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Os direitos fundamentais da infância e da adolescência

3 DESPROVIDOS DE DIREITOS, IMORAIS E DELINQUENTES: AS

4.1 Crianças e adolescentes no processo constituinte: fragmentos de luz sobre os

4.1.1 Concepções, abrangência, direitos assegurados, serviços e outros mecanismos

4.1.1.1 As definições preliminares do ECA e as rupturas com o menorismo

4.1.1.1.1 Os direitos fundamentais da infância e da adolescência

Os direitos à vida e à saúde são agrupados no Capítulo I do Titulo II da lei, composto por sete artigos. Em suma, é descrito que estes direitos devem ser concretizados mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência (artigo 7º). Para tanto, são previstos serviços e atendimentos que envolvem o SUS, casas de detenção, empregadores de gestantes e estabelecimentos de saúde públicos e privados, são eles: a) atendimento pré-natal à gestante (art. 8º); b) atendimento perinatal à parturiente, de preferência com o mesmo médico da fase pré-natal (art. 8º, § 2º); c) apoio alimentar à gestante e à nutriz (art. 8º, § 3º); d) assistência psicológica à gestante e à mãe, no período pré e pós-natal, inclusive às mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção (art. 8º, § 4º); e) oferecimento de condições adequadas ao aleitamento materno, inclusive aos filhos de mães submetidas à medida privativa de liberdade (art. 9º); f) atendimento integral e acesso universal e igualitário ao SUS (art. 11); g) atendimento especializado aos portadores de deficiência (art. 11, § 1º); h) oferecimento de medicamentos, próteses e outros recursos relativos ao tratamento, habilitação ou reabilitação (art. 11, § 2º); i) vacinação nos casos recomendados pelas

autoridades sanitárias (art. 14); j) permanência (do neonato) junto à mãe, por meio de alojamento conjunto (art. 10, V); k) presença em tempo integral dos pais nos casos de internação (art. 12); l) registro (pelos hospitais) das atividades desenvolvidas, através de prontuários individuais, pelo prazo de dezoito anos (art. 10, I); m) identificação do recém-nascido mediante o registro de sua impressão plantar e digital e da impressão digital da mãe (art. 10, II); n) exames visando ao diagnóstico e à terapêutica de anormalidades no metabolismo do recém-nascido e prestação de orientação aos pais (art. 10, III); o) fornecimento de declaração de nascimento onde constem necessariamente as intercorrências do parto e do desenvolvimento do neonato (art. 10, IV); p) comunicação obrigatória ao Conselho Tutelar de casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente (art. 13); q) programas de assistência médica e odontológica para a prevenção das enfermidades que ordinariamente afetam a população infantil, e campanhas de educação sanitária para pais, educadores e alunos (art. 14); r) encaminhamento, à autoridade judiciária, de caso de que tenha conhecimento de mãe ou gestante interessada em entregar seu filho para adoção (art. 13, § único)

O não oferecimento ou a oferta irregular destes serviços e atendimentos podem acarretar ações de responsabilidade (por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao adolescente) aos chefes do Poder Executivo (artigo 208, VII). Na hipótese de infração ao estabelecido nos itens “j”, “l”, “m”, “n” e “o” (artigos 10 e 228) é prevista pena de detenção de seis meses a dois anos para os encarregados de serviço ou para dirigentes de estabelecimento de saúde. Estes poderão receber ainda pena de multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência (artigo 245), se for infringido o disposto no item “p”.

Assim, pois, o Estatuto não apenas confere dois direitos humanos dos mais relevantes à infância e à adolescência, como estabelece várias obrigações para o Estado e para instituições diversas, além de prever penalidades para os casos de não cumprimento da lei.

Porém, o item “r”, inserido no ECA em 2009, pela Lei nº 12.010, chamada de “Lei da Adoção”, parece-nos discutível, suscitando-nos dúvidas se tal medida visa coibir ou incentivar a entrega de filhos para a adoção. Em outras palavras, esta inserção seria uma atualização da “política das rodas”, extinta legalmente no país pelo Código de Menores de 1926?

