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Os dois tipos de juízos reflexionantes e a fundamentação do princípio da

3.1 A FACULDADE DE JULGAR REFLEXIONANTE E AS CONDIÇÕES DE

3.1.1 As duas introduções da Crítica da faculdade de julgar e a passagem da natureza à

3.1.1.2 A faculdade de julgar como meio de ligação na Segunda introdução

3.1.1.2.1 Os dois tipos de juízos reflexionantes e a fundamentação do princípio da

fundamentação do princípio da conformidade a fins da natureza, princípio a priori da faculdade de julgar reflexionante, é condição necessária não só para a legitimidade do uso reflexionante dessa faculdade, mas, além disso, para a legitimidade da própria Crítica sobre esse tipo de juízo.

3.1.1.2.1 Os dois tipos de juízos reflexionantes e a fundamentação do princípio da conformidade a fins da natureza

Antes de tratar da fundamentação do princípio da conformidade a fins da natureza, Kant elucida dois usos diferentes da faculdade de julgar de acordo com o estabelecimento de fins. Falamos aqui de dois tipos de representação da conformidade a fins da natureza, uma estética e a outra lógica.

A representação estética se refere subjetivamente aos objetos da natureza. Isso significa que a relação com a natureza ocorre exclusivamente no sujeito cognoscente – através da forma a priori da intuição externa, o espaço – e não entre esse e um objeto empírico propriamente dito. É como se o sujeito cognoscente projetasse no objeto da natureza a sua própria subjetividade estética, atribuindo-a fins. Forma-se, assim, um tipo de conhecimento fenomênico sobre a natureza, a saber, o conhecimento estético dela conforme a fins, ainda que, é importante lembrar, não se trate de um conhecimento em sentido rigoroso, uma vez que não estamos tratando aqui do juízo determinante, mas do meramente reflexionante. É nesse tipo de relação com a natureza, i.e., a partir do juízo reflexionante estético que a representa

conforme a fins, que está ligado o sentimento de prazer e desprazer, como ele assegura nesta passagem:

Assim, a finalidade422 [Zweckmässigkeit]que precede o conhecimento de um objeto – mesmo que não queiramos empregar a sua representação para o conhecimento –, e que está todavia imediatamente ligada a ele, é o elemento subjetivo da representação. O objeto só é denominado conforme a fins, portanto, porque sua representação está imediatamente ligada ao sentimento de prazer; e esta representação é ela própria uma representação estética da finalidade.423

A conformidade a fins estética da natureza se relaciona ao sentimento de prazer e desprazer porque se baseia “[...] no prazer imediato com a forma do objeto na mera reflexão sobre ela [...]”.424 Ela não se relaciona com o objeto da natureza, mas sim diretamente com o sujeito que a representa, através do sentimento de prazer e desprazer. Esse tipo de juízo não se fundamenta, tampouco produz, algum conceito do objeto da natureza. Por isso que o objeto da natureza julgado pelo juízo reflexionante estético é denominado de belo e a faculdade de julgar, ligada ao sentimento de prazer e desprazer, se chama gosto. Ainda que seja um juízo subjetivo sobre a natureza, ele tem pretensão à objetividade, afinal a própria faculdade de julgar é universal e objetivamente válida. Mas a objetividade do uso reflexionante da faculdade de julgar estética depende da dedução do princípio que a fundamenta. Por isso ela também precisa de sua crítica, uma vez que o tipo de conhecimento por ela produzido não é nem teórico, tampouco prático, mas, como já argumentado, diz respeito ao conhecimento da razão pura, nesse caso sobre o belo e o gosto.

A representação lógica da conformidade a fins da natureza, por outro lado, não tem qualquer relação com o prazer e desprazer, “[...] mas sim a um conhecimento determinado do objeto sob um dado conceito [...]”.425

Sendo assim, a relação da forma lógica de representação dos fins naturais pode ser considerada, segundo o autor, a representação de uma finalidade real possível através do entendimento e da razão.

Nenhum dos usos acima – estético ou lógico – da faculdade de julgar reflexionante fundamenta-se em bases empíricas porque o objetivo é estabelecer como se deve, necessariamente, julgar o engendramento da natureza conforme a fins. Por isso, trata-se aqui de estabelecer as fontes a priori dos princípios e, para tanto, exige-se uma fundamentação (dedução) transcendental, haja vista a pretensão de validez universal e objetiva através da qual pode ser admitido como princípio de conhecimento. Não se trata, portanto, de fundamentar o

422 Rodhen e Marques (2008)traduzem Zweckmässigkeit por “conformidade a fins”. 423

KANT, KU, AA 5: 189. 424 KANT, KU, AA 5: 192. 425 KANT, KU, AA 5: 192.

princípio da conformidade a fins da faculdade de julgar nos moldes da dedução das categorias da KrV, pois lá o uso da faculdade de julgar era determinante. Mesmo assim, devido à demanda transcendental, exige-se que o fundamento da faculdade de julgar reflexionante “[...] seja procurado nas fontes a priori do conhecimento”426, afinal, ainda que possamos julgar a natureza de modo determinante – subsumindo sua multiplicidade em regras e leis universais já fornecidas pelo entendimento –, existem outros modos de julgá-la, os quais exigem, da mesma maneira, outras regras e leis. Um desses modos, que não o determinante, de julgar a multiplicidade da natureza, é o reflexionante. Para fundamentar a priori o juízo reflexionante precisamos admitir a “[...] possibilidade de leis empíricas infinitamente diversas que, todavia, são contingentes para a nossa inteligência (não podem ser conhecidas a priori) [...]”.427 É em virtude da contingência das leis empíricas aqui em jogo que julgamos contingentemente a unidade da natureza “[...] como sistema segundo leis empíricas”. Ou seja, temos de pressupor e admitir a unidade da natureza como se fosse (als ob) um sistema engendrado por leis empíricas, caso contrário, afirma Kant, “[...] não poderia haver uma concatenação completa de conhecimentos empíricos em um todo da experiência [...]”.428

É por isso que a faculdade de julgar precisa admitir para si como um princípio a priori que a multiplicidade contingente (empírica) da natureza contém uma unidade legítima para pensá-la “[...] na ligação do seu diverso em vista de uma experiência em si possível”.429

Por conseguinte, a faculdade de julgar reflexionante, prossegue o autor, “[...] no que diz respeito às coisas sob leis empíricas possíveis (ainda por descobrir), tem de pensar a natureza, relativamente às últimas, segundo um princípio da finalidade [Zweckmässigkeit] para a nossa faculdade de conhecimento [...]”.430

Assim, o princípio da conformidade a fins [Zweckmässigkeit] