo e da presidente Dilma em primeiro lugar, a pauta de reivindicações do movimento de mulheres trabalhadoras rurais passou para um segundo plano. Assim, as mulheres começaram a questionar qual seria o papel do movimento frente ao governo. E, a partir daí, qual deveria ser a postura do coletivo da marcha. O incômodo expresso pelas mulheres suscita o questionamento e a problematização tanto no que diz respeito às relações entre movimentos sociais e Estado, como em relação ao próprio significado de “política”.

Portanto, quais seriam as aproximações possíveis entre o Movimento e governo? Como pode ser pensado o posicionamento pró e/ou contra governo? Em que medida a priorização do apoio ao governo Dilma está pautada numa compreensão essencialista de gênero, identificadas pelo discurso de “defesa da primeira mulher presidente”? Como posições dissonantes são abordadas no movimento? Em que medida a Marcha das Margaridas perdeu sua autonomia, ao se aproximar do governo para discussão e formulação de políticas públicas? Quais as relações de forças presentes na identificação dos movimentos sociais com o governo e a “condescendência” e postura menos combativa diante das dificuldades de manutenção e avanço das pautas de reivindicação do movimento de mulheres rurais? Por outro lado, tendo presente o contexto de crise, não seria esperado o apoio “incondicional” à presidente Dilma? E ao dizer “a política está todo dia na nossa vida” não estaria aí um questionamento da política como disputa pelo poder de Estado em detrimento da ação política diária realizada por todas em seus espaços de vida?

Entre as justificativas para o apoio à ex-presidenta Dilma, muitas estavam baseadas numa compreensão essencialista de gênero e, assim, no fato dela ser “mulher”, “mãe”, como condições que a tornariam mais capaz de governar o país. Por outro lado, o incômodo manifestado pelas mulheres da região sul pode estar ligado ao posicionamento contrário a uma política econômica de cortes e retrocesso de direitos conquistados e do aumento do custo de vida independente de quem esteja no governo. A discussão se voltava para os objetivos da vinda do grupo à Brasília e da necessidade de pressionar o governo para o encaminhamento das pautas das mulheres.

Certamente essas são questões que merecem uma análise mais aprofundada e que escapam aos objetivos deste trabalho. No entanto, é possível verificar aqui nesse comportamento com suas vozes dissonantes e nos questionamentos suscitados o quanto de diferenças e singularidades existe e compõe estes espaços como dos movimentos sociais e políticos que se caracterizam pela identidade e unidade de propósitos.

No que pese os desafios, os vários tensionamentos e o panorama de (des)esperança e as discussões acionadas pela Marcha foram propulsoras de uma identidade coletiva, ao unificar as reivindicações das instâncias locais e regionais como estratégias de força e visibilidade.

Os efeitos dessa experiência da marcha produziram os contornos da mulher trabalhadora rural, como mulher lutadora, aguerrida, inspirada em Margarida Alves e no lema: somos todas margaridas! A compreensão essencialista é rompida pelo cruzamento das especificidades, das características e demandas regionais de norte a sul, das mulheres do campo, floresta das águas. Assim, a pactuação da estratégia da Marcha também diz da formulação de uma identidade coletiva e de uma singularidade subjetiva.

Trago para pensar uma imagem de uma cena vivida em meio à feira de venda de produtos, em um dos dias da marcha. Circulava eu entre as inúmeras barracas de venda de produtos de artesanato, industrializados e de alimentos, mesmo com o calor e sol forte muitas pessoas circulavam por esse local. Em meio a um mar de gente, uma cena chama minha atenção. Trajados com a camiseta e bandeira da MM, caminhavam de mãos dadas, Ana e seu marido com seus mais de setenta anos de idade. Começamos a conversar, ela me conta que viajou de

Minas Gerais com o marido, numa caravana de mais quatro ônibus. Pergunto a ela sobre suas motivações em participar da Marcha, ao que ela responde: “Para adquirir melhora sobre a água, para manerar [controlar o custo] mais a conta de luz porque a conta de luz está muito alta, sabe e mais as coisas que nós queremos, porque nós somos trabalhadores e a gente só quer que Deus ajude que abaixe os preços e a conta de luz está me arrasando… o mais para mim é água e luz”.

