• Nenhum resultado encontrado

A questão da pretensão de universalidade dos direitos humanos no cenário do direito internacional continua como fonte de constantes e reiterados debates, porquanto inexiste um conceito cultural invariável de natureza humana, como bem observa Boaventura de Sousa Santos68. Para o sociólogo português, apesar de terem se originado como projeto emancipatório do séc. XX, o discurso dos direitos humanos no âmbito internacional foi utilizado com objetivos econômicos e geopolíticos, para imposição de valores ocidentais individual-liberalistas.

Nessa mesma linha de raciocínio, Immanuel Wallerstein69 pautou sua última obra publicada “O universalismo europeu – a retórica do poder”, discutindo o conceito de

Orientalismo difundido na obra homônima de Edward W. Said, publicada em 1978. Said,

acadêmico inglês humanista e defensor do estado palestino, denunciou a artificialidade do essencialismo particularista presente no campo acadêmico do orientalismo, que estuda o mundo islâmico. Essa postura epistemológica teria funcionado como uma justificação racional do regime colonial, respaldando a pretensão europeia de serem os únicos detentores e implementadores dos valores universais.70

O que Wallerstein critica, com base em Said71, é que as estruturas de saber do mundo moderno, fundamentadas na economia capitalista, se utilizam retoricamente de distinções binárias como universalismo e particularismo, para, de modo reducionista, relacionar a primeira categoria apenas aos dominadores, e atribuir aos dominados pertinência a segunda categoria. Como solução para esse conflito propugna Wallerstein:

É preciso que universalizemos nossos valores particulares e, ao mesmo tempo, particularizemos nossos valores universais, num tipo de troca dialética constante que nos permita encontrar novas sínteses que naturalmente são instantaneamente questionadas.72

68 SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006. p. 242-243.

69 WALLERSTEIN, Immanuel. O universalismo europeu: a retórica do poder. São Paulo: Boitempo, 2007. 70 SAID, 1978 apud WALLERSTEIN, Immanuel. O universalismo europeu: a retórica do poder. São Paulo:

Boitempo, 2007. 71 Ibid.

Também Erneto Laclau trata o Eurocentrismo como sendo uma visão política que não diferencia os valores ocidentais professados pelo Ocidente dos agentes sociais que os encarnam. No ensaio “Universalismo, Particularismo e a Questão da Identidade”73, o autor explora a questão de como o particularismo da cultura europeia do séc. XIX foi tido como uma espécie de revelação da essência humana universal, e, consequentemente, tornado objeto de expansão imperialista.

O trabalho em questão retrata que, o Cristianismo teria legado a nossa história intelectual uma lógica peculiar de relação entre a universalidade e o particular: a totalidade existe em Deus e

é inacessível a razões humana. Por isso, a escatologia divina só se faria acessível aos homens

através da encarnação do universal em um corpo em particular. Os agentes privilegiados da

história carregariam em si uma universalidade que os transcende. Essa seria a lógica subjacente

às diversas formas de eurocentrismo ao longo da história.

Nessa linha, segue discorrendo no sentido de que um dos grandes esforços da modernidade teria sido tentar superar essa lógica, substituindo Deus pela Razão. Toda relação entre universal e particular teria que ser transparente à razão humana. Assim, paradoxalmente, a cultura europeia do séc. XIX era apresentada pela expansão imperialista como expressão de uma essência humana universal, através da universalização do seu próprio particularismo.

O privilégio do agente histórico deixaria de se fundamentar em uma origem divina para se tornar simplesmente ontológico, e por isso apreensível pela razão. As resistências ao movimento imperialista eram reputadas como simples ausência de racionalidade. Observa, por fim, que a mesma ideia de privilégio ontológico teria animado os comunistas quanto à posição do proletariado na condução dos rumos da sociedade, o que terminou sendo pretexto para as ações de diversos regimes totalitários.

As concepções de democracia dos autores que traremos no próximo capítulo pretendem enfrentar o aspecto do pluralismo inerente aos efeitos da globalização, sem se arvorar da defesa de quaisquer conteúdos particulares. Cada um dos autores constrói uma concepção singular sobre democracia, o que resulta em um panorama de diferentes conclusões sobre a viabilidade de um projeto democrático fora do âmbito estatal.

Ao começar pela proposta de democracia deliberativa delineada por Jürgen Habermas em suas obras “Teoria da Ação Comunicativa” (1987) e “A inclusão do outro: estudos de teoria política”

73 LACLAU, Ernesto. Universalism, particularism and the question of identity. In: ______. Emancipation(s). London: Verso, 2007a. p. 20-30.

(2002) partimos de um corte metodológico que deixa para trás o paradigma da Filosofia do Sujeito, substituindo a referencia a uma subjetividade apriorística dos indivíduos, pelo conceito de intersubjetividade: uma subjetividade constituída mediante a interação, por meio da linguagem, cujas estruturas de busca por entendimento favoreceriam atingir o meta do consenso. A abordagem feita por Habermas do fenômeno social é permeada por uma simbiose permanente entre indivíduo e sociedade. Trata-se de defesa da existência de uma inter-relação entre os processos de formação humana em seus planos ontogenético e filogenético, inter-relação na qual Habermas enxerga uma homologia dos modelos de desenvolvimento do indivíduo e da sociedade74.

Já Axel Honneth75, discípulo de Habermas, trabalhando a categoria de reconhecimento, contribui com nosso trabalho ao identificar a gênese dos conflitos sociais em sentimentos de injustiça, vivenciados em consequência da denegação do reconhecimento que os indivíduos entendem lhes ser devido, seja no plano familiar ou social.

Para encerrar o capítulo, elegemos a concepção de democracia agonística da belga Chantal Mouffe, que em 1985, co-escreveu com Ernesto Laclau, Hegemonia e Estratégia Socialista,76 obra de ruptura com o marxismo, que se tornou referencia da chamada “Nova Esquerda”. Enquanto os teóricos liberais buscam meios de tornar as diferenças entre os indivíduos relevantes apenas na esfera privada, Mouffe77 defende sua imprescindibilidade para a democracia. Dentro dessa perspectiva, não seria possível, nem mesmo desejável, extinguir as relações de antagonismo social por meio de um consenso racional universal. Sua tese central é de que a natureza paradoxal e conflituosa da democracia liberal é a sua própria condição de possibilidade. Em assim sendo, a democracia não é definida como a realização da perfeita harmonia social, mas como a busca por formas de poder compatíveis com a preservação de ambos os valores paradoxais que lhe caracterizam: igualdade e liberdade.

74

Habermas apud MARCONDES, Danilo. A pragmática na filosofia contemporânea. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005. p. 38.

75 HONETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34, 2003. 76 MOUFFE, Chantal; LACLAU, Ernesto. Hegemony and socialist strategy: Towards a radical democratic politics. London: Verso, 1985.

5 DIFERENÇAS E O DISCURSO DA JUSTIÇA