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Os dados sensíveis: não visibilidade estatística, visibilidade política

1.1 O modelo republicano de integração

1.1.2 Os dados sensíveis: não visibilidade estatística, visibilidade política

Estados Unidos, Grã-Bretanha e França compartilham o fato de serem sociedades diversificadas cujo passado é marcado por escravidão, colonização14 e imigração. Entretanto, são muito díspares as abordagens dadas pelos países no que diz respeito às investigações de caráter religioso, étnico e/ou racial. Este enfoque faz parte dos estudos americanos desde o início do século XX, da Grã-Bretanha a partir dos anos 1950, e, no caso da França, a opção feita foi por ignorar esta perspectiva (SIMON, 2010, p. 159).

Designados “dados sensíveis” pela Lei de Informática e Liberdades de 1978, as categorias étnico-raciais não podem, em regra, constar nos censos franceses, havendo

estabilidade da sociedade democrática pode ser alcançada, tendo em vista que um consenso quanto a uma doutrina abrangente a ser adotada pela sociedade mostra-se inalcançável senão por meio da opressão política? Conclui que o único ponto de acordo razoável possível entre tais doutrinas, que se mantenha estável mesmo diante de mudanças na distribuição de poder, é o princípio de tolerância. O valor da tolerância, para Rawls, é realizável, então, mediante certa forma de neutralidade estatal quanto às diversas doutrinas abrangentes do bem, sendo guiado pelo dever de civilidade entre os cidadãos, que devem justificar as decisões políticas fundamentais com base no ideal de razão pública. Nestes termos, a laïcité não dever ser compreendida como uma exigência das ideias de Rawls em “O liberalismo político”. Com efeito, a defesa da tolerância de Rawls não envolve um secularismo forte, pois o autor entende que este também constituiria uma doutrina abrangente do bem (2011, p. 543).

13Tradução livre. Original em francês: “Si la secularization de la vie publique est um trait commun à l ´ensemble des pays occidentaux, la France est un des ces pays élevant au plus haut rang cette exigente de neutralité envers toute conception spirituelle ou religieuse particulière.”

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A comparação entre Estados Unidos, França e Grã-Bretanha é feita por Patrick Simon a título de ilustração sobre a temática das categorias étnico-raciais. Mas, é evidente que a experiência colonial dos Estados Unidos, que constituíam colônias, é substancialmente distinta daquela da França e Grã-Bretanha, que possuidoras de grandes impérios coloniais.

33 restrição quando a seu registro e publicação. O censo francês, então, apenas coleta informações sobre “nacionalidade” e “país de origem” (SIMON; STAVO-DEBAUGE, 2004, p. 60).15

A opção francesa é explicada por Patrick Simon e Joan Stavo-Debauge (2004, p. 60), que ressaltam que o modelo não foi desenhado para acompanhar a situação de novas gerações que seguem à chegada dos imigrantes, na medida em que se entendia que o processo de integração culminaria na aquisição da nacionalidade francesa. Com a extensão do critério do jus solis, em 1889 (primeira lei de nacionalidade), pressupunha-se que, com o tempo, os “novos franceses” estariam adequadamente integrados à sociedade e aos valores nacionais. Como resultado, os filhos dos imigrantes são “invisibilizados” para a investigação quantitativa. A configuração do campo estatístico é, portanto, um reflexo do modelo de integração do país. Entretanto, a não visibilidade estatística contrasta com a visibilidade política dos franceses de origem imigrante.

Com efeito, não obstante a concepção republicana francesa aspire à unidade através de um modelo de integração e do recurso à proibição dos censos de caráter étnico- religioso, os cidadãos franceses são constantemente diferenciados em função de sua origem. Os cidadãos franceses nascidos na França, mas de origem estrangeira, são a todo momento lembrados desta condição, sendo denominados “jovens nascidos da imigração” (issues de l´immigration) ou até mesmo “imigrantes”. Uma evidência de que a cidadania formal não significa o pertencimento de fato à condição de cidadão francês.

Assim, a mesma retórica que busca a não visibilidade das diferenças, continuamente afirma o caráter distintivo que separa franceses “legítimos” daqueles que são “nascidos da imigração”. Conforme afirma Milena Doytcheva (2010, p. 417), o emprego de tais expressões evidencia a dificuldade da sociedade francesa de reconhecer sua dimensão pluriétnica.

Apesar desta resistência, aos poucos vai ficando evidente não apenas a existência desta diversidade, mas também que determinados grupos étnicos ou raciais são menos favorecidos que outros. Neste contexto, desponta a “invenção francesa da discriminação”.

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Embora se deva destacar que, em alguns momentos, a restrição dos dados sensíveis foi também estendida às variáveis de “nacionalidade” e “país de nascimento”, de acordo com a interpretação de gestores institucionais.

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2 A limitada “invenção francesa da discriminação”

A “invenção francesa da discriminação”,16

compreendida como “tratamento desfavorável em razão de origem real ou suposta das pessoas”, deu-se de maneira tardia, apenas no final dos anos 90, como lembra Didier Fassin (2002, pp. 403-423). Com efeito, como admitir a existência da discriminação, se todos os cidadãos são considerados iguais?

A “invenção” da discriminação permitiu que se passasse a perseguir uma luta contra a discriminação através de políticas com dimensão étnica-racial, o que não era possível. Até 1997, as políticas pró-imigrantes e seus descendentes não focavam oficialmente este grupo, funcionando como “políticas de esquiva”. Repartidas entre ministérios e secretarias, foram nestes moldes desenhadas políticas de educação, emprego e habitação que adotavam como critério para definição do público beneficiário parâmetros como a idade ou local de moradia. Dessa forma, de maneira indireta, beneficiavam-se os imigrantes e seus descendentes, público que desde o início se buscava atingir.

Importante também o papel dos tribunais nesse momento. Isto porque a jurisprudência determinou a expansão dos direitos sociais dos imigrantes, com base na ideia de aplicação estrita da universalidade de direitos. Contudo, o alcance da jurisprudência no avanço dos direitos dos imigrantes restava limitado, especialmente no campo dos direitos políticos. Embora a nacionalidade não fosse interpretada como critério para a atribuição de direitos sociais, remanescia como critério para a titularidade de direitos políticos. A garantia de um direito de voto aos estrangeiros, por exemplo, demandaria uma revisão constitucional, não sendo passível de mudança via jurisprudência (GUIRAUDON, 2006, pp.280-281).

16O termo “invenção” é aqui cunhado no sentido que lhe é atribuído por Didier Fassin (2002), isto é, refere- se a uma nova perspectiva que vem dar visibilidade a fenômenos outrora ocultos, e não a um discurso ideológico destinado a falsear a realidade.

35 Por estas e outras razões, embora as políticas de esquiva tenham trazido muitos avanços para os estrangeiros e seus descendentes, não foram suficientes para lidar com a desigualdade de origem. É com este pensamento que o governo do socialista Lionel Jospin se volta para a luta contra a discriminação. Deste os anos 1980, a política francesa esforça- se para conciliar o modelo de integração e a realidade da presença imigrante no país (GUIRAUDON, 2006, pp.280-281). É nesse sentido que se deve compreender a “invenção” da discriminação e o programa político que lhe segue.