O encontro e a conversa com Ana e seu marido expressa muito das diferentes histórias e múltiplas motivações de cada uma que se organiza e sai em marcha. Nesse sentido que o lema da primeira Marcha, “Contra a Fome, Pobreza e Violência Sexista” permanece atual. Cada uma das participantes, cada família é um universo, assim como esse enorme país é diverso, múltiplo, suas desigualdades são múltiplas. Se em alguns lugares a demanda é o preço da luz, ou o acesso à água ou um pedaço de terra, em outras, como no Sul, por exemplo, a demanda é por crédito para compra de terra e o financiamento de projetos produtivos. Na marcha se somam muitas vidas, e muitas necessidades.

As demandas evocadas por Ana, por exemplo, se somam à especificidade das demandas das mulheres do norte, centro-oeste, nordeste, sudeste e sul presentes na V Marcha das Margaridas:

Norte, acesso à água potável na Amazônia; programas de enfrentamento à violência e ao tráfico de pessoas; proteção de lideranças e suas famílias que lutam pelo direito à terra; rever a instalação de grandes obras e avaliar, junto com comunidades locais e tradicionais, os impactos ambientais e sociais; programas de incentivo à produção agroecológica e de produtos da cultura amazônica.

Centro oeste, preocupação com a contaminação humana e ambiental pelo uso de agrotóxicos, solicitação da criação de medidas de enfrentamento, restrições, fiscalização e proibição do uso de agrotóxicos; demarcação de terras indígenas; enfrentamento à violência e combate ao tráfico de mulheres; expansão da Política Nacional de Agroecologia; política de incentivo à economia solidária e o fortalecimento da agricultura familiar; fiscalização do processo de trabalho em grandes propriedades agropecuárias; implantação da política de reforma agrária.

Nordeste, aprovação e implementação da Política Nacional de Convivência com o Semiárido; incentivo a projetos de produção de

energia solar e a formas alternativas de tecnologias sociais de geração de energia; ampliação da política de quintais produtivos através de fomento, protagonizados pelas mulheres, com ênfase com reuso de água, horticultura, fruticultura, plantas medicinais e criação de pequenos animais; ampliação dos programas P1 +2 (uma terra, duas águas), sementes do Semiárido (banco de sementes).

Sudeste, preocupação com a utilização de grande quantidade de água potável por empresas mineradoras, implementação de programas de captação e armazenamento de água e de campanhas na região sobre consumo consciente da água, cancelamento de licenças de empresas de metais pelos impactos ambientais e sociais que têm causado nas regiões. Sul, incentivo às práticas de agroecologia; ampliação do acesso ao crédito do PRONAF mulher; criação de banco de sementes “criolas”; criação de zonas livres de agrotóxico e transgênicos e obrigatoriedade da rotulação dos produtos transgênicos, campanhas preventivas contra ao uso de agrotóxicos, divulgação de pesquisas sobre correlação entre alimentos produzidos com os agrotóxicos e o aparecimento de doenças como câncer.

Dentro dessas propostas pactuadas da região sul, pode-se verificar as particularidades e especificidades das demandas das mulheres da região noroeste do estado em relação às demais, o que não quer dizer que não existam pautas comuns. A especificidade das demandas da região sul expressa as necessidades advindas de modos de vida ligados a todo o conjunto de fatores apresentados nessa pesquisa: a herança cultural de terra, trabalho e família. Leva em conta as preocupações das mulheres com a sucessão rural, em garantir o acesso à terra e moradia para que os filhos possam permanecer no campo, se assim o desejarem.

Diante dessa diversidade e a especificidade de demandas regionais e locais se pode afirmar a existência de muitas marchas unidas à Marcha das Margaridas, assim como da singularidade de cada Margarida que formam os milhares presentes à marcha em Brasília. A maior motivação, em participar da marcha, é sentir a força de uma potência de luta em cada uma das mulheres ali presente.

No próximo capítulo apresento a ideias trabalhadas na tese a partir de uma reflexão final sobre as Narrativas de si em movimento: