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Os debates na Itália sobre a preservação de monumentos: restaurar e conservar

Capítulo 1. O monumento e as principais tendências de intervenção: conservar ou restaurar?

1.3 Os debates na Itália sobre a preservação de monumentos: restaurar e conservar

O terceiro movimento importante no âmbito das teorias da preservação, que terá um grande impacto nas atuais teorias sobre a restauração, ocorre na Itália da segunda metade do século XIX. Camillo Boito (1836-1914)49 é reconhecido por diversos autores50 como o formulador da primeira importante teoria do restauro que tenciona a oposição entre “reintegração estilística” e conservação, ou “artisticidade” e “historicidade”, formuladas, respectivamente, por E. E. Viollet-le-Duc e J. Ruskin. (CHOAY, 2001, p. 164)

A tendência inaugurada por Boito, denominada “restauro moderno”, constitui uma proposta intermediária entre as duas anteriores. Utiliza a conservação como método, mas aceita com limitações a restauração, sobretudo como forma de consolidação dos bens históricos. Admite contradições em suas próprias teorias, uma vez que considera a restauração um assunto em formação (MACARRÓN, 2008, p. 53-4). Boito recomenda a não reintegração de obras inacabadas, como proposto por Viollet-le-Duc, devendo-se evitar adições e renovações, que quando ocorrem devem

49 Camillo Boito foi professor de arquitetura, onde se empenhou na renovação do estudo do desenho e do

restauro. Aprofunda os seus conhecimentos com viagens pela Itália e Europa.

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ser identificadas. Manifesta-se contrário aos restauros estilísticos que falsificavam os bens e considera intervenções efetivas apenas quando necessário. Propõe a manutenção do edifício e que todas as partes do monumento sejam respeitadas como testemunhos da história e do tempo à semelhança de Ruskin, mas sem deixá- lo cair em ruínas passivamente. (CHOAY, op. cit., p. 165)

Esta nova perspectiva de interpretação do restauro, resultado da sua experiência profissional, é apresentada no III Congresso de Arquitetos e Engenheiros Civis em Roma, no ano de 1883. Em 1884, publica o livro Os restauradores, fruto de uma conferência realizada durante a Exposição de Turim. Entre suas mais importantes obras de restauração, pode-se destacar a Igreja e Campanário dos Santos Maria e Donato em Murano, a Porta Ticinese, em Milão, entre 1856-8 e a Basílica de Santo António em Pádua, em 1899.(KÜHL, 2008 In: BOITO, 2008/1884, p. 21)

Imagem 17. Camilo Boito.

Fonte: http://www. answers.com. Imagem 18. Porta Ticinese (1865) / Camilo Boito – Milano. Fonte: Giovanni Dall’orto.

O impacto de suas formulações é tão grande que, inicialmente, o Ministério da Instrução Pública da Itália assume suas formulações a título de recomendação e, posteriormente, o governo italiano estabelece uma lei para a conservação dos monumentos e dos objetos de antiguidade e arte. (KÜHL, op. cit, p. 21)

Entre os princípios fundamentais dessa lei, destacam-se: as intervenções restauradoras devem ser limitadas, mas caso sejam executadas têm de ser bem identificadas; as partes antigas e as novas serão diferenciadas e visíveis; a distinção entre os materiais modernos e os originais é necessária; as partes eliminadas serão expostas em lugar próximo ao monumento restaurado; todo esse trabalho deve ser registrado e acompanhado de fotografias das diversas etapas, e estar disponível na própria obra ou em local público próximo; a data de execução das intervenções na edificação será gravada juntamente com uma epígrafe descritiva da intervenção. (Ibid., p. 21)

Luca Beltrami (1845-1933), arquiteto, restaurador, historiador e crítico de arte, foi aluno de Boito e pôs em prática suas teorias, efetuando algumas adequações. Suas formulações conceituais utilizam o método conhecido por “restauração histórica”. Admitindo a reconstrução, ele recomenda que este tipo de intervenção seja executada a partir de levantamento histórico, desenhos e plantas, sem as inovações e analogias que o restauro estilístico adotava. No entanto, considera que a reconstituição do objeto deve ser descartada quando ocorre sua destruição, ao contrário do que propunha Viollet-le-Duc. (KÜHL, 1998, p. 192)

Gustavo Giovannoni51 (1873-1947) é reconhecido pela literatura referente ao

patrimônio como o principal discípulo de Boito, a partir de cuja teoria reelabora alguns dos procedimentos metodológicos da “restauração científica”, por entender que a ação do restauro vai além dos problemas da estética do monumento. Acrescenta ao método inicial estudos documentais mais sistematizados, que visem a conhecimentos históricos mais fundamentados. (CHOAY, op. cit., p. 165)

