• Nenhum resultado encontrado

3 OS ACONTECIMENTOS NO JORNALISMO E O ACIONAMENTO DAS

3.1 OS DESASTRES COMO ACONTECIMENTOS

“As vítimas contaram que de repente, no fim da tarde, escutaram um estrondo e logo após viram uma movimentação de terras. Procuraram se proteger como dava, subiram em carros, caminhões, casas e muros”. Esse foi o relato do tenente dos

bombeiros Roberto Dutra para os repórteres do Estado de Minas no dia do rompimento da barragem da mineradora Samarco. Segundo a reportagem13, ele foi um dos primeiros a chegar para o resgate em Bento Rodrigues e ficou impressionado com o cenário que encontrou. A declaração dada por ele sobre o que ouviu das vítimas evidencia uma das características mais marcantes de qualquer desastre: a irrupção abrupta.

Esse traço é destacado por Lozano Ascencio (1995) que define as catástrofes14 como eventos que, gerados pela natureza, pela ação humana ou, até mesmo, por algo alheio ao meio ambiente, mudam repentinamente aquilo que era até então invariável e que se configura na medida em que é percebido e expressado pelos sujeitos inseridos no contexto. Além de totalmente destrutiva e repentina, uma situação catastrófica caracteriza-se pela rapidez, violência e magnitude com que acontece. “A catástrofe, pelo fato de existir, subverte, transforma, modifica, desequilibra e regenera um estado estável de coisas” (LOZANO ASCENCIO, 1995, p. 91, tradução nossa)15. Mais do que isso, ao interferir em um sistema até então sem variações, esse tipo de evento produz modificações irreversíveis, pois

A formação de catástrofes envolve o salto de um estado para outro, a conservação ou geração da forma observável (da mudança e do que muda), e a impossibilidade formal e material de retornar ao estado anterior. A estabilidade é modificada, desenvolvida, expandida pela aquisição de outra forma (LOZANO ASCENCIO, 1995, p. 65, tradução nossa)16.

Assim, uma catástrofe chega subitamente e modifica o presente sem que se possa voltar atrás. Essa definição guarda semelhanças com o conceito de acontecimento de Quéré (2005), que evidencia justamente seu caráter inesperado e inaugural ao afirmar que “ele introduz, necessariamente, alguma coisa de novo ou inédito. [...] O acontecimento introduz uma descontinuidade, só perceptível num fundo de continuidade” (QUÉRÉ, 2005, p. 61). O autor também ressalta que nem tudo que acontece é necessariamente descontínuo, afinal, também existem

13 Disponível em:

https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2015/11/05/interna_gerais,705042/bombeiro-relata- destruicao-em-bento-rodrigues-u201ctsunami-de-lama.shtml

14 O termo catástrofe é utilizado pelo autor e aqui é adotado como sinônimo de desastre.

15 “La catástrofe, por el hecho de existir, subvierte, transforma, cambia, desequilibra y regenera un

estado de cosas estable”.

16 “La formación de catástrofes supone el salto de un estado a otro, la conservación o generación de

la forma observable (del cambio y de lo que cambia), y la imposibilidad formal y material de retornar al estado anterior. La estabilidad se modifica, se desarrolla, se expande adquiriendo otra forma”.

acontecimentos previstos. Ainda assim, mesmo nestes casos emerge alguma novidade. Entretanto,

Os acontecimentos importantes são, em grande parte, inesperados. Quando se produzem, não estão conectados aos que o precederam nem aos elementos do contexto: são descontínuos relativamente a uns e a outros e excedem as possibilidades previamente calculadas; rompem a seriação da conduta ou a do correr das coisas (QUÉRÉ, 2005, p. 61).

Nesse sentido, Quéré (2005) defende a ideia de que todo acontecimento se constitui como uma ruptura do quadro de sentidos vigente, abrindo novas possibilidades de significação ao romper com a lógica esperada. Ainda outros autores trabalham a noção a partir dessa perspectiva, como Rodrigues (2016, p. 51), quando afirma que “é acontecimento tudo aquilo que irrompe na superfície lisa da história de entre uma multiplicidade aleatória de factos virtuais”.

Justamente por essa característica abrupta e desestabilizadora que os desastres podem ser entendidos como acontecimentos, guardando ainda outras particularidades, como o grande poder de afetação que carregam. A capacidade de interferir na experiência individual ou coletiva suscitando reações é o que justifica sua singularidade “porque o verdadeiro acontecimento não é unicamente da ordem do que ocorre, do que se passa ou se produz, mas também do que acontece a alguém. Se ele acontece a alguém, isso quer dizer que ele é suportado por alguém” (QUÉRÉ, 2005, p. 61).

Em perspectiva semelhante, França (2012, p. 45) assinala que o acontecimento “se passa no domínio da experiência e se realiza - ou não - a partir de seu poder de afetação na ação dos sujeitos, de sua capacidade de interferência no quadro da normalidade e das expectativas previstas no desenrolar do cotidiano de um povo”. Esse entendimento sobre o poder de afetação dos acontecimentos também está presente no horizonte da definição de desastres a partir de um ponto de vista sociológico, o qual considera todo o processo social que envolve a compreensão dos desastres como “[...] acontecimentos coletivos trágicos nos quais há perdas e danos súbitos e involuntários que desorganizam, de forma multidimensional e severa, as rotinas de vida (por vezes, o modo de vida) de uma dada coletividade” (ZHOURI, 2016, p. 37).

Retomando a perspectiva de Quéré (2005), é precisamente na ideia de afetação que está uma das chaves para compreender a forma a partir da qual o autor entende o acontecimento, que carrega consigo a dimensão da experiência, para distingui-lo do fato. Babo-Lança (2005, p. 85) afirma que o autor adota uma

abordagem experiencial do acontecimento para “romper com a apreensão empirista do acontecimento que tende a tratá-lo como facto positivo no mundo, individualizável numa trama causal e num contexto preestabelecido de sentido”. Assim, propõe uma inversão de perspectivas, entendendo que, mais do que uma ocorrência individual dentro de uma trama causal, o acontecimento, ao entrar no quadro da experiência e ser sentido e interpretado “revela uma situação, desvenda possibilidades e eventualidades, produz efeitos e significações mediante as consequências que lhe advém” (BABO-LANÇA, 2005, p. 85).

3.2 O PODER HERMENÊUTICO DO ACONTECIMENTO EM MARIANA: CAMPOS