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CAPÍTULO 4: OS DEPOIMENTOS – COMIDA ITALIANA NA PONTA DA

4.9 ANÁLISE 117

4.9.2 Os cardápios das cantinas e suas variáveis 119

A unidade lexical cantina criou o adjetivo cantineiro/a, que se aplica aos cardápios e ao tipo de comida que analisaremos neste item.

O chef de cozinha e autor do livro Cozinha Cantineira Paulistana (1996), Allan Vila Espejo, considera a cozinha cantineira uma espécie de cartão de visita da cidade de São Paulo e afirma: “Todas as cantinas paulistanas mantêm um cardápio similar em 90% dos itens”. Nesse aspecto, o autor se refere à maneira como os menus são organizados e as receitas, listadas. A começar pelo couvert, item que na prática 143 Cf. seção 4.8. 144 Bolinho de arroz. 145

120 italiana corresponde ao antipasto. Nas cantinas, esse início de refeição normalmente inclui pão, azeitonas temperadas com alho e orégano, manteiga e sardela.146 No elenco dos pratos, invariavelmente surgem o filé à parmegiana e massas como a lasanha.

O fusilli é outro prato onipresente nos cardápios das cantinas de São Paulo e os proprietários desses estabelecimentos se orgulham do preparo artesanal. A confusão do entrevistado Donato Rapolli, da Cantina Capuano, a respeito do formato, conforme observamos na seção 4.1, tem suas razões. Uma delas reside no fato de que a unidade lexical italiana fusilli foi decalcada para o português como ‘parafuso’, sobretudo nas marcas industrializadas brasileiras. Numa pesquisa rápida na web, por exemplo, a busca da palavra fusilli retornou mais de um milhão de resultados com a imagem da massa em forma de parafuso (bem mais do que as 247 mil ocorrências para as palavras ‘macarrão parafuso’). Ao acrescentarmos o adjetivo ‘artesanal’ na busca do termo fusilli, surge o formato modelado à mão.

Figura 24 Os dois tipos de fusilli: em forma de parafuso e modelado à mão (foto 1 (à esquerda): Bigstock; foto 2: Silvana Azevedo)

Vejamos como algumas obras de referência italianas definem esse tipo de massa. De acordo com a Grande enciclopedia illustrata della gastronomia, fusilli tem origem meridional, formato em espiral, pode ser longa ou curta, seca ou fresca. Quando industrializada, ganha a forma de um parafuso. Na versão fresca, as tiras de massa são modeladas uma a uma, com o auxílio de uma haste de ferro. O Guida gourmet Itália a define como um produto típico das regiões do Sul do país e a

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121 descreve como uma massa feita em casa, em formato espiral, podendo ser modelada até mesmo com o ferrinho do guarda-chuva.

Em consulta a livros de receitas italianos, observamos que em Le 365 migliori ricette della cucina italiana (CAMBI, 2005, p. 41-42) o fusilli al ragu cilentano recebe o nome da localidade de onde provém (Cilentano pertence à Campânia).147 O modo de preparo dessa receita é artesanal e a publicação recomenda o uso de um ferrinho para modelar a massa em forma de espiral. Já em L’Italia del gusto (MALERBA, 2007, p. 367), que compreende 500 pratos regionais, consta o fusilli al gusto di cedro, receita com base na massa industrializada, em formato de parafuso, classificada como um prato da cozinha da Calábria.148

Com algumas informações históricas, Carluccio e Carluccio (2006) atribuem a origem do fusilli artesanal à Campânia, onde, provavelmente, seria preparado com sêmola. Ainda de acordo com o mesmo autor, hoje essa massa é também feita à mão na Puglia. A versão seca, na forma de parafuso, é encontrada em toda a Itália. Desse modo, concluímos que as duas versões – a fresca artesanal e a seca industrializada – podem ser denominadas fusilli.

A presença expressiva do fusilli nas cantinas ocorre em função da forte influência dos imigrantes que vieram do Sul da Itália, sobretudo os calabreses e napolitanos. Uma das combinações mais usuais dessa massa traduz essa convivência entre italianos oriundos dessas duas localidades: fusilli ao molho de linguiça calabresa.

Nem sempre há muita lógica nas denominações dos pratos cantineiros. Também na Cantina Capuano encontramos o cabrito à pizzaiola. A responsável pela cozinha do restaurante, Elisabetta Luisi Gagliardi, assim definiu a receita: “É o cabrito cortado em pedaços, feito com tomate fresco, temperos, cebola, alho, salsinha, todos os temperos que a gente usa na cozinha, e vinho tinto”. Quando questionada sobre a razão do nome, tivemos como resposta: “Porque é ensopado”. Em uma pesquisa rápida na internet, encontramos 89.500 resultados referentes ao termo ‘à pizzaiola’. Ao verificarmos alguns, aleatoriamente, constatamos o uso do tomate como ingrediente comum, ao lado do orégano, que também aparece com frequência. Isso

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Com molho à base de carne suína e de vitelo. 148

122 leva a crer que a denominação à pizzaiola, no Brasil, remete aos ingredientes mais usados nas coberturas das pizzas.