O equilíbrio entre a história e a estética objetiva propiciar interpretações e decisões projetuais mais conscientes quanto às intervenções em monumentos. Embora o

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Arquiteto, urbanista, engenheiro civil, historiador e crítico de arquitetura, Giovannoni dedicou sua vida profissional à carreira docente, sendo o responsável pela cadeira de “Arquitetura Geral” na Faculdade de Engenharia de Roma, e a pesquisa sobre arquitetura italiana e restauro, temas sobre os quais escreveu várias publicações.

método seja bastante rigoroso, nem sempre foi bem sucedido, pois depende da interpretação efetuada pelo arquiteto ou responsável, “(...) comportando uma alta dose de subjetividade”. (CHOAY, op. cit., p. 192)

Imagem 20. MACRO (Museu de Arte Contemporânea de Roma). Fonte: http://es.museiincomuneroma.it.

Imagem 21. Palazzo Clementine (1567). Fachada de Gustavo Giovannoni (1937). Fonte: http://www.comune.orvieto.tr.it.

Giovannoni tem especial preocupação com as estruturas, com os materiais utilizados na construção e com as técnicas construtivas, enfatizada por sua formação na área da engenharia. Defende a utilização de técnicas modernas, inclusive a utilização de concreto armado, em intervenções de consolidação, reparação e reforço do edifício, de modo a aumentar a resistência da construção. (KÜHL, 1998, p. 198)

Manifesta-se contra os acréscimos, aos quais chama de “restauro de inovação”. Quando absolutamente necessários, propõe que sejam identificados e datados, através da utilização de novos materiais que se adaptem harmoniosamente aos originais. No entanto os complementos que se sobrepõem no edifício devem ser respeitados e identificados, podendo ser removidas partes sem valor que não afetem sua interpretação. (Ibid., pp. 198-9)

Outra importante contribuição de Giovannoni para a área de patrimônio é a recuperação e valorização da dimensão urbanística na restauração. Para ele o urbanismo é um “complemento social” fundamental para a compreensão do caráter e identidade de um determinado local. (CHOAY, op. cit., p. 194)

Gustavo Giovannoni tem participação destacada na Conferência de Atenas de 1931, escrita no âmbito da 1ª Conferência Internacional para Conservação dos Monumentos Históricos, organizada pela Sociedade das Nações, do Escritório Internacional dos Museus, ainda restrita à Europa. A Carta define diretrizes para a proteção e salvaguarda de monumentos. (KÜHL, 1998, p. 199)

A teoria proposta por Giovannoni foi reconhecida e muito difundida na Itália após a publicação da Carta do Restauro de 1932, realizada pelo Conselho Superior de Antiguidades e Belas Artes, que pretendia atualizar e estabelecer parâmetros metodológicos para as diversas regiões do país, oferecendo um guia aos profissionais, sobretudo arquitetos que coordenavam as atividades de restauro e conservação. (Ibid., p. 198)

Para alguns autores, Giovannoni é o principal expoente das teorias do restauro na primeira metade do século XX. Apesar disso suas concepções entram em declínio após a Segunda Guerra, talvez em função da escala das destruições – e portanto, da escala em que se colocava o desafio da reconstrução (ELIAS, 2002, p. 100).

Após a segunda Guerra Mundial, importantes formulações sobre o restauro serão desenvolvidas na Itália, repercutindo na elaboração da Carta de Veneza, em 1964. Segundo Giovanni Carbonara (1997), Roberto Pane52 foi o primeiro a formular, em 1948, os fundamentos da restauração crítica, dada a escala das destruições promovidas pela Guerra e em oposição às concepções do “restauro científico” ou “filológico”, de Giovannoni. Posteriormente, seus trabalhos foram aprofundados por Renato Bonelli53 (1963), e Cesare Brandi (1963).

Para alguns autores não há divergências entre a restauração crítica e a teoria brandiana. Ao contrário, as reflexões de Bonelli e Pane “encontraram no pensamento brandiano ulteriores motivos de comprovação e de sólido alargamento conceitual”( CARBONARA, 2003 in BRANDI, 2008, p. 9).

O restauro crítico propõe uma reelaboração teórica, de caráter estético e filológico, em decorrência da crise teórico-metodológica evidenciada pelos danos decorrentes da Segunda Guerra Mundial. Cada intervenção deve constituir um caso em si, não classificável em categorias (liberação, inovação, recomposição, etc.). Será, portanto, a própria obra, a partir do juízo crítico do restaurador e de sua sensibilidade histórico-crítica, competência técnica e conhecimento de história da arte e estética, “a sugerir ao restaurador a via mais correta a ser empreendida” (KUHL, 2008, Nota da Tradutora, in BRANDI, 2008/1963).

