• Nenhum resultado encontrado

Capítulo III. Direitos Humanos em tempos de Globalização

3.1 Os Direitos Humanos e sua evolução

Ao afirmar que os homens são livres e iguais, sendo o Estado civil uma criação artificial que não tem outra finalidade além da de permitir a mais ampla explicitação da liberdade e da igualdade naturais, Jonh Locke instituiu a concepção de que os homens têm direitos anteriores à formação do Estado que, sendo sua criação, estaria, por esta razão, limitado pelos Direitos naturais de que o homem era detentor.63

A Revolução Francesa e a Americana deram origem a declarações e constituições que traziam no seu bojo esta idéia revolucionária: a idéia de que o homem era um ser racional, emancipado e livre para decidir seu próprio destino e que, portanto, tinha direitos inatos que mereciam proteção.

Segundo esta concepção, o homem se associava com a finalidade de regular a vida em comum sem, contudo, abrir mão de alguns direitos básicos. Houve, portanto, uma adaptação do Contrato Social, como proposto por Rousseau: um entendimento diferente e que valorizava o homem, uma vez que lhe assegurava a proteção de seus direitos.

Na Declaração de Direitos de Virgínia (1776) foi estabelecido que

[...] todos os homens são por natureza igualmente livres e independentes e têm certos direitos inatos de que, quando entram no estado de sociedade não podem, por nenhuma forma, privar ou despojar a sua posteridade, nomeadamente o gozo da vida e da liberdade, com os meios de adquirir e possuir a propriedade e procurar e obter a felicidade e segurança.

No mesmo sentido, em 1789, na França, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão estabelecia que “os homens nascem e são

63BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 6ª Tiragem. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:

livres e iguais” e que o fim de toda “associação política é a conservação dos Direitos naturais e imprescritíveis do homem”.64

Como demonstrado por Kant, todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas. O homem como espécie e cada homem em sua individualidade é propriamente insubstituível: não tem equivalente, não pode ser trocado por coisa alguma.65

As características que distinguiriam o homem e sobre as quais se funda a sua dignidade seriam a liberdade, a autoconsciência, a sociabilidade, a historicidade e a unicidade existencial do ser humano. A liberdade faria do homem um ser autônomo; a autoconsciência o faria um ser reflexivo; a sociabilidade se relaciona com o desenvolvimento de suas capacidades; a historicidade demonstra que o ser humano vive em constante transformação, aprendendo com o passado e projetando para o futuro, e a unicidade existencial demonstra que cada ser é único. Assim, os Direitos Humanos pertenceriam à categoria dos Direitos do homem, ser único, dotado destas características, e que, por ser único, merece proteção.

Reale66 constata que

[...] o homem, através do processo dialógico da história, vai tomando consciência de determinados valores fundamentais como, por exemplo, o da inviolabilidade da pessoa humana, os quais, uma vez trazidos à luz da consciência histórica, são considerados intangíveis.

Para Habermas67, os direitos básicos não são uma dádiva transcendente, mas uma consequência da decisão recíproca dos cidadãos iguais e livres de “legitimamente regular suas vidas em comum por intermédio do Direito Positivo”.

Apesar da tentativa de tais declarações em focar o Direito no próprio homem e sua razão de existir, na dignidade humana, a doutrina dos

64 Apud VIEIRA, Oscar Vilhena. A Gramática dos Direitos Humanos.In Direitos Humanos (Textos

Reunidos). Revista ILANUD nº 17. São Paulo: 2001, p. 33.

65 Apud COMPARATO, Fábio Konder. Fundamento dos Direitos Humanos. In MARCÍLIO, Maria

Luiza e PUSSOLI, Lafaiete (coord.). Cultura dos Direitos Humanos. São Paulo: LTR p. 72.

66 REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. São Paulo: Saraiva: 2001, p. 109. 67 Apud VIEIRA, op. cit. p. 34.

Direitos Humanos não sofreu grandes evoluções naquele período. Ao contrário, essa idéia de Contrato Social segundo a qual o homem mantém seus direitos inatos, a idéia abstrata de que alguns direitos básicos são anteriores à formação do Estado e que a positivação ou enunciação destes direitos é apenas uma forma de concretizá-los, sofreu críticas por parte de doutrinadores como Burke, Hume, Bentham e Marx.

