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Perspectiva jurídica: diagnóstico da situação do Direito

6.1 A análise dos documentos a partir das categorias

6.1.5 Perspectiva jurídica: diagnóstico da situação do Direito

No âmbito do direito comparado, investigou-se de que forma a legislação e

jurisprudência comparadas são tomadas como parâmetro pelas diversas instâncias de

poder nos seus pronunciamentos. A Assembleia Nacional realizou uma ampla pesquisa não apenas da legislação dos países em relação à proteção da liberdade religiosa ou ao uso do véu, mas também das polêmicas relacionadas ao uso do véu integral, a presença/ausência

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Neste sentido, o Conselho de Estado indica os requisitos para que o componente de segurança da ordem pública material autorize a limitação de liberdades asseguradas pela constituição francesa e pela convenção europeia. São estes: Primeiramente, tais restrições devem ser justificadas pela existência de problemas para a ordem pública ou a suficiente probabilidade de que estes ocorram (não basta, então, afirmar-se a necessidade da restrição por medida de precaução). Em segundo lugar, a limitação a estes direitos e liberdades deve ser proporcional à necessidade de salvaguarda da ordem pública. Em terceiro, a estas medidas restritivas correspondem garantias (como à vida privada). Em quarto, deve-se atentar para o controle da Corte Europeia de Direitos Humanos. Enfatiza que a Corte, em suas análises, leva em consideração a existência de consensos entre os países sobre determinados temas, assim como dá importância às especificidades de cada país na tomada de suas decisões. Neste sentido, ressalta que não existe um consenso entre os Estados Membros do Conselho de Europa sobre esse assunto e, além disso, que a França não tem qualquer particularidade que justificaria um controle mais flexível por parte da Corte (Conseil d´État, 2010, pp. 32-33).

91 de grupos religiosos islâmicos radicais, além da atenção midiática que é dada ao tema. A partir desta informação, classificou os países da seguinte maneira: aqueles em que o uso do véu integral seria um fenômeno amplamente inexistente (República Tcheca, Bulgária, Romênia, Hungria e Alemanha); as sociedades atingidas pelo fenômeno (Suécia e Dinamarca); sociedades que sentem suas identidades e liberdades colocadas em causa (Bélgica e Países Baixos); países confrontados com a escalada comunitarista (Canadá, Estados Unidos, Reino Unido). Ao final, a conclusão da Assembleia Nacional foi a de que uso do véu integral constituía um “verdadeiro desafio” para as sociedades democráticas. O Conselho de Estado também pesquisou o tema, constatando que o porte do véu integral e a dissimulação da face são objeto de restrições diversas em outros países. Entretanto, diferentemente da Assembleia Nacional, observa que estas restrições são frequentemente menos coercivas que na França e sinaliza que “democracias comparáveis à França” não são dotadas de uma legislação nacional proibindo de maneira geral o uso do véu integral no espaço público. Quando as restrições se dão no âmbito do espaço público, são pontuais e locais. Assim, mesmo antes da lei de dissimulação da face, a França é considerada um dos países mais restritivos em relação a tais práticas, como nota o Conselho de Estado. Embora não faça uma pesquisa sobre a legislação e jurisprudência em outros países, a CNCDH faz referência aos documentos internacionais de direitos humanos, como a Carta das Nações Unidas e a Convenção para a eliminação da discriminação contra as mulheres. Já o Conselho Constitucional não faz qualquer referência ao regramento jurídico adotado por outros países ou mesmo ao entendimento da Corte Europeia de Direitos Humanos, ao contrário da Assembleia Nacional e do Conselho de Estado. Em sua decisão, o Conselho constitucional utiliza como parâmetro apenas documentos jurídicos franceses, como a Constituição de 1946 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1779.