Nossa inquietação parte do seguinte raciocínio: o § 1º do artigo 39 do ECA define a adoção como uma medida excepcional e irrevogável, aplicável somente depois de esgotados todos os recursos para a manutenção da criança ou adolescente em sua família, natural24 ou extensa25. Contudo, como “esgotar recursos”, por exemplo, no caso de uma pessoa que, ainda no hospital e imediatamente após o nascimento de seu filho, decide entregá-lo? Não identificamos na Subseção IV do ECA, intitulada “Da adoção” (Seção III do Capítulo III), um detalhamento sobre os procedimentos a serem adotados pelo Poder Judiciário nestas circunstâncias. Referem-se a situações como esta, apenas dois artigos: o 8º, § 4º, que confere o direito à assistência psicológica às mães ou gestantes que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção (item “d” da página anterior); e o artigo 258-B, que prevê pena pecuniária (mil a três mil reais) para médicos, enfermeiros ou dirigentes de estabelecimentos de saúde que descumprirem o expresso no item “r”.

Digiácomo e Digiácomo (2010, p. 18) interpretam o disposto neste item como algo destinado a “coibir práticas ilegais, abusivas e mesmo criminosas como a “adoção à brasileira” e a entrega de filho com vistas à adoção mediante paga ou promessa de recompensa”. Para os autores, ela garantiria às mães ou gestantes o direito de receber orientação psicológica e jurídica e, à criança, a identificação de seus pais. Mesmo assim, permanecem-nos suspeitas acerca desta determinação no cotidiano, onde muitas vezes coexistem atendimentos médicos precários; negligência, imprudência e imperícia dos agentes públicos, inclusive os do Poder Judiciário; entidades da sociedade civil que incentivam, não raro com campanhas midiáticas, a adoção; gestantes desamparadas; serviços insuficientes de assistência social etc. Destarte, não seria grande a probabilidade desta ação ser corrompida e servir para o afastamento precipitado de crianças, especialmente pobres, de seus pais biológicos?

Como contraponto, podemos argumentar ainda, que não é tão simples abandonar um adulto, ou seja, invariavelmente não se recorre ao Poder Judiciário para entregar definitivamente um avô, um pai, uma esposa ou qualquer pessoa indesejada. Aliás, existe grande comoção e certa condenação moral quando idosos são confiados a instituições. Não obstante, por que no caso da criança isso é tão facilitado? Ao invés

24 Segundo o artigo 25 do ECA, família natural é a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes.

25 Família extensa ou ampliada é “aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade” (artigo 25, parágrafo único).

disso o Estado não deveria envidar esforços para a permanência da criança em sua família de origem, dificultando sua retirada?:

b) os direitos à liberdade, ao respeito e à dignidade;

Seis artigos, situados no Capítulo II do Título II, abordam os direitos à liberdade, ao respeito e à dignidade. O primeiro deles, o artigo 15, define a posse destes três direitos como algo inerente a pessoas em processo de desenvolvimento, descritas ainda como “sujeitos de direitos civis, humanos e sociais”. Logo, a criança e o adolescente não são concebidos pelo Estatuto apenas como indivíduos entre 0 e 18 anos de idade, mas como seres humanos em formação que detêm a posse de diversos direitos. Os artigos 6º e 100, inciso I, acentuam esta concepção:

Art. 6º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do

adolescente como pessoas em desenvolvimento. [...]

Art. 100. Na aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários. Parágrafo único. São também princípios que regem a aplicação das medidas: I -

condição da criança e do adolescente como sujeitos de direitos: crianças e adolescentes são os titulares dos direitos previstos nesta

e em outras Leis, bem como na Constituição Federal. (BRASIL, 1990. Não paginado, destaque nosso).

Encontra-se aqui, na nossa avaliação, um ponto de ruptura fundamental em relação à legislação menorista, ou seja, os antigos códigos de menores não somente negavam direitos como tratavam a infância e a adolescência como objetos (de intervenções judiciais e governamentais) passíveis de serem retirados da família e depositados em instituição. A propósito, por meio de alterações desencadeadas pela já citada Lei nº 12.010, o ECA passou a limitar a intervenção estatal na vida de crianças e adolescentes, determinando que ainda que ela se faça necessária, deverá privilegiar a permanência destes indivíduos com seus familiares e priorizar seus interesses:

Artigo 100. [...]

