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O processo de socialização da esposa de pastor pode apresentar conflitos familiares, conjugais e com os próprios agentes socializadores; ou seja, com os membros da Igreja. De modo geral, os depoimentos apontam que os conflitos acontecem porque o sistema simbólico não está totalmente internalizado nas mulheres; portanto, os conflitos acontecem porque existem comportamentos de resistências e de negociação para a aceitação – ou incorporação – do habitus correspondente à esposa de pastor. Os depoimentos seguintes não se referem somente às mulheres iurdianas, mas também às pastoras da IEQ que, do mesmo modo, são ou foram algum dia, esposas de pastor. Vejamos alguns depoimentos referentes ao tema:

O problema é que ser esposa do pastor você perde: perde um pouco do marido, do pai, da sua liberdade, mas à medida que você vai aprendendo a dividir, você consegue se sair melhor. A barreira maior

pra mim foi dividir o que era meu. Eu falava: “Agora tudo é essa Igreja. Vem onze horas, larga as crianças dormindo, a gente fica aqui presa”.(...) Até que eu compreendi que o ministério do pastor é 50% responsabilidade minha. Eu tive dificuldade porque eu não gosto muito de dividir as minhas coisas, meus filhos, o tempo dele (...) e a Igreja faz essa divisão. Ele dizia: “Bem, estou indo mais cedo para a Igreja, depois você vai com as crianças”. Eu já gritava: “Eu não. Você tem que ir junto comigo”. Então, eu aprendi e consegui ter amor pelas pessoas porque elas vêm para a Igreja para serem amadas, e a esposa do pastor não pode se tornar uma barreira, mas até eu entender isso foi uma ginástica. ( Pra Giani da IEQ de São Carlos, 17/05/2005)

A marca mulher sem nome pode funcionar tanto como produtora de prestígio quanto de intrigas sociais. Enquanto no espaço macro, a experiência pessoal destas mulheres articula-se com as transformações sócio-econômicas, no micro, ela articula-se como sistema simbólico referente à inserção religiosa e às relações sociais estabelecidas em seu cotidiano. Essa marca social nos permite compreender a complexidade das configurações sociais destas mulheres pentecostais. Quando conhecemos seus indicadores básicos do passado (origem familiar e os acontecimentos da trajetória social), podemos compreender em quais circunstâncias as condições do presente foram produzidas, porém, quando esse mundo de origem é negado e silenciado, ocorre uma (des)identificação e até uma desvalorização com aquele mundo de origem que ditou os princípios básicos para as orientações de cada mudança de trajetória. Os depoimentos anteriores nos apontam o processo de construção do papel social da esposa do pastor; ou seja, de que forma elas tornam-se mulheres sem nome. A elaboração e a realização de seus projetos vão depender de suas memórias e das identidades construídas durante a vida. Neste sentido, esta pesquisa reconhece a importância tanto das relações entre

memória e projeto para a constituição de identidades quanto o compartilhamento das

subjetividades na realidade da vida cotidiana72.

A partir da articulação entre projeto e memória, essas mulheres atribuíram significados às suas vidas e às suas ações a partir do ethos religioso no qual estão

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A realidade da vida cotidiana não se esgota nas presenças imediatas do “aqui e agora”. A vida diária possui graus diferentes de aproximação e distância, espacial e temporal. (...) ela se apresenta como um mundo intersubjetivo, um mundo no qual participam outros homens e mulheres. (BERGER,& LUCKMANN, 1976.p.39-40)

inseridas. Cada mulher, aqui destacada, é portadora de uma memória social, portanto, de um significado específico na criação e execução de seus sonhos e planos. Somente por meio do processo de individualização, pode-se perceber como cada uma delas conquistou a marca esposa de pastor ou pastora e de que forma cada uma se fixou na sociedade e desempenhou seus papéis sociais.