Sobre o direito interno, observou-se a avaliação feita pelas instâncias sobre os

instrumentos jurídicos já existentes, isto é, a suficiência ou necessidade de novas soluções jurídicas para o véu integral. A opinião da CNCDH, sobre este ponto, é de que os

instrumentos jurídicos já existentes seriam suficientes. Indica que já existiam regulamentações em tema de ordem pública e neutralidade dos serviços públicos, de modo que a proibição do véu integral, limitada no tempo e espaço, já era aplica em vários casos. No mesmo sentido é o entendimento do Conselho de Estado, que salienta que o uso do véu integral, seja enquanto tal ou como forma de dissimulação da face, já era limitado, segundo determinadas circunstâncias de tempo, lugar e pessoas, por dispositivos de natureza e

92 alcance diversos. São vários os exemplos trazidos pelo Conselho de Estado, podendo-se destacar os seguintes: proibição dos agentes públicos de manifestação das crenças religiosas em suas funções; a lei de 15 de março de 2004 (proibição símbolos religiosos ostensivos nas escolas); a decisão do Conselho de Estado que valida a recusa do Ministro do Interior de pedido de aquisição da nacionalidade francesa por mulher que usava burca; na área civil, o uso do véu islâmico tomado em consideração para fins de divórcio, por ser considerado um excesso da prática religiosa; dispositivos que proíbem a dissimulação voluntária da face, de maneira genérica, especialmente por motivos de segurança e necessidade de identificação das pessoas. Para o Conselho de Estado, haveria também meios indiretos para sancionar a coerção ao uso do véu integral, como os delitos de violência física ou psicológica ou, no caso de menores, jurisprudência sobre a suspensão do direito a visita de pais em razão de pressão moral para o uso do véu integral. A Assembleia Nacional julgou que os instrumentos jurídicos existentes deveriam ser sistematizados e reforçados. No caso dos serviços públicos, observou que não existia uma disposição que proibisse a dissimulação da face pelos usuários destes serviços. Embora a Carta da Laïcité previsse disposições que demandavam a limitação da expressão das convicções religiosas pelos usuários (por razões de neutralidade, ordem pública, segurança saúde, dentre outras), este documento apenas possuía efeitos declaratórios, não implicando deveres jurídicos. Apenas o setor escolar, dentre os serviços públicos, apresentava um impedimento ao uso do véu integral, com base na lei de 15 de março de 2004. O relatório da Assembleia mapeou também as vias jurídicas existentes para endereçar os diferentes tipos de coerção associadas ao uso do véu integral. Em se tratando do caso do porte do véu imposto às menores, observa-se que, em processos contenciosos de guarda dos filhos, o juiz já levava em consideração o fato de os pais imporem aos filhos uma “prática extrema da sua religião”. Neste sentido, são citados casos em que a visita dos pais às filhas foi suspensa, na medida em que o genitor impunha-lhes o uso do véu muçulmano (simples, neste caso). Assim, a Missão conclui que o juiz civil protege de maneira eficaz as menores das pressões a que possam ser submetidas, mas acredita que esta proteção pode ser reforçada, dando-se atenção particular aos filhos de mulheres que portam o véu integral. No caso das mulheres vítimas de violência dos seus maridos, também na área civil, constata que a prática de violência conjugal, somada à imposição do uso do véu, foram fundamentos aceitos em uma ação de divórcio por culpa. Na área penal, entende que não havia uma resposta adequada à coerção ao uso do véu, pois as respostas possíveis, de classificação do ato como ameaça ou violência, não eram adequadas. Justifica-se que, nem

93 sempre, a coerção se traduz por uma ameaça. No caso do delito de violência, por sua vez, refere-se a uma situação única de violência, e não a uma situação durável. Assim, a Missão indica que a proposição de lei sobre violência contra a mulher, já depositada na Assembleia Nacional, poderia incluir esta hipótese no grupo de violência psicológica (proposição nº 9)65. Finalmente, em relação às pressões coletivas, na lei de imprensa, que prevê vários casos de provocação à prática de crimes, salientou a necessidade de incluir sanção penal à provocação ao uso do véu (proposição nº 10)66. Ademais, concluiu que instrumentos jurídicos existentes contra práticas sectárias poderiam ser utilizados para o caso do véu integral. A decisão do Conselho Constitucional menciona apenas que, até então, as regras existentes se limitavam a situações pontuais com fins de proteção da ordem pública.