IV - interesse superior da criança e do adolescente: a intervenção

deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do adolescente, sem prejuízo da consideração que for

devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto; [...].

VII - intervenção mínima: a intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas autoridades e instituições cuja ação seja

indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança e do adolescente;

VIII - proporcionalidade e atualidade: a intervenção deve ser a

necessária e adequada à situação de perigo em que a criança ou o

adolescente se encontram no momento em que a decisão é tomada; IX - responsabilidade parental: a intervenção deve ser efetuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o adolescente;

X - prevalência da família: na promoção de direitos e na proteção da criança e do adolescente deve ser dada prevalência às medidas

que os mantenham ou reintegrem na sua família natural ou

extensa ou, se isto não for possível, que promovam a sua integração em família substituta. (BRASIL, 1990. Não paginado, destaque nosso).

O direito à liberdade, especificamente, outorga sete prerrogativas à criança e ao adolescente: a) ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários (artigo 16, I); b) opinar e se expressar (artigo 16, II); c) possuir crença e praticar culto religioso (artigo 16, III); d) brincar, praticar esportes e divertir-se (artigo 16, VI); e) participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação (artigo 16, V); f) participar da vida política, na forma da lei (artigo 16, VI); g) buscar refúgio, auxílio e orientação (artigo 16, VII). Importante mencionar que não há previsão de penalidades para o desrespeito a qualquer destes itens.

O direito ao respeito, por sua vez, consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente e compreende a preservação de sua imagem, identidade, autonomia, valores, ideias, crenças, de seus espaços e objetos pessoais (artigo 17). A violação a este preceito, dependendo das circunstâncias e da natureza do ato, poderá ocasionar multas e detenção de seis meses a dez anos (artigos 232, 240, 241; 241-A, 241-B, 241-C e 241-D, 243, 244, 244-A, 244-B, 252, 253), suspensão de programação de emissora (artigo 254) e suspensão de espetáculo ou fechamento de estabelecimento de diversão por até 15 dias (artigos 255, 256, 258).

Quanto ao direito à dignidade, o artigo 18 proíbe o emprego de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor na relação com crianças e adolescentes e atribui a todos (Estado, sociedade e família, isto é, adultos e autoridades em geral) o dever de colocá-los a salvo destas mazelas. A pena imposta pelo ECA a tais práticas, no entanto, é consideravelmente leve: multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência (artigo 249) e advertência (artigo 18-B).

Em 2014 foram incluídos no Estatuto, por meio da Lei nº 13.010, os artigos 18- A e 18-B. O primeiro coloca que o indivíduo menor de dezoito anos de idade tem o direito de ser educado e cuidado sem o uso de castigo físico, que passa a ser classificado como uma ação de natureza disciplinar ou punitiva, aplicada com o uso da força física, que resulte em sofrimento físico e/ou lesão. O artigo proíbe também que crianças e adolescentes sejam submetidos (por qualquer pessoa encarregada de sua guarda, responsabilidade ou proteção: pais, integrantes da família ampliada, agentes públicos executores de medidas socioeducativas etc.) a tratamento cruel ou degradante, quer dizer, a conduta que humilhe, ameace gravemente e/ou ridicularize.

Complementarmente, o artigo 18-B indica que o Conselho Tutelar ficará responsável por adotar cinco providências quando verificadas as práticas descritas no artigo 18-A: a) encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família; b) encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico; c) encaminhamento a cursos ou programas de orientação; d) obrigação de encaminhar a criança a tratamento especializado; e) advertência.

Todavia, ao contrário do se anuncia num primeiro momento, este artigo não representa um incremento tão significativo: o Conselho Tutelar já detinha a atribuição de atuar em casos referentes à utilização de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante, tendo em vista que os artigos 98 e 136 do ECA preveem, desde 1990, de forma genérica, que o órgão atuará sempre que os direitos reconhecidos em lei forem ameaçados ou violados pela falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável.

Igualmente, todas as medidas aplicáveis nestes casos já constavam do Título IV do ECA, denominado “Das medidas pertinentes aos pais ou responsáveis” que, aliás, são relativamente brandas, uma vez que na hipótese de um adulto responsável infligir uma lesão em decorrência de castigo físico à criança ou ao adolescente, a intervenção prevista seria, no máximo, uma advertência ou um encaminhamento a atendimento educacional, médico ou assistencial.

