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5. A REVELAÇÃO DO DIAGNÓSTICO DE HIV/AIDS

6.2. Sobre a Identificação

Pois de tudo fica um pouco. Fica um pouco de teu queixo

no queixo de tua filha. De teu ápero silêncio, um pouco ficou, um pouco

nos muros zangados, nas folhas, mudas que sobem. Carlos Drummond de Andrade13

Kaufmann (1996) interpreta o conceito de identificação – identifizierung, em alemão – como uma das categorias mais fundamentais da teoria e metapsicologia freudianas. Ele firma que tal conceito só pode ser abordado em relação aos termos: incorporação, introjeção, investimento e posição. Define as identificações como uma lenta hesitação entre o “eu” e o “outro”, ao passo que a identidade seria encontrar um “eu” que, ilusoriamente, não teria nenhuma relação de objeto.

O autor informa que existem diferentes aspectos do mecanismo de identificação, que foram sendo apresentados por Freud, no decorrer da construção de sua metapsicologia. Um primeiro, que teve sustentação nos “Estudos sobre histeria” (1895), corresponde a oportunidade e aptidão para tomar o lugar do outro e fala de uma

13 De Andrade, C.D. Resíduo. In: Poesia Completa e Prosa em um volume. Rio de Janeiro: Companhia

identificação na qual é possível ocupar lugares e posições psíquicas diferentes.

Outro aspecto da identificação que aparece em Freud, mais precisamente nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905), e tem especial relevância para a presente pesquisa, é, a possibilidade de incorporação de fragmentos do mundo externo, para transformá-los em si mesmo, através da comunicação entre o exterior e o interior do corpo. O autor afirma que a partir das mensagens da mãe dirigidas ao filho, existe a preparação dos diferentes níveis de identidade.

O primeiro nível diz da identidade do si mesmo, primeiro momento de individuação e de separação, em que se faz necessário uma psique para o corpo da mãe e outra para o corpo da criança; separação que se opera por um processo de introjeção, já que se integram à criança o zelo e o seio materno, enquanto funções, parte das mensagens que a formam e informam.

Seguida a esse nível de identidade, aparece a identidade pensante, que sustenta o pensamento como permanente representação e como atividade de investimento da realidade, de modo que ela possa ser introjetada. Neste momento, também há o investimento no corpo, para elaborar uma imagem corporal, marcada pela diferenciação entre o interior e o exterior.

Um terceiro aspecto está relacionado às “teorias sexuais das crianças”, expostas no texto de Freud de 1908, quando ele descreve a elaboração progressiva da imagem do corpo. A teoria sexual que mais tem importância para o processo de identificação é a que mostra a tentativa de circunscrever as funções do corpo e de poder habitá-lo. Daqui, se desenvolve a ideia de que a única representação bipartidária acessível ao inconsciente é o ativo e o passivo, que fará surgir as categorias do masculino e feminino. Um quarto aspecto da teoria da identificação é mostrado no texto de Freud, de 1921, “Psicologia das massas e análise do eu”. Neste, Freud afirma “A psicanálise conhece a identificação como a mais antiga manifestação de uma ligação afetiva a uma outra pessoa. Ela desempenha um determinado papel na pré-história do complexo de Édipo” (pag. 60).

Nesta época da vida, o menino toma seu pai como ideal, o toma como modelo, e objetiva crescer, ser como este pai e tomar o lugar dele em todas as situações. Ao mesmo tempo, começa a ter lugar um investimento objetal direto na mãe. Quando esses

dois mecanismos passam a não mais coexistir tranquilamente, dá-se a entrada no complexo de Édipo, no qual o menino percebe o pai como obstáculo entre ele e a mãe, transformando sua identificação em relação ao pai em algo da ordem da hostilidade. Assim, percebemos que a identificação, desde o início, é ambivalente, podendo tanto apresentar-se como expressão de ternura, quanto como desejo de eliminação.

Freud (1921) demonstra que existe uma diferença significativa entre o menino identificar-se ao pai e o menino escolher o pai como objeto. No primeiro caso, o pai ocupa o lugar daquilo que o menino gostaria de ser; e fica nítido que a identificação tem a finalidade de construir o “eu” à semelhança daquele que foi tomado como modelo. No segundo caso, o pai ocupa o lugar daquilo que o menino gostaria de ter.

