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Capítulo I – A investigação

3. Enquadramento Teórico

3.1. Os contos tradicionais e os contos de fadas

Desde sempre se contaram contos e muitos valores culturais têm sido transmitidos através dos contos. O conto apresenta também aspetos da vida social e do comportamento humano, com etapas cruciais da vida, tais como: o nascimento, o namoro, o casamento, a morte e, ainda, outros episódios marcantes da vida da maior parte das pessoas.

A autora Maria Emília Traça (1992) refere que o conto é um veículo transmissor de conhecimentos, “o Conto, como a morada, a alimentação, a indumentária, é uma “constante”, é veículo transmissor de conhecimentos, é uma “palavra” (parábola) cujo fio não deve ser cortado ao passar de geração para geração, sob pena de pôr em perigo a coesão social e a sobrevivência do grupo.” (p. 28).

Relativamente ao conto tradicional e ao desenvolvimento infantil, a perspetiva mais conhecida é do autor Bruno Bettelheim, autor da obra Psicanálise dos Contos de

Fadas. O autor fez uma aproximação psicanalítica a estes textos e escolheu alguns

contos tradicionais para analisar nessa perspetiva, pois considera que se relacionam com o inconsciente infantil e com certos aspetos do desenvolvimento psicológico e socioafetivo da criança.

Segundo Bettelheim (1976), o que distingue os contos de fadas das outras narrativas orais ou escritas é a resolução final dos conflitos. Defende ainda, que o conto de fadas faz com que a criança saia do mundo real, assim permite que enfrente problemas que se encontrem interiorizados e consiga ultrapassar, inconscientemente, traumas ou outras dificuldades.

A personalidade da criança vai progredindo pela fantasia porque, segundo Bettelheim (idem):

· a inteligência vence o mal;

· a astúcia do fraco vence a força do forte; · a alegria e o otimismo vencem a tristeza;

· a fantasia fornece à criança lições para o seu real; · o bem vence, geralmente, o mal.

O conto oferece respostas que variam conforme as culturas e as formas de organização social. Porém, ensina que certos perigos, dúvidas, problemas, dilemas e situações podem ser ultrapassados se forem enfrentados com perseverança. As situações são apresentadas de forma simbólica, o que permite ao ouvinte ou ao leitor que se sinta envolvido. Essa é uma das razões que justifica o facto de os contos serem contados de geração em geração ao longo dos séculos e terem assumindo variadas

fórmulas. Muitos contos começam por “era uma vez” e terminam com a célebre frase “… e viveram felizes para sempre”, sendo a narrativa fechada e com um final feliz.

Os contos utilizados nesta investigação são, na sua maioria, contos de fadas. É de salientar que os contos de fadas representam grande parte do corpus de contos para crianças.

Começaram a ser divulgados na alta sociedade em França, no final do século XVII e o impulsionador foi Charles Perrault (1628-1703). Até perto do século XVII, os contos de fadas eram destinados a adultos das classes mais baixas, como lenhadores e camponeses, assim sobretudo as mulheres que se divertiam a ouvi-los enquanto fiavam ou faziam outros trabalhos do lar manualmente.

As possibilidades de classificação dos contos são diversas, o mais comum é considerar-se que o conto de fadas se incorpora no âmbito do conto tradicional, mais especificamente nos contos maravilhosos. Apresentam todos os aspetos característicos do conto tradicional, mas distinguem-se porque têm componentes de maravilho e fantástico.

Os contos tradicionais tratam vários temas, como por exemplo o amor, os medos, as dificuldades de ser-se criança, as angústias (materiais e afetivas), as auto- descobertas, as perdas, a solidão e a união. Estes contos são por vezes denominados contos de fadas porque se evidencia, muitas vezes, a presença do maravilhoso, apesar da personagem “fada” nem sempre existir nos contos. Etimologicamente, a palavra fada (português) origina-se da palavra latina fatum (latim: fatare, verbo: encantar; fatum, substantivo: destino, fatalidade, oráculo…) (Soares, 2004, p.5).

Estudiosos mais recentes, como Debus e Michelli (2015), continuam a considerar que os contos de fadas são responsáveis pela persistência de encantamento e sonho que perduram, permitindo a emotividade genuína, de adultos amadurecidos que rememoram o ser criança.

