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3.1 As manifestações do inconsciente

3.1.2 Os chistes

Segundo o dicionário Houassis (2001) o chiste remete à qualidade do que é engraçado; comicidade, graça, composição poética com referências espirituosas. Em alemão, deriva da palavra Wits, que significa gracejo. Para explicar o tal fenômeno, Freud publica em 1905 o livro “Os chistes e sua relação com o inconsciente” em que tentava esclarecer que por trás do cômico havia algo que merecia atenção. No livro, o psicanalista define esse fenômeno como uma brecha por onde o inconsciente escapa – assim como os atos falhos – ou seja, utilizado para dizer, em forma de brincadeira, o que realmente deseja.

Freud (1905) adota a hipótese de que os chistes são formados na pré-consciência, que escapa à revisão do inconsciente e o resultado disso é a captura pela percepção consciente. Assim, é um engodo afirmar que “fazemos” um chiste – expressão popular – pois tem em alto grau a característica de ser uma noção que ocorre involuntariamente. Não sabemos quando irá acontecer,

não estão disponíveis em nossa memória quando precisamos deles; mas de outras vezes aparecem, como que involuntariamente, em pontos no nosso curso de pensamentos onde não vemos sua relevância. Estas são, novamente, apenas pequenas características indicativas de sua origem no inconsciente (FREUD, 1905, p. 110).

Na ocasião dos estudos sobre os chistes, Freud (1905) recorreu a vários estudiosos que se debruçaram sobre o tema, entre o quais: Lipps, Fischer e Heymans. Traziam como possíveis definições: a habilidade de encontrar similaridades em coisas em que não há semelhanças; descobrir semelhanças; habilidade de fundir várias ideias distintas umas das outras; conexão de duas ideias que não têm similaridade.

Para exemplificar como ocorre um chiste, Freud (1905) toma a narrativa de Heinrich Heine, intitulada de “Os banhos de Lucca” para destacar a tirada espirituosa da palavra “familionariamente”. A palavra é a condensação das palavras ‘familiar’ e ‘milionário’ que, à primeira vista, não têm relação. No entanto, ganha sentido quando levada às condições de produção, ou seja, quanto o contexto de sua formulação, que resulta no efeito compelidor do riso no chiste.

Lacan (1999), afirma que a argumentação de Freud gira em torno da técnica do chiste como técnica de linguagem. Se o que surge de sentido e significação no chiste parece-lhe digno de aproximação ao inconsciente, isso se fundamenta apenas em sua função de prazer. No que tange essa afirmação, entendemos o chiste como uma manifestação do inconsciente e, logo, o escape de um desejo recalcado. Pautado nessa reflexão, Lacan (1999) complementa que o essencial da tirada espirituosa,

[...] gira, sempre e unicamente, em torno de analogias estruturais que só são concebíveis no plano linguístico, e que manifestam entre o aspecto técnico ou verbal do chiste e os mecanismos próprios do inconsciente, que Freud descobriu sob nomes diversos, tais como condensação e deslocamento (LACAN, 1999, p. 31).

Condensação está relacionado à mistura e ou modificação na palavra que, como já expusemos, não têm relação nenhuma entre si, mas, quando levado em consideração o contexto em que foi formulado, emana sentido. Em outras palavras, efetua a fusão de diversas ideias do pensamento inconsciente para materializar uma única imagem no pensamento manifesto, consciente (ROUDINESCO; PLON, 1998).

Lacan, no Seminário intitulado de “As formações do inconsciente” (1999) interpreta esse chiste acionando a teoria do significante. Nela, a condensação é vista como uma metáfora que se presentifica onde emerge um sentido a partir de um “absurdo”, do estranho. Surge um

sentido de uma palavra estranha, como o “familionário”, o de ter familiaridade com um milionário.

Já o ‘deslocamento’ é um processo psíquico inconsciente que, por meio de um deslize associativo, modifica elementos essenciais de um conteúdo adormecido em detalhes secundários de um conteúdo manifesto. Para exemplificar a noção de deslocamento, Freud utiliza o diálogo entre judeus contido na narrativa “bezerro de ouro”, quando um inquiri o outro formulando a expressão “tomou um banho”. Não haveria deslocamento chistoso se a pergunta fosse: você se banhou? De acordo com Freud (1905, p. 36) a verbalização da pergunta admite um duplo sentido e o chiste – por deslocamento – é produzido pela resposta que descarta o sentido pretendido pelo questionador, capturando o significado subsidiário.

Para Lacan (1999), o deslocamento tem relação com a metonímia ao retomar os esquecimentos de nomes próprios narrados por Freud que é um lapso, uma vez que o nome esquecido caiu no esquecimento e foi substituído por outro de grafia parecida: Signorelli por Botticelli e Boltraffio.

É importante destacar a importância do significante quando nos posicionamos em compreender os mecanismos de “escape” do inconsciente. Sabemos que o inconsciente manifesta-se, é estruturado por meio/como uma linguagem. Desse modo, devemos nos atentar ao plano significante estrito, pois é por meio da palavra, da linguagem, de um significante, que o chiste manifesta-se e, portanto, revela uma ideia recalcada no inconsciente. Para isso, recorremos a Lacan (1999) quando aciona as funções de metáfora e metonímia sendo as funções essenciais do significante, na medida em que é por elas que o arado do significante sulca no real o significado, evoca-o.