As mulheres esposas de pastores têm suas vidas reorientadas a partir do casamento e, quando elas estão inseridas na dinâmica própria do grupo pentecostal, a conquista do próprio nome torna-se cada vez mais difícil. Este bem simbólico, muito prezado pelas mulheres que já o conquistaram, funciona como uma marca produtora de prestígio e status sociais, daí sua articulação com o problema da autoria e autoridade. Ser conhecida pelos membros da Igreja pela nominação de “esposa do pastor” com atribuições, tais como: “aquela que deve dividir tudo” e que “está sempre pronta a servir” expressa um processo de nominação que anula qualquer reação individual, pois o nome “esposa do pastor” não somente substitui o próprio nome e tudo a ele associado, como também generaliza e impõe a esta mulher a função de ser reprodutora de uma categoria mais ampla do gênero, o modelo da esposa cristã73. Essa manipulação do nome, que gera a marca da mulher sem nome, é uma forma de enfatizar a particularidade que a Igreja Universal atribui às mulheres ali inseridas e reafirmar seu sistema simbólico referente à categoria mais ampla e significativa do gênero feminino.

Como vimos até o momento, o itinerário profissional dos pastores gera espaços de constante interferência sobre as trajetórias de suas esposas. Especialmente na IURD, o casamento tem eliminado a autonomia pessoal das mulheres que optam em ser obreiras e esposas de pastor. Em favor da indivisibilidade familiar e da ascendência do

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Reconheço que mesmo utilizando o prenome estas mulheres não seriam inteiramente individualizadas, uma vez que, a escolha, normalmente, está associada à homenagem a outra pessoa (pai, mãe, avô etc.) (Velho, 1980;p.41). Porém, o uso de seus prenomes, em lugar de “esposa do pastor” expressaria muito mais a relação entre sua individualização e inserção social mais ampla; não restringindo suas identidades à esfera religiosa.

marido na carreira pastoral, elas (re) elaboram seus projetos já que o casamento influencia diretamente na mobilidade social, na consolidação do status e na posição destas mulheres na sociedade mais ampla. Suas condições de vida e de atividades diárias na Igreja e na unidade doméstica dificultam a interação com outros espaços sociais, pois estão sempre sob o controle da Igreja. Sua situação original, de pobreza, pouca escolaridade e baixo grau de instrução não as impedem de desenvolverem uma carreira profissional. Neide e Dulce permaneceram no mercado informal e, como tantas outras mulheres, elas também se viram privadas dos serviços públicos durante a infância e juventude.

Os processos sociais de desenraizamento e enraizamento são freqüentes na vida das esposas de pastores. Contudo, no cotidiano, elas desenvolvem formas de interação com a coletividade e formas de conservarem seus tesouros do passado. Embora laços sejam rompidos com os constantes deslocamentos, algumas conseguem reconstruir suas relações sociais e re-significar seu sentimento de pertencimento social, territorial ou simbólico.

As mudanças todas ocorreram depois de me casar, se não fosse por ele [marido] eu estaria em Feira de Santana. (Pra Nalda da IEQ, 03/11/2004)

Mudar é normal, acontece. Mas se você começa alguma coisa aqui você pode terminar lá, basta querer. Tudo é por determinação. Se você não determinar nada você não vai fazer nada. (Pra Marina da IEQ, 11/2005)

Eu fiquei 18 anos sem ver minha irmã de São Paulo [pausa]. Nas minhas mudanças eu não vinha em São Paulo, nem sabia onde ela morava. Depois de 18 anos, um sobrinho levou ela na casa da minha mãe para a gente se vê, mas isto depois de 18 anos. (Emília, esposa na IEQ, 02/05/2005)

A cada mudança de cidade é difícil, mas a gente tá pronta pra tudo, né? Eu não tenho amizade com minhas vizinhas. Acho que nunca tive essas coisas. (Neide, esposa na IURD, 11/2005)

Uma queixa comum entre as esposas de pastor refere-se à comparação que a comunidade faz entre a esposa atual e a esposa que estava na Igreja, antes dela. Seu modo de ser, de se vestir, de cuidar da família, de tratar os membros da comunidade, de atuar na Igreja, de educar os filhos e filhas, se tem cargos ou não, são sempre motivos

de comparação e comentários entre os membros. A proximidade com a membresia também gera muitos conflitos entre ela e a família, pois a forma de educar e o comportamento dos filhos e filhas dos casais de pastores também são comparados.

