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5. A REVELAÇÃO DO DIAGNÓSTICO DE HIV/AIDS

6.1. Os conceitos Tabu e Transmissão

"Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu" Goethe, Fausto.

Levando em conta o cenário da transmissão vertical do HIV aqui apresentado, percebe-se que ele traz algumas especificidades, como por exemplo, a chegada da epidemia da aids entre as crianças, que supostamente morreriam na infância, mas puderam atingir a adolescência. A infecção pelo HIV nas crianças provocou implicações diretas no psiquismo da mãe, do pai, dos familiares e, consequentemente, no delas próprias, podendo representar um drama familiar.

Tal drama poderia ser representado tanto pelas significações psíquicas da aids para os pais e familiares, quanto pela presença da morte, já que, muitas vezes, a aids nos pais não era descoberta a tempo de ser tratada, causando o óbito desses, e deixando as crianças órfãs. Inúmeras crianças passaram por essa situação no início da epidemia e foram cuidadas por parentes, amigos, ou levadas a abrigos e outras instituições que ofereciam cuidados.

Quando a mãe consegue descobrir a aids a tempo de tratá-la, sobrevive às dificuldades da doença e passa a ter que lidar com inúmeras consequências e desafios em sua vida. Em muitos casos, é possível perceber uma intensa angústia e o sentimento de culpa da mãe em relação à transmissão do HIV à criança. Isso porque ele ainda carrega representações sociais negativas, atreladas à morte, a vivência promíscua e “errada” da sexualidade, aos valores das relações de gênero, da moral, dos direitos humanos, que o colocam em um lugar de tabu.

Segundo Parker (1994), a construção histórico-social da aids como uma doença associada à morte, sexualidade e contaminação, doença de homossexuais, usuários de drogas e profissionais do sexo, contribuiu para criminalizar os portadores de HIV, dividindo as pessoas entre vítimas e culpados, despertando preconceitos e estigmas.

A partir dessa ideia de vítimas X culpados, Barreto (2011) relata que os culpados eram as pessoas que “procuraram” o vírus e acabaram sendo contaminados, e neste grupo estavam incluídos os homossexuais masculinos, os usuários de droga e as prostitutas. As vítimas da aids seriam aquelas pessoas que acidentalmente adquiriram a doença, como os hemotransfundidos, aqueles que foram contaminados por seus cônjuges e as crianças infectadas por transmissão vertical. Percebemos que esse lugar imaginário de vítima pouco aparece no discurso dos jovens com HIV por transmissão vertical.

Depois da notícia da infecção pelo HIV, a pessoa fica reduzida à aids, sem ser considerada mais como um indivíduo integral, afirma Cruz (2007). O termo "aidético" se inclui nesse cenário, mostrando como a linguagem utilizada para denominar pessoas vivendo com HIV, restringe a pessoa à sua condição de portadora da aids e ao lugar daquele terrível, "fonte de todo mal".

Para realizar uma discussão, na qual se possa sustentar o lugar social de tabu atribuído ao HIV e a aids, será utilizado o texto de Freud “Totem e Tabu”, de 1913. O significado de tabu pode ser visto em duas direções antagônicas e exprime-se em restrições e proibições. Por um lado, pode significar “santo, consagrado” e por outro “inquietante, perigoso, proibido e impuro”.

As proibições do tabu não apresentam qualquer fundamentação, têm origem desconhecida e são diferentes das proibições morais ou religiosas. Aqui cabe fazer uma articulação do HIV e da aids com a direção do tabu que abarca as características perigoso, proibido, impuro, e, como exposto acima, “fonte de todo mal”.

No texto, Freud apresenta a ideia de que pessoas ou coisas vistas como tabu, podem ser comparadas a objetos repletos de eletricidade, transmissível por contato, podendo ser liberada com efeito destrutivo. A transmissibilidade de um tabu é uma característica que faz com que se procure extingui-lo, pelo pavor do contágio. O HIV, muitas vezes, é compreendido como essa força perigosa, inquietante, que pode ser transmitida por contágio, tendo como possível efeito destrutivo o adoecimento e a morte.