As conceituações de castigo físico, especialmente e, de tratamento cruel e degradante, introduzidas no ECA, guardam certa analogia com o crime de maus tratos, previsto pelo artigo 136 do Código Penal Brasileiro:

Art. 136 - Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados

indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina:

§ 1º - Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave: Pena - reclusão, de um a quatro anos.

§ 2º - Se resulta a morte:

Pena - reclusão, de quatro a doze anos.

§ 3º - Aumenta-se a pena de um terço, se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (catorze) anos. (BRASIL, 1940, não paginado, destaque nosso).

Em linhas gerais, parece-nos difícil diferenciar situações onde ocorram ações de “natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso de força física que resulte em sofrimento ou lesão”, ou condutas que humilhem, ameacem gravemente ou ridicularizem (ECA, artigo 18-A), daquelas em que haja exposição a perigo da vida e da saúde ou de abusos de meios de coerção e disciplina (maus tratos). Parece-nos se tratar de circunstâncias bem similares, afinal, práticas sistemáticas de humilhação não podem prejudicar a saúde (psíquica) de uma criança? Castigos físicos não constituem formas de abuso dos meios de correção e disciplina?

Esta coexistência de preceitos para casos equivalentes nos coloca uma dúvida: uma eventual situação concreta deverá ser tratada a partir do ECA ou do Código Penal? Não há em nenhuma das leis citadas uma definição a este respeito. A propósito, não seria oportuna uma unificação destas disposições, ou seja, que o Estatuto incorporasse no artigo 18-B a mesma penalidade prevista para o crime de maus tratos?

Preocupa-nos que esta duplicidade possa relativizar crimes de maus tratos praticados contra crianças e adolescentes, tanto do ponto de vista da sanção para aqueles que os cometem (uma vez que o ECA, que estabelece medidas administrativas, educativas e assistenciais, é claramente mais brando que o Código Penal, que prevê prisão), quanto da comprovação do ato, já que o Estatuto suscita apenas ações de um órgão administrativo (Conselho Tutelar), enquanto o crime deve ser investigado pela polícia, analisado pelo Ministério Público e julgado pela justiça.

Cabe ponderar se não seria mais proveitoso que mudanças no ECA, como a que incorporou os artigo 18-A e 18-B – que certamente envolvem grande mobilização do Congresso Nacional, do Poder Executivo Federal e da sociedade civil – se destinassem a detalhar quais de fato seriam as obrigações do Estado, da sociedade e da família para prevenir e combater as causas das violações do direito à liberdade, ao respeito e à dignidade, considerando a fragilidade da lei quanto aos serviços e atendimentos que poderiam viabilizá-los:

c) o direito à convivência familiar e comunitária;

O direito à convivência familiar e comunitária é delineado pelo Capítulo III do Título II do Estatuto. Grosso modo, a lei estabelece que crianças e adolescentes devem ser criados e educados no seio de sua família natural e, apenas excepcionalmente, em família substituta (artigo 19). Uma disposição digna de registro, que a nosso ver representa outro ponto de ruptura com a legislação menorista, diz respeito ao fato de que a falta ou a carência de recursos materiais não mais constitui “motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar”, em outras palavras, a pobreza, por si só, deixa de ser justificativa para o afastamento familiar e a institucionalização da infância e da adolescência:

Artigo 23 [...]. § 1o Não existindo outro motivo que por si só autorize

a decretação da medida, a criança ou o adolescente será mantido em

sua família de origem, a qual deverá obrigatoriamente ser incluída em programas oficiais de auxílio. (BRASIL, 1990. Não paginado,

destaque nosso).

Como bem assinalam Digiácomo e Digiácomo (2010, p. 26), o artigo em tela tem como finalidade:

[...] erradicar a odiosa prática, consagrada à época do revogado “Código de Menores”, do afastamento da criança/adolescente de sua família natural em razão da condição socioeconômica desfavorável em que esta se encontrava, penalizando os pais como se tivessem eles optado, voluntariamente, pela miséria.