Como já havia indicado Beatriz Kühl (2005):

Deu-se maior ênfase aos valores formais do que no período anterior – em que predominou o valor documental da obra –, sem desrespeito, porém, aos aspectos históricos e às várias fases por que passou o monumento ao longo de sua vida. (KUHL, 2005)

Segundo essa autora, Roberto Pane considera prioritário que, antes de qualquer intervenção, seja realizada uma análise crítica visando a determinar se o monumento pode ou não ser considerado artístico. Somente após esse reconhecimento deve-se recuperá-lo eliminando todas as partes adicionadas ao longo de sua história, libertando, assim, sua “verdadeira forma”. Defende que as

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Renato Pane foi figura de destaque no cenário intelectual italiano, polemista. Após a Segunda Guerra Mundial escreveu Architteture e arti figurative, em 1948. Dedicou-se à arquitetura, planejamento urbano e ambiental.

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Renato Bonelli escreveu Principi e Metodi nel Restauro dei Monumenti, Bolletino dell’Instituto Storico Artístico e Restauro anni ‘80: tra restauro critico y conservazione integrale. In: Quaderni dell’Istituto di Storia dell’Architettura.

partes faltantes ou lacunas devem ser preenchidas com a inserção de novos elementos sem pretender recuperar o espírito criador do artista, iludindo os leigos (KUHL, 2005).

Entretanto, se o restauro, segundo a Teoria do Restauro de Brandi, só é aplicável a objetos reconhecidos como obra de arte, então o restauro só pode privilegiar a instância estética (imagem, consistência material, espacialidade própria da obra – Unidade Potencial) (CARBONARA, 2006, p. 36).

A reflexão de Cesare Brandi (1906-1988) manifesta uma dívida implícita no que concerne à contribuição teórica de Aloïs Riegl, (...) nos enunciados da restauração entendida como ‘ato de cultura’ (Renato Bonelli) e também nas afirmações do “restauro crítico”. (CARBONARA, 2003. In: BRANDI, 2008/1963, p. 9)

E mais adiante:

(...) a Teoria não se coloca em contraste com as formulações do ‘restauro crítico’, mas resolve algumas de suas indicações num quadro mais amplo, acolhendo muitos aspectos qualificantes e inovadores, como a prevalência dada à instância estética, junto a numerosas objeções contra as consolidadas certezas do ‘restauro científico’ ou ‘filológico’ do início do século XX. (Ibid., p. 13)

É relevante sublinhar que as teorias posteriores a Viollet-le-Duc e Ruskin são formas – ou tentativas − de conciliar dois pensamentos, em princípio antagônicos, mas de suma importância para pensar o patrimônio, sua preservação e os dilemas da relação entre presente, passado e futuro. Boito contribui de maneira significativa, marcando a separação do que significava restaurar e conservar. Esses princípios serviram de base às teorias mais modernas que têm sido reformuladas e adaptadas pelos seus seguidores e alunos, dando sustentação às modernas tendências que serão abordadas no quinto capítulo.

Essas tendências têm a necessidade de formular métodos de intervenção, que determinam posturas distintas frente ao monumento e acabam, às vezes, por se configurar como “escolas”. Compreendendo que os processos históricos de consolidação dessas posturas possuem graus de complexidades que definem a valorização de uma em detrimento da outra, embora ambas convivam até hoje nos projetos de preservação, é preciso clarificar as distinções conceituais entre a conservação e a restauração.

Embora a restauração seja um procedimento que visa à conservação da obra, elas não devem ser utilizadas como sinônimos. Para evitar dúvidas, a Carta da Conservação e Restauração dos Objetos de Arte e Cultura, também conhecida como Carta do Restauro Italiana, de 1987, define os conceitos de conservação e restauração, embora afirmando que conservação e prevenção são noções relacionadas e inseparáveis. A conservação é o conjunto de ações realizadas para assegurar a maior duração possível para a configuração material do objeto. Já a restauração é definida por medidas que intervêm diretamente sobre a obra para deter danos e degradações, respeitando a fisionomia do bem (MACARRÓN, 2008, p. 54).

Localizar essas tendências e as maneiras pelas quais propõem a intervenção nos monumentos é fundamental para que se possa mapear, o que ensaiaremos no capítulo quarto, as referências dos arquitetos e instituições brasileiras que atuam na área da preservação. Deve-se destacar que Lina Bardi sai da Itália em 1947, mas mantém contato com o debate italiano por meio de publicações e cartas. A esse debate ela fará referência, teórica e projetual em vários dos seus projetos, como veremos no quinto capítulo.

CAPÍTULO 2. Arquitetura e Urbanismo Moderno e as contribuições