Segundo Oscar Vilhena,

[...] o mundo que se abre com o século XX é cético, daí a força do positivismo como método interpretativo do direito. Nesse sentido não mais se deve indagar sobre a legitimidade ou justiça do direito, mas sobre a sua eficácia, sobre a sua fonte de produção.68

Dessa forma, no início do século XX, o Estado ganha nova importância e força, sendo corrente a idéia de que as leis decorreriam da vontade do Estado. Ainda que este Estado fosse agora composto por um parlamento, o ambiente era bastante propício ao surgimento de regimes autoritários. A valorização do Positivismo dá espaço para a doutrina da lei e, portanto, para a valorização do Estado que produz a lei.

Conforme esclarecido por Oscar Vilhena, o conceito de democracia parlamentar, prevalecente à época, era um conceito bastante formal, que se adaptava à transição do Estado liberal para o Estado intervencionista.

O Positivismo ganha força sobre as concepções de Direito Natural e uma vez que o Estado se legitimava no poder, sua vontade deveria prevalecer. Nesse sentido, o Estado concedia os direitos assim como poderia revogá-los. O Direito era a manifestação do Estado.

Seguindo este raciocínio de que o Estado faz a lei, de acordo com a sua vontade, concedendo e revogando direitos, torna-se muito fácil a prática de abusos contra os indivíduos.

68 VIEIRA, Oscar Vilhena. A Gramática dos Direitos Humanos.In Direitos Humanos (Textos Reunidos).

A visão positivista do Direito serviu de embasamento para o crescimento da doutrina nazista, que se utilizava da lei para retirar direitos fundamentais de indivíduos, o que culminou com um dos maiores extermínios de seres humanos de que se tem notícia na história mundial.

Com o fim da 2ª Guerra Mundial, a contabilidade do horror mostrou que “mais de 20 milhões de seres humanos foram vítimas da instituição que em princípio deveria protegê-las”69. Ou seja, não morreram em

combate, mas nas mãos de seu próprio Estado nacional.

A descartabilidade do ser humano, para usar uma expressão de Celso Lafer70, choca a sociedade. Diante desta constatação, o mundo passa a movimentar-se no sentido de se firmar uma doutrina de Direitos Humanos, voltada para o respeito e a proteção do homem.

Com a criação da ONU, em 1945, criou-se também o início, o ponto de partida, para que se desenvolvesse a legislação sobre Direitos Humanos como hoje posta. A intenção na época era proteger e promover a dignidade e os direitos iguais dos indivíduos contra eventuais arbitrariedades cometidas por governos.

Como apontado por Francesco Francioni71, os Direitos Humanos

internacionais foram concebidos em uma dimensão vertical, como instrumentos de salvaguarda da dignidade e autonomia dos seres humanos em oposição à autoridade ilimitada dos Estados.

Naquele momento, a grande ameaça, o vilão maior dos direitos do homem era o Estado, diante de seu imenso poder. Uma vez que o mundo se encontrava ainda sob o efeito devastador das cenas e relatos dos horrores

69 VIEIRA, op. cit. p. 38.

70 LAFER, Celso. Comércio, Desarmamento, Direitos Humanos. Reflexões sobre uma experiência

diplomática. São Paulo: Paz e Terra, 1998, p. 188.

71 FRANCIONI, Francesco. Economic Globalisation and Human Rights. Alternatives Perspectives on

International Responsibility for Human Rights Violations by Multinational Corporations. Cambridge Press, 2007, p. 243-261.

cometidos na 2ª Guerra Mundial, a criação de meios de proteção dos seres humanos contra ações dos Estados tornou-se reivindicação da comunidade internacional.

Para Rezek, até a fundação das Nações Unidas, em 1945, “não era seguro afirmar que houvesse, em Direito Internacional Público, preocupação consciente e organizada sobre o tema dos Direitos Humanos.”72

Corroborando este entendimento, Bobbio afirma que “o desenvolvimento da teoria e da prática (mais da teoria do que da prática) dos direitos do homem ocorreu, a partir do final da guerra, essencialmente em duas direções: na direção de sua universalização e naquela de sua multiplicação”.73

Com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, deu-se o passo inicial na proteção dos Direitos Humanos no âmbito internacional.