A responsabilidade por efetivar o direito à convivência familiar e comunitária foi atribuída aos pais ou responsável (aquele a quem foi cominado o dever de sustento, guarda e educação de menores de dezoito anos de idade) e ao Estado. Salienta-se que segundo o inciso III do artigo 100 do ECA, compete às três esferas governamentais do Estado brasileiro (União, Estados e municípios) a responsabilidade primária e solidária para a execução deste e de outros direitos:

[...] III - responsabilidade primária e solidária do poder público: a plena efetivação dos direitos assegurados a crianças e a adolescentes por esta Lei e pela Constituição Federal, salvo nos casos por esta expressamente ressalvados, é de responsabilidade primária e solidária das 3 (três) esferas de governo, sem prejuízo da municipalização do atendimento e da possibilidade da execução de programas por entidades não governamentais. (BRASIL, 1990. Não paginado, destaque nosso).

Contudo, são previstas apenas três obrigações estatais: a) reavaliação do acolhimento familiar ou institucional, no máximo, a cada 6 meses, devendo a autoridade judiciária competente, com base em relatório elaborado por equipe interprofissional ou multidisciplinar, decidir de forma fundamentada pela possibilidade de reintegração familiar ou colocação em família substituta (artigo 19, § 1º); b) visitas periódicas, a serem promovidas pelo responsável, à mãe ou ao pai privado de liberdade (artigo 19, § 4º); c) programas oficiais de orientação e auxílio (artigo 19, § 3º).

Verificamos aqui possíveis insuficiências: não há um detalhamento sobre quais seriam estes serviços e programas; não há previsão orçamentária ou qualquer menção acerca dos recursos a serem disponibilizados e o ente federativo que os disponibilizariam; e as ações previstas são parcas (visitas e elaboração de relatórios).

Pais, responsáveis ou terceiros violam, segundo o ECA, o direito à convivência familiar e comunitária em quatro circunstâncias: a) ao subtrair a criança ou o adolescente de seu guardião legal para colocá-los em lar substituto. A pena neste caso é de reclusão de dois a seis anos e multa (artigo 237); b) ao prometer ou efetivar a entrega de filho ou pupilo a terceiro, mediante paga ou recompensa, cuja penalidade prevista é de reclusão de um a quatro anos e multa (artigo 238); c) ao descumprir, dolosa26 ou culposamente27, os deveres inerentes ao poder familiar ou decorrente de tutela ou guarda, o que pode acarretar uma multa de três a vinte salários de referência, aplicando- se o dobro em caso de reincidência (artigo 249); d) ao promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou adolescente para o exterior, seja ignorando as formalidades legais ou objetivando a obtenção de lucro. Em qualquer das hipóteses a pena estipulada é de reclusão de quatro a seis anos e multa (artigo 239).

Portanto, das quatro penalidades previstas para os pais ou responsáveis, três estabelecem penas de prisão. Para o Estado, que como vimos, recaiu o dever de oferecer, de forma regular, ações, serviços e programas de orientação, apoio e promoção social às famílias, as hipóteses de ofensa aos direitos assegurados decorrentes do não oferecimento ou da oferta irregular destes insumos acarretam “ações de responsabilidade”.

26 De acordo com o artigo 18 do Código Penal Brasileiro, diz-se que um ato é doloso quando o “agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”.

27 Emprega-se este termo, segundo o artigo 18 do Código Penal Brasileiro, quando o agente “causa um resultado por imprudência, negligência ou imperícia”.

Considerando que o termo “ações de responsabilidade” é empregado em diversas passagens do ECA, em referência a possíveis penalidades para membros do Poder Público pela violação dos direitos assegurados a crianças e adolescentes, avaliamos ser necessário abrir parênteses para buscarmos compreender seu significado.

As disposições relativas a estas ações constam do Capítulo VII do ECA, denominado “Da Proteção Judicial dos Interesses Individuais 28 , Difusos 29 e

Coletivos30”, composto por dezessete artigos. Inicialmente, o artigo 208 elenca os direitos que comportam o amparo e a intervenção judicial. Ressalta-se que o inciso IX, que aborda a convivência familiar e comunitária, foi incorporado ao Estatuto apenas em 2009, pela lei 12.010:

Regem-se pelas disposições desta Lei as ações de responsabilidade

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