A idéia, em geral, é que todas as crianças da Igreja têm o direito de correr, brigar, competir, ter amigos especiais, não querer ir à Escola Dominical, dormir no culto, mascar chicletes ou chupar balas enquanto o pastor prega, mas os filhos do pastor...esses não podem nada disso porque são “filhos do pastor”.(DUSILEK, 1996, p.49)

Em relação à questão, “se a Igreja interfere na vida dos filhos”, destacam as seguintes respostas:

Ichi. Bastante. Meu filho, se ele trabalhava de empregado o povo

falava. Se ele era autônomo falava. Então, o jeito é o ministério mesmo. (Pra Hozana da IEQ, 23/06/2005)

A religião ajuda na educação dos filhos, coloca um freio na minha vida e na deles. Eu não proíbo eles de nada. Eles é que têm que ter o temor, eu não posso ficar segurando... Não tenho hora de comer, de deitar, de levantar, minha vida é uma bagunça. Depois do culto eu vou ouvir, dar conselhos, ouvir as críticas. (Pra Giani da IEQ, 19/11/2004)

A obediência a Deus configura o modelo de família cristã e patriarcal e, por conta disso, as relações familiares são estruturadas sob padrões tradicionais da lógica, da dominação simbólica. O conservadorismo evangélico exige que homens e mulheres cumpram papéis distintos e hierarquizados, o feminino se realizando na exploração das possibilidades dos espaços interiores com a família e a Igreja, os homens como cabeça da família e da vida comunitária (MAFRA, 1998; MACEDO,2001; TAVARES, 2002; LEMOS,2005). É muito comum durante os cultos, as pessoas darem atenção às crianças quando são bebês e ainda bem pequenas. Mesmo que não sejam os filhos ou as filhas de pastores, geralmente as crianças passam de colo em colo. Algumas esposas de pastores não gostam desta prática porque dizem que “a criança fica cansada e irritada”; “fica mal acostumada com tanto colo”, “dão-lhe de tudo para comer” e assim por diante. Embora a justificativa da prática seja de “ajudar a cuidar da criança”, há esposas de pastores que dizem que isso acontece somente com o propósito de “compartilhar a intimidade da família do pastor e que é impossível colocar um limite com o povo da Igreja”. Mas o fato é que, a maior parte das pastoras encontra-se distante de seus familiares e,

consequentemente, contam com a colaboração das mulheres da Igreja no seu dia-a-dia. Porém, foi consenso entre as entrevistadas a idéia de que “as pessoas da Igreja estragam as crianças dos pastores e depois querem que a esposa do pastor as conserte quando estão mais crescidas”.

Não obstante, a esposa de pastor está sempre negociando a sua imagem e da sua família com a comunidade, pois há diferentes formas de controle social. A família toda passa a ser observada (ou vigiada) de perto pelas pessoas que estão na diretoria da Igreja, e de longe pelo restante dos fiéis. A especial atenção é para o relacionamento conjugal do casal de pastores, pois deve ser o relacionamento modelo para a comunidade. A forma como se refere um ao outro, como manifestam o carinho, tudo é motivo para comentários e julgamentos. “Ficar assim exposta é muito desconfortável”, comenta uma das entrevistadas.

Nas três Igrejas, o casamento é visto como “um presente de Deus para o ser humano”. As pastoras e esposas de pastores declaram que, quanto maior a aparência de um relacionamento conjugal bem sucedido maiores serão as bênçãos para Igreja, ou seja, mais casamentos acontecerão porque o modelo está sendo executado com sucesso.

Um motivo que gera grandes conflitos na família pastoral, especialmente entre a esposa e a comunidade, é a falta de privacidade quando se mora na casa pastoral74. O

retrato seguinte da Pra Hozana demonstra como este controle cotidiano da comunidade influenciou na sua vida familiar a ponto de decidir morar num apartamento no centro da cidade.