Uma palavra ou expressão – um significante – pode ser substituída por outra remetendo ao mesmo sentido, no entanto, o que nos cabe é entender como essas substituições ocorrem, sabendo que em um chiste, uma palavra ou expressão pode ser substituída por outra que não tem relação nenhuma.

Segundo Lacan (1999), as características de um significante são as da existência de uma cadeia articulada que, tende a formar grupos fechados, ou seja, formados de uma série de anéis que se prendem uns aos outros para construir cadeias na qual se prendem a outras cadeias à maneira de anéis. Subentende-se que as ligações do significante comportam duas faces em que o psicanalista francês nomeou de ‘combinação’, ‘continuidade’ e ‘concatenação da cadeia’ (metáfora); e a outra, ‘substituição’ (metonímia). Esta última, segundo Lacan (1999), implica nas possibilidades de mudança em cada cadeia, quebrando, assim, a linearidade esperada entre significante e significado.

Nessa direção, a característica da metáfora é a possibilidade de substituição, nela vincula-se a “função conferida” a um significante, no que esse significante substitui um outro numa cadeia significante. Já a metonímia, nas palavras de Lacan (1999, p. 78) consiste na “função assumida” por um significante ‘S’ no que ele se relaciona com outro significante na continuidade da cadeia significante.

Importante destacarmos que quando Lacan (1999) aciona os termos significado e significante, remete à subversão que realizou no algoritmo cunhado por Ferdinand Saussure. Para Saussure (2006) o signo linguístico é uma entidade psíquica que une não uma coisa a uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica. Esta imagem “[...] não é o som material, coisa puramente física, mas a impressão (empreinte) psíquica desse som, a representação que dele nos dá o testemunho de nossos sentidos [...]” (SAUSSURE, 2006, p. 80).

Dessa forma, concebe o signo linguístico como um mecanismo de duas faces: o significado que remete ao conceito e o significante que aponta para a imagem acústica. Vejamos o esquema elaborado por Saussure (2006) exemplificado na Figura 7:

Figura 7 – Exemplificação do esquema saussuriano do signo linguístico

Fonte: Google Imagens.9

Contudo, Lacan (1998) questiona a participação do sujeito que produz o signo linguístico. Um sujeito clivado, submetido aos desejos do inconsciente, à linguagem, à função simbólica e, portanto, fadado ao equívoco. Assim, toma o algoritmo saussuriano e propõe a diferença entre o significante para a linguística e para a Psicanálise (LONGO, 2011).

Na concepção lacaniana o significante é destituído de sua função representativa, descosturando-o do significado e, dessa forma, passa a ser autônomo. Inverte as posições do significante, grafado com ‘S’ maiúsculo, pois sua presença na fala é predominante, isto é, o sujeito que fala move-se de significante em significante, ou seja, sua fala mostra e tampona, carregando toda ordem de significações, sem conseguir capturar todos os sentidos daquilo que diz, pois está alienada ao sentido daquilo que propõe, a um único sentido.

9 Disponível em: <http://meuamor-meuodio.blogspot.com/2009/11/signo-significado-e-significante.html>.

O significado (grafado com ‘s’ minúsculo) situado na fórmula lacaniana abaixo da barra indica que raramente o falante consegue atingir o sentido do que fala, a não ser por meio de ações imprevisíveis das manifestações do inconsciente (sonho, atos falhos, sintoma, chiste).

Da descostura entre significante e significado emerge a relação destoante entre esses mecanismos, cuja barra representa a impossibilidade, a resistência de associação. Indica também a troca de posições entre os termos. Esse deslizamento é o que Lacan concebe como metonímia, a possibilidade de encontrar autonomia do significante no inconsciente, ou seja, o falante deixa escapar uma verdade de si por meio da fala.

Isto posto, direcionando-nos a um ilusório fechamento e após discussões sobre os atos falhos – que englobam os lapsos de escrita, de fala, os extravios – e os chistes, pressupomos que remetem à presença de uma ausência, de um desconhecimento existente que vem à tona por meio de uma falha do sistema consciente. Segundo Garcia-Roza (2009), esses fenômenos lacunares são indicadores da ordem inconsciente que se insinua nas lacunas e pelos silêncios da ordem consciente. O inconsciente é outra estrutura, diferente da consciência, mas igualmente inteligível.

Como já apontamos anteriormente, as manifestações do inconsciente indicam um desejo recalcado, desejo que remete à falta de alguma coisa que desejamos, mas que não conseguimos realizar, ou algum fator nos impede devido ao nosso eu, que exerce forte controle sobre nossa consciência, recalcando o desejado. Trata-se, portanto, segundo Jorge (2008, p. 66) da “ação do recalcamento do desejo inconsciente, inaceitável de algum modo pela instância do eu, desejo recalcado que retorna, ainda que deformado sob a ação da censura”.

Essas manifestações, como já expusemos, tornam-se equivalentes a um sintoma, na medida em que é um compromisso entre a intenção consciente do sujeito e seu desejo inconsciente (ROUDINESCO; PLON, 1998). Nessa direção, passaremos a outra seção na qual examinaremos o sujeito, morada da(s) causa(s) e, desse modo, tais causas que têm em sua gênese, o desejo.