De acordo com Baccin (2003), a terminologia alimentar tem um caráter mais criativo do que científico e a escolha lexical procura despertar a fantasia e os sentidos. “Desse modo, o criador do prato vê o resultado como uma obra de arte e confere-lhe um nome também artístico” (p. 143). Podemos citar como exemplo o ‘capelete à romanesca’, que consiste em uma massa recheada de carne, servida com uma porção generosa de molho à base de creme de leite, presunto, cogumelo-de-paris em conserva e ervilhas. O nome do prato é fruto da capacidade criativa do seu idealizador, Giovanni Bruno.149 De acordo com sua justificativa, à romanesca remete à Roma, pois a pessoa que inspirou a receita tinha provado algo parecido na capital do Lácio. Vale ressaltar que nossa apuração não encontrou nada similar no receituário de Roma, nem nas pesquisas in loco e tampouco nos livros de receitas romanos. Em uma busca na web em sites italianos, o termo aparece como adjetivo que caracteriza alguém ou alguma coisa referente a Roma. Ou seja, podemos dizer que se trata de uma massa da cozinha paulistana, criada sob um dos signos da culinária italiana: o macarrão.

Frosini (2009) analisa que, embora a língua da gastronomia se enriqueça de estrangeirismos, um contingente significativo de palavras italianas adquiriu uma circulação internacional (como a pizza), mas isso não impediu adaptações e deformidades; ao contrário, as favoreceram. O polpettone é um exemplo. De acordo com a Grande Enciclopedia Illustrata della Gastronomia, o polpettone tem a preparação da massa similar ao da polpetta e a forma de um grosso salame cozido ou assado. A mesma publicação traz receitas com carne de vitela, frango e atum, diferentemente da versão paulistana, empanada e frita, que se consagrou nas cantinas. Conforme visto na seção 4.2, o polpettone conhecido pelos brasileiros tem o formato de um hambúrguer grande, achatado, recheado de muçarela e coberto por uma generosa camada de molho de tomate e queijo parmesão ralado. Essa forma foi apresentada ao paulistano na década de 1970, no Jardim de Napoli, virou referência e entrou para os cardápios de outros restaurantes da cidade, sobretudo para os das cantinas. Antonio Buonerba, que nasceu em São Paulo, afirmou ter se inspirado na polpetta para desenvolver a sua receita e fez uso de uma unidade presente no léxico

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123 culinário da Itália, com adaptações no nível semântico, que, curiosamente, não se refletiu nos dicionários.

Diferentemente de cantina, que nos dicionários brasileiros recebeu acepções adaptadas ao contexto nacional, o polpettone manteve o significado italiano. Caturegli (2011), por exemplo, o define como receita clássica de Bolonha, que combina carnes e, dependendo da região, pode levar frango ou peixe. Algranti (2000) explica que é um rolo de carne recheado, e no dicionário Aulete digital consta uma única acepção: “Rolo de carne moída, com ou sem outros ingredientes no recheio”.150 Ciente de que o polpettone existe na Itália, onde, contudo, é concebido de forma diferente, Antonio Buonerba se defendeu: “o meu é polpettone à parmegiana”.

Em São Paulo, aliás, o adjetivo parmigiana está mais associado a um tipo de comida do que a uma localidade na Itália – no caso Parma, na Emília Romanha. Tanto que houve uma adaptação ortográfica parcial da unidade lexical parmigiana (palavra pertencente ao acervo lexical italiano, que remete à Parma), com a substituição da vogal i (no termo de origem italiana) pela vogal e (na versão da língua portuguesa), para a palavra se adequar à língua receptora. As acepções contidas nos dicionários nacionais espelham essa afirmação. O Aulete define ‘parmegiana’ (registrado com “e”) como um molho que contém queijo e tomate (‘espaguete à parmegiana’, ‘nhoque à parmegiana’). Algranti (2000) informa que, no Brasil, a expressão ‘parmegiana’ (também com “e”) refere-se a filé empanado com farinha de trigo e ovos, com cobertura de molho de tomate e muçarela ou queijo parmesão ralado, gratinado ao forno. Por mais que essa definição retrate o filé à parmegiana que os brasileiros conhecem, diverge das referências italianas.

O dicionário Zingarelli (2008), por exemplo, define a expressão como um preparo de verdura empanada e frita, com tomate e parmesão gratinado e, às vezes, muçarela. Explicação similar é encontrada na Grande enciclopedia illustrata della

gastronomia, que atribui o nome parmigiana ao uso do queijo parmesão e se refere a

uma preparação típica de algumas regiões da Itália meridional, com berinjela ou abobrinha. A mesma enciclopédia define como alla parmigiana a preparação ‘à moda de Parma’, quase sempre finalizada com queijo parmesão.

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124 Porém, ao se referir ao prato de berinjelas à parmigiana no livro Literatura &

Gastronomia – Um Casamento Perfeito, o escritor e professor Fabiano Dalla Bona

explica que o nome não deriva do queijo originário da cidade de Parma, mas, sim, da italianização da palavra dialetal siciliana parmiciana. “A parmiciana é o conjunto de listras de madeira que compõem uma persiana, e que são colocadas umas sobre as outras, como as fatias de berinjela no preparo do prato” (BONA, 2005, p. 40).

Independentemente do berço do parmigiana na Itália, uma coisa é certa: a combinação de filé ou bife à parmegiana nasceu em solo paulistano. “Quem for a Parma, cidade da Emília Romanha, e pedir um, vai quebrar a cara”, diz o jornalista e escritor J.A. Dias Lopes, no caderno Paladar, do jornal O Estado de S. Paulo.151 Dias Lopes, um estudioso da gastronomia, afirma que o prato teria nascido em uma das cantinas do Brás. O bairro recebeu imigrantes italianos que adaptavam a culinária do sul da Itália aos ingredientes disponíveis em São Paulo. Nesse contexto, vale citar que um dos estranhamentos relatados pelos imigrantes que aqui chegaram estava na falta de hábito do paulistano de comer verduras. Portanto, é muito possível que a receita de berinjela à parmegiana tenha sido a “mãe” do bife à parmegiana.

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