O caráter do tabu, que tem homens por objeto, limita-se às condições que implicam uma situação de vida excepcional para o alvo do tabu, e, nesse sentido, doentes e mortos são incluídos como tabu e provocam medo e temor.

As proibições frente um tabu como aquela que impede o toque e a que interdita a fala, aparecem também relacionadas ao HIV e a aids, por exemplo, quando se percebe o isolamento social de pessoas vivendo com HIV, pois muitos sentem que o outro tem medo de tocá-las e ser contaminado, ou quando existe a manutenção do segredo sobre o HIV, sustentando-o como algo indizível, proibido de se revelar, o não dito de uma história e uma identidade restrita. Portanto, transmitir esse vírus é como transmitir um tabu, carregado de significações relacionadas ao proibido.

Outro tema que aparece no texto de Freud (1913) é o da transmissão entre as gerações, que está articulado com a herança do tabu, do crime e da culpa, os quais sobrevivem de geração a geração, pela repetição da lei, da moral e dos costumes.

No que diz respeito à concepção de “transmissão”: “Transmitir é fazer passar um objeto, pensamento, história ou afetos de uma pessoa para outra, de um grupo para outro, de uma geração para outra” (Hartmann & Schestatsky, 2011, p. 98). Segundo os autores, para efetuar a transmissão é necessário haver uma certa distância e um laço entre aquele que transmite e aquele que recebe.

O forte pertencimento de um indivíduo ao seu grupo faz com que lhe seja transmitido, e ele receba inconscientemente, aquilo do qual é herdeiro por imposição e que proporcionará seu desenvolvimento psíquico. Através da nomeação do mundo, da transmissão de significantes e propagação da lei, a figura materna possibilita a construção do arcabouço cultural da criança, assim como de suas significações, baseado naquilo que anteriormente foi transmitido a ela. Aqui aparece a importância do papel do outro na formação do psiquismo de um sujeito e, nesse sentido, pode-se dizer de uma continuidade psíquica nas gerações, o que pode ser visto já em Freud.

Para Hartmann & Schestatsky (2011), existe uma necessidade da continuação evolutiva de uma geração a outra, o que permite a cada indivíduo não vir ao mundo do zero, mas sim ocupando um lugar de herança, dado pela sua geração anterior, para a perpetuação da espécie. A transmissão imposta a cada um faz da criança o elo de uma cadeia geracional e a destina um lugar oferecido pelo grupo que a acolhe. Herdeira daquilo que foi revelado e daquilo que foi silenciado por sua família, a criança pode construir sua própria subjetividade, conseguindo existir como sujeito do inconsciente e sujeito do grupo.

Nesse sentido, podemos pensar que, quando se fala de transmissão do HIV, não está em jogo apenas a transmissão de um vírus para a criança, mas também de todas as representações psíquicas envolvidas no diagnóstico, ou seja, existe a herança de um tabu, transmitida de uma geração para outra.

Os autores ainda sustentam que a transmissão nunca é passiva, ou seja, existe a possibilidade de apropriação e reconstrução de uma história. O que é transmitido por uma geração será recebido por outra através das identificações ou resistências, fazendo com que o conteúdo transmitido possa sofrer alterações. Certos elementos podem ser impostos aos descendentes, mas eles terão sempre que adquiri-los, para os fazerem próprios e repletos de significação.

Já dizia Freud em seu texto Totem e Tabu (1913) sobre a ideia de resgatar no pai algo que possibilite fazer uma releitura de si próprio, para construir um legado próprio. Existe um processo de transmissão de qualidades, a assimilação e a apropriação.

Para uma melhor compreensão de como é possível um indivíduo ser tocado e atingido pela história do outro, é essencial um aprofundamento no conceito psicanalítico de identificação, construído por Freud e desenvolvido por outros diversos autores. Isso porque tal mecanismo, nas suas mais variadas formas, exerce o estatuto de base ou fundação das transmissões psíquicas.

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