Muitas das narrativas tradicionais constroem-se com base no encantamento, por vezes como consequência de uma maldição. Desta forma, as mesmas autoras afirmam que:

A palavra encantamento refere-se ao ato de feitiçaria através do qual um ser vivo apresenta- se inanimado ou transformado em outro ser. Liga-se à ideia de bruxaria, magia, feitiço, maldição, mas também a maravilha, enlevo, tentação irresistível. (p. 14)

O perfil da fada que até hoje guardamos no nosso imaginário está ligado a uma mulher jovem, de grande beleza, trajando vestes finas e longas, de tecidos leves e cores suaves. São conhecidas como seres fantásticos ou imaginários e há que referir a sua vinculação com as representações do feminino. As fadas são caracterizadas como seres dotados de virtudes e de poderes sobrenaturais, que têm a capacidade

de interferir no destino dos humanos, auxiliando-os em situações complexas. Estão ligadas à oportunidade de concretização dos sonhos, dos desejos e utopias. Há que realçar que as fadas podem encarnar o Mal e evidenciarem-se como o oposto da imagem anterior, isto é, como bruxas. Assim, como afirma Soares (2004), as fadas e as bruxas “permitem-nos não apenas ter acesso às fontes de maravilhamento, mas também mergulhar na aventura do conhecimento e do autoconhecimento” (p.19).

Normalmente, o enredo do conto de fadas apresenta as contrariedades que precisam de ser ultrapassadas ou vencidas, de forma a que o herói atinja a sua auto- realização existencial, quer seja pelo encontro do seu verdadeiro “eu”, quer seja pelo encontro da princesa/príncipe, que encarna o ideal a ser atingido.

Podemos afirmar que os contos de fadas desempenham, até aos dias de hoje, um enorme poder de sedução, mais especificamente sobre o público infantil. É graças à transmissão da literatura de tradição oral, ao longo de gerações e gerações, que “o maravilhoso existe e resiste” (Soares, 2014, p.19).

Segundo Tolkien (2006, citado por Michelli, 2012), o autor de O Senhor dos Anéis, caracteriza os contos de fadas como sendo o espaço onde “a fantasia, a criação ou o vislumbrar de Outros Mundos” (p.41). Acrescentando ainda que “(…) a história de fadas trata de ´maravilhas´, ela não pode tolerar qualquer moldura ou maquinaria que dê a entender que toda a narrativa em que ocorrem é uma ficção ou ilusão”. (p. idem)

Os contos de fadas relacionam-se com o género maravilhoso, não é por acaso, que este é quase “irmão” do fantástico. Para Todorov (2004, citado por Michelli, 2012):

(…) de fato, o conto de fadas não é senão uma das variedades do maravilhoso e os acontecimentos sobrenaturais aí não provocam qualquer surpresa: nem o sono de cem anos, nem o lobo que fala, nem os dons mágicos das fadas. (p. 30)

Estes contos, tendo sido integrados, ao longo dos séculos XIX e XX, no corpus da literatura para crianças, são encarados, pela autora Diniz (1993) como muito mais do que entretenimento:

Eles aparecem como uma das etapas e uma das formas que o pensamento humano encontrou no seu esforço de entender as coisas, desde as mais particularmente felizes para contactar com o mundo da criança, fornecendo-lhe elementos úteis para estimular e alimentar a elaboração imaginativa das experiências com que se vai defrontando no dia-a-dia. (p. 55).

Os contos são imprescindíveis para a vida psíquica das crianças e, não obstante a violência que alguns apresentam, têm possibilidades terapêuticas indiscutíveis. Não é por acaso que os contos se iniciam por “Era uma vez…”, isto leva-nos a pressupor, desde o primeiro momento, que o que vai ser narrado ocorreu num

tempo indeterminado do passado, fazendo com que a criança se sinta em segurança (Gutfreind, 2004, citado por Almeida, Canete e Bomtempo, 2005).

Segundo Gutfreind (idem), a metáfora é outra característica dos contos para crianças, uma vez que apresenta os dramas e conflitos principais a partir de símbolos e essa abordagem indireta protege a criança à medida que acompanha o enredo e as personagens, deixando-a mais tranquila.