Eu não moro em casa pastoral porque eu já tive experiência de ter problemas porque o povo não saía da porta. Era tocando a campainha pedindo oração, contando problema, levando uma coisinha. Então, eu já oriento a Igreja: “Não me amola com interfone porque a portaria não aceita” Já morei muito tempo no fundo da Igreja. Quando dava seis horas, o povo já tava enchendo minha

casa, às vezes, eu com fome não podia comer porque o povo chegava tudo e já sentava até começar o culto.

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O depoimento a seguir da Pra Marina ilustra o processo de empoderamento

psicológico expresso por meio da recusa e da resistência em busca da autonomia e da

individualidade:

Nunca morei em casa pastoral. Eu estou hoje saindo do bairro que

nasci porque, muitas vezes, as pessoas não vêem meu carro aqui [na Igreja] e elas vão até a minha casa. Eu estou indo para um apartamento porque eu quero privacidade.

A infra-estrutura da casa pastoral vai depender do sistema organizacional e da forma de administrar os recursos em cada denominação. A IURD, por exemplo, concede a casa pastoral para todos os pastores, sem exceção. Nesta Igreja, a justificativa é que o que tem que ser feito para Deus, deve ser sempre com o melhor. Morar bem demonstra o quanto o pastor e sua família são considerados pela Igreja. Freqüentemente, as casas são de ótimo padrão e sempre localizadas em bairros próximos ao centro e às Igrejas.

Por outro lado, as casas pastorais da AD e da IEQ variam de acordo com a capacidade de arrecadação de cada templo, uma vez que, cada pastor tem autonomia financeira para administrar sua congregação. Há pastoras que moram em casa própria e outras que residem na casa pastoral, construída no próprio terreno da Igreja, ao lado ou nos fundos. A Pra Giani durante seu itinerário pastoral já morou em casa pastoral, depois teve sua casa própria e, atualmente, mora nos fundos da Igreja num espaço utilizado para os membros lancharem. “Era para ser uma moradia provisória”, relata Giani. Porém, a família está alojada há quatro anos e sem perspectiva de mudança. A casa está sendo ampliada pelo sistema de mutirão e de doações da comunidade. “Os

membros trabalham quando podem, por isso não anda. Não tem um dia certo e nem hora marcada. Quando alguém pode vem fazer alguma coisa”, diz o pastor.

A questão financeira é algo delicado no cotidiano das mulheres esposas de pastores pentecostais, pois geralmente as Igrejas querem um casal de pastor com disposição de tempo integral, porém nem sempre a Igreja tem condições de financiar as

despesas da família do pastor e remunerar o trabalho exercido pela esposa. Alimento, moradia, meio de transporte, lazer, vestuário, móveis e tudo mais são aspectos observados e acompanhados de perto pelos membros. Umas das reclamações das esposas em relação aos membros é que eles não percebem que o casal de pastores tem problemas financeiros também e que elas tem poucas condições de realizar outras atividades fora da Igreja.

Diferente do membro que, quando tem problema financeiro pode fazer hora-extra ou um bico de fim de semana, ou sentar no banco da Igreja e esperar uma palavra que renove suas esperanças. Um pastor não pode fazer isto. (Pr Edílson da IEQ; 05/2005)

Frequentemente, os pastores relatam que os fiéis reprovam quando um pastor opta por ter um emprego secular, mesmo que esta opção resulte de necessidades básicas para a família. Os fiéis alegam que o pastor, quando exerce um trabalho secular, não está mais cumprindo a função de pastor, que não está disponível o tempo todo às pessoas e para as necessidades da Igreja. A discussão do salário do pastor, normalmente, também é uma questão de constrangimento para o casal; pois no caso da AD e da IEQ, o valor é decidido pela comissão local formada pelos próprios membros. Em geral, a

mulher sem nome deixa de existir, juntamente com seus sonhos e desejos. Somente uma

minoria é que consegue entrar no mercado de trabalho pela via informal e pelo trabalho extra-doméstico, enquanto outras vão permanecer nesta restrição (simbólica e social) sob a noção de que “Deus proverá”.