Correspondente a isso, Rassial (1999) afirma que, na adolescência, existe uma repetição dos processos de identificação da infância e nota-se seus efeitos suspensos até então. Para esclarecer a diferença entre os processos de identificação da infância e os da adolescência, o autor demarca a necessidade de tratar da questão da relação entre o “ser” e o “ter”.

Na infância, o sujeito se coloca frente os objetos pulsionais que lhe são oferecidos, exceto ao ocupar o lugar de ser, ele mesmo, sintoma para Outro. A primeira identificação sexual, fruto do Édipo, faz com que o sujeito esteja do lado de ser homem, ou ser mulher. Já na adolescência, o sujeito se apropria do sintoma como sintoma sexual e estabelece os outros, não só os pais como acontece na infância, como possíveis objetos de desejo, guiado pela genitalidade, objetos que os sujeitos gostariam de ter. O autor ainda explica que os pais continuam sendo representantes do “mundo dos adultos”, mas são recolocados em cena quanto ao seu estatuto.

Para Freud (1921) trata-se de um contexto mais complicado a identificação numa formação neurótica de sintomas. A identificação quanto ao sintoma pode se suceder por três caminhos:

1) Ou é a identificação é a mesma do complexo de Édipo, o que significa que a criança quer substituir um dos genitores e o sintoma expressa o amor objetal ao outro genitor, realizando a substituição com a influência da consciência da culpa;

identificação tomou o lugar da escolha de objeto, e a escolha de objeto regrediu à identificação” (pag. 63). Quanto a isso, o autor diz que a identificação é a mais antiga e original forma de ligação afetiva e acontece, com frequência, que o Eu adote características do objeto; 3) Ou a identificação desconsidera a relação objetal com a pessoa copiada. Neste caso, acontece que o mecanismo de identificação age porque o sujeito quer se colocar na mesma situação que outro. Então, através de um deslocamento da identificação ao sintoma, a formação deste se dá, pois há um lugar de coincidência entre os Eus dos sujeitos envolvidos, que precisa permanecer reprimido.

Outra forma de identificação, mencionada por Freud nesse texto, que merece relevância, no mínimo sucinta, é a que se dá através da análise da melancolia. Nessa afecção, existe a perda real ou afetiva do objeto amado e acontece um processo de introjeção de tal objeto no Eu, já que se efetua a identificação com tal objeto, como forma de substituição para o mesmo. O autor afirma que “A sombra do objeto caiu sobre o Eu”. (p.138)

É com o texto “A dissolução do complexo de Édipo” (1924), que Freud finaliza a teoria que construiu sobre o processo de identificação, afirma Kaufmann (1996), pois aí ele reflete sobre a saída do complexo de Édipo que oferece duas posições de satisfação: a ativa e a passiva. No fim do complexo, seu recalcamento surge como um desinvestimento deste, o que permite que os investimentos de objeto sejam abandonados, para surgir a identificação em seu lugar. O autor explica “(…) a criança desinveste das imagens parentais para se identificar com um x que é eu futuro: quando eu crescer, não vou mais tomar o lugar de outro, vou fazer meu próprio lugar”. (p.258) Vale considerar o que Laplanche e Pontalis (1967) informam sobre a identificação: ela é o “processo psicológico pelo qual o sujeito assimila um aspecto, uma propriedade, um atributo de outro, e se transforma, total ou parcialmente, segundo o modelo dessa pessoa. A personalidade constitui-se e diferencia-se por uma série de identificações” (pag. 295). Os autores ainda sustentam, que, a identificação assumiu um valor central na obra de Freud, e passa a significar uma operação pela qual o indivíduo humano se constitui.

Hartmann & Schestatsky (2011) indicam que para Freud, o vínculo emocional e o desamparo da criança frente aos pais constituem fundamentos primitivos dos processos de identificação, dos quais são feitas as transmissões inconscientes de um sujeito para outro e de geração para geração, formando um pilar do funcionamento intrapsíquico.

A partir dessas considerações sobre o conceito de identificação, pode-se propor algumas articulações com o ponto de vista da transmissão de significantes relacionados ao HIV para a criança ou adolescente com infecção por transmissão vertical, sustentados pela figura materna, paterna ou pelos cuidadores responsáveis por eles, que simbolizam e pronunciam a herança de um tabu.

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