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PARTE I: Lentes da análise

CAPÍTULO 1: Gestão do trabalho pelo olhar da atividade

1.1. Trabalhar é gerir: contribuições da ergonomia da atividade

1.1.3. Os coletivos de trabalho para a ergonomia da atividade

A ideia de coletivos de trabalho, como dissemos anteriormente, nos parece fundamental para a ergonomia da atividade. Sua importância emerge dos estudos sobre a atividade de regulação, que revelaram que essa instância é decisiva para o sucesso da ação. Apesar disso, a preocupação de definir esse conceito surgiu tardiamente entre os ergonomistas. Em 1996, Milton Athayde alertou:

Tem sido através da investigação acerca das modalidades de comunicação que a Ergonomia aproximou-se da dimensão coletiva de trabalho. [...] se quisermos avançar na “démarche” ergonômica da dimensão coletiva da atividade de trabalho, parece mais fecundo partir da constatação de fragilidade teórica e metodológica com relação a esta dimensão (logo, com relação ao entendimento mesmo da vida no trabalho). É consensual o fato de que a Ergonomia, tem se dedicado essencialmente ao estudo dos aspectos individuais do trabalho (LEPLAT, 1992). (p. 61/62)9

Apesar do alerta, pertinente, Athayde (1996) conseguiu “pinçar” entre os estudos da ergonomia desenvolvidos até então, apontamentos que, mesmo sem definir um conceito de coletivos de trabalho, representavam avanços na compreensão dessa dimensão. Outros autores se somaram a esse esforço de sistematizar um olhar da ergonomia para a dimensão coletiva, permitindo alcançar um patamar onde hoje dificilmente um estudo em ergonomia da atividade deixa de contemplar essa questão.

Trazemos a seguir um conjunto de ideias sobre o tema, agrupadas em três tópicos: uma definição de coletivos de trabalho, requisitos para a atividade coletiva e resultados da atividade coletiva.

a) Uma definição de coletivos de trabalho

Todos nós pertencemos a vários grupos sociais, de diferentes dimensões e formas de relação. A família é um grupo, a comunidade do prédio, da rua, do bairro ou da cidade pode ser outro, as pessoas que frequentam um mesmo clube, frequentam ou frequentaram a

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Quando diz que "tem sido através da investigação acerca das modalidades de comunicação que a

Ergonomia aproximou-se da dimensão coletiva de trabalho" o autor está fazendo referência a uma série de

estudos (Daniellou, 1986; Chabaud, 1987; Leplat, 1991, entre outros) fortemente influenciados pela perspectiva cognitivista, que, apesar de relevantes, não serão priorizados nessa tese. Tampouco nos ateremos aos aspectos da comunicação que são tratados pelos estudos da linguística, sem também deixar de reconhecer sua importante contribuição para o estudo do trabalho.

27 mesma escola, participam de uma associação cultural ou política etc. Chamamos de coletivos de trabalho um grupo de pessoas que trabalham juntas para realização de uma tarefa ou para alcance de um objetivo comum10 (DANIELLOU et. al., 2010).

Um coletivo não é uma soma de pessoas, mas sim um conjugado. Ele carrega os benefícios do efeito da sinergia. Ou seja, o todo é irredutível à soma das partes. Montmollin (1997) diz que o coletivo ultrapassa o interindividual. Num coletivo é possível integrar as diferenças e articular os talentos específicos.

Daniellou et. al. (2010) dizem que os coletivos podem ter formas muito variadas:

 Seus membros podem ou não se encontrar no mesmo lugar;

 Eles podem ter ou não as mesmas funções;

 Eles podem compartilhar as mesmas tarefas imediatas ou somente objetivos de médio prazo.

Assim como participamos de vários grupos sociais, podemos também integrar mais de um coletivo de trabalho. O setor de produção de uma empresa é um coletivo amplo que compartilha um objetivo de médio prazo. Uma equipe de um turno é um coletivo mais restrito. Mais restrito ainda pode ser o coletivo formado pelos operadores de um determinado posto de trabalho. Ou ainda, uma dupla de operador e ajudante de operação.

Podem se formar coletivos para realização de uma tarefa específica, como um grupo de projeto ou uma força-tarefa para limpar e organizar um galpão, assim como podem existir coletivos mais permanentes.

Figueiredo e Athayde (2004), ancorados em Dejours, dizem que a cooperação é o que funda o coletivo (veremos mais sobre as contribuições de Dejours no tópico 1.3). Pela atividade coletiva, os trabalhadores cooperam tendo como resultado da cooperação a coordenação coletiva do trabalho e o alcance dos objetivos partilhados. Vejamos adiante alguns requisitos para a atividade coletiva

10 Diferente dos coletivos de trabalho, são os coletivos de ofício: pessoas que têm o mesmo ofício, sem

28 b) Requisitos para a atividade coletiva

Uma condição inicial para o bom funcionamento de qualquer atividade coletiva é que cada um que dela participa tenha uma compreensão suficiente do trabalho dos outros. É preciso conhecer a organização geral do trabalho dos colegas, as diferentes fases da sua ação e os constrangimentos aos quais se submetem (GUÉRIN et. al., 2001).

Uma segunda condição, inteiramente em harmonia com a primeira, é a comunicação entre os membros do coletivo. A comunicação, para além de um requisito, é também um indicador da atividade coletiva. A comunicação pode se revelar por palavras, mas também por gestos, relatórios, bilhetes; ou ainda pela postura, pelo posicionamento com relação às instalações, pelos ruídos etc. (GUÉRIN et. al., 2001).

A terceira condição remete ao que Terssac e Chabaud (1990, apud ATHAYDE, 1996) chamaram de um "referencial [operativo] comum" que se constrói entre os trabalhadores de uma equipe. Os autores falavam de uma "dependência cognitiva" para designar a permeabilidade de saberes no seio de uma equipe, que daria origem a esse referencial comum. No entanto, indo além da abordagem cognitivista, acreditamos que essa “dependência” pode ser algo mais do que cognitiva, atravessando a esfera do corpo e das sensações. Daniellou et. al. (2010) dizem que os grupos são portadores de um patrimônio coletivo que influencia na conduta dos seus membros: "Até mesmo a percepção é influenciada pelo pertencimento a um grupo: este é portador de uma sensibilidade particular para certas informações e de classes de interpretações já prontas" (p. 51).

A quarta condição para a atividade coletiva que consideramos aqui tem a ver com os objetivos múltiplos que concorrem na atividade. Dissemos que o coletivo de trabalho é um grupo de pessoas que trabalham juntas para o alcance de um objetivo comum. Entretanto, é preciso alertar que, para além desses objetivos comuns, cada sujeito que se coloca na atividade carrega outros objetivos próprios.

Montmollin (1997) ressalta que dificilmente é possível determinar a priori todos os objetivos projetados na/pela atividade. Ao se colocar em ação, o trabalhador redefine a tarefa prescrita, incluindo nela objetivos pessoais e sociais: sua carreira, sua saúde física e

29 mental, sua integração no grupo, a construção da sua identidade (SILVA, 2006)11. A situação de trabalho também alimenta a tarefa inicialmente prescrita de novos objetivos, necessários para dar conta de constrangimentos que se apresentam a cada momento. Esses objetivos múltiplos podem ser complementares e facilmente conciliáveis, como podem ser contraditórios e difíceis de conciliar12.

Os objetivos são orientados por diferentes lógicas que coexistem em qualquer organização: a qualidade, o custo, o prazo, a saúde e segurança etc.; além das lógicas internas e valores próprios dos sujeitos da ação. A atividade pode ser expressa como o diálogo entre essas diferentes lógicas, que leva a uma gestão cotidiana de compromissos. O não reconhecimento da presença dessas lógicas diversas, por vezes contraditórias, pode ser um fator que vai dificultar a atividade coletiva. O seu reconhecimento é, portanto, uma condição para o bom funcionamento da atividade coletiva (GUÉRIN et. al., 2001).

Por fim, a atividade coletiva tem como condição obvia a existência do coletivo, quanto melhor estruturado, mais eficaz. Em certas situações, "dispensas, sanções ou promoções percebidas como não justificadas, competição entre os membros, circulação de rumores", podem prejudicar e enfraquecer os coletivos (DANIELLOU et. al., 2010, p. 52). Alto índice de afastamento, rotatividade dos trabalhadores, polivalência mal gerida e constantes mudanças nas equipes também são fatores que não favorecem a construção da confiança recíproca, base para a cooperação, levando então a desestruturação dos grupos.

c) Resultados da atividade coletiva

Dissemos no início deste tópico, que a temática dos coletivos de trabalho emerge com importância nos estudos da ergonomia, fruto do que vinha se observando a partir da atividade de regulação. Pretendemos mostrar que os coletivos de trabalho representam uma instância de coordenação coletiva ou de regulação coletiva, que permite o alcance dos

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Falzon (2007) e Leplat (1997, apud Silva, 2006) fazem distinções suplementares quanto à noção de tarefa para designar diferentes etapas na transmissão da tarefa da organização para o trabalhador e na apropriação da tarefa pelo trabalhador - o que eles chamam da passagem da tarefa à atividade - onde inscrevem os conceitos de tarefa prescrita, tarefa explícita, tarefa implícita, tarefa compreendida, tarefa apropriada e tarefa efetiva ou redefinida.

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Guérin et. al. (2001) falam de objetivos em três esferas: objetivos gerais fixados pela empresa; objetivos intermediários que o operador fixa para atingir os primeiros; e objetivos mais pessoais.

30 resultados com mais eficácia e qualidade, além de menores riscos a saúde e menor custo humano.

Terssac (1992, apud ATHAYDE, 1996) faz uma reflexão acerca da elaboração de regras informais, que caracterizam uma negociação entre os atores para dar conta das insuficiências das prescrições. Para o autor, o coletivo de trabalho é uma instância por onde passa a construção das estratégias operatórias e na qual o trabalhador se apoia para preencher as lacunas entre o prescrito e o real. No coletivo trocam-se experiências e compartilham-se dúvidas a respeito das situações encontradas. Dessa forma, os trabalhadores conseguem tomar decisões difíceis e arriscadas. O coletivo ajuda na resolução individual de problemas e divide a responsabilidade pelos possíveis erros (ou possíveis acertos) fruto da inevitável fuga do prescrito. Por meio desse intercâmbio, a atividade coletiva gera uma competência coletiva e permite o desenvolvimento das competências individuais.

Mas ressaltamos que as competências (individuais ou coletivas) não se desenvolvem somente a partir do compartilhamento de regras ou estratégias, que sozinhas seriam insuficientes para preencher as lacunas entre o prescrito e o real. Para nós o patrimônio coletivo comum que esses grupos mobilizam para dar conta das demandas no aqui e agora da atividade inclui formas compartilhadas de pensar, de sentir e de agir na vida e no trabalho. Inclui, por exemplo, certos "atalhos de comunicação". O gesto, o olhar, a postura, muitas vezes substituem o diálogo. Dessa forma os coletivos ganham tempo e eficácia.

O coletivo exerce uma função importante para a previsão, prevenção, detecção e recuperação de disfuncionamentos na organização e nos seus dispositivos técnicos. A comunicação ágil entre os trabalhadores favorece a identificação de uma situação anormal e pode evitar as consequências negativas dessa anormalidade (DANIELLOU et. al., 2010; ATHAYDE, 1996). Veremos exemplos de situações como essa no capítulo final desta tese.

Outra importante contribuição dos coletivos diz respeito a uma forma de regulação da carga física, cognitiva e psíquica13 de trabalho por meio dessa instância. Os

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A ideia de carga de trabalho (física, cognitiva e psíquica), apesar de um pouco ultrapassada, ainda pode ser usada de maneira didática para abordar a noção do custo humano do trabalho, sem a pretensão de propor qualquer forma de medição quantitativa desse custo e dessas cargas.

31 trabalhadores de um coletivo exercem uma ajuda mútua que permite diminuir o custo humano e aumentar a eficácia do trabalho. Os membros do coletivo trazem um suporte que compensa as variações de estado pessoal de cada um. Juntos eles compensam mutuamente os limites físicos, cognitivos e psíquicos de cada um, e as dificuldades passageiras de um ou de outro (DANIELLOU et. al., 2010; ATHAYDE, 1996).

Por fim, Athayde (1996) chamou atenção para a função dos coletivos na "regulação social" dos conflitos. O grupo atua para prevenir os conflitos interpessoais e reduzir suas consequências.

Considerações finais sobre ergonomia da atividade

A ergonomia da atividade nos fornece elementos importantes para analisar a gestão do trabalho nas organizações, e na COOPERMINAS em particular. Os conceitos de tarefa, atividade, variabilidade e regulação nos parecem extremamente valiosos para compreender o trabalho e avançar na sua transformação, tendo em vista a melhoria da eficácia da produção e da saúde e segurança dos trabalhadores. Entendemos que trabalhar é gerir e, por isso, o olhar da atividade é essencial para discutir a gestão do trabalho.

Ao tratar do conceito de regulação vimos emergir outros dois conceitos fundamentais que, em especial no caso da COOPERMINAS, ajudaram a entender o trabalho, seus determinantes e suas consequências: competências e coletivos de trabalho. Vimos que o que os trabalhadores mobilizam para dar conta das variabilidades sempre presentes nas situações reais de trabalho vai além da cognição, combinando percepção e ação, numa dinâmica que envolve o corpo e a mente. Ressaltamos que o acionamento dessa dinâmica depende fundamentalmente do engajamento (aqui e agora) do sujeito num coletivo que compartilha formas de vida e de trabalho e, por fim, indicamos algumas condições e desse engajamento.

Acreditamos que a abordagem da ergonomia da atividade aqui apresentada pode ser enriquecida por outros olhares. Buscaremos com a perspectiva ergológica quebrar com a rigidez dos conceitos e construir uma fundamentação teórica mais fluida, que na segunda parte desta tese será utilizada para analisar a gestão do trabalho na COOPERMINAS.

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1.2. A gestão pelo corpo-si em um universo de valores: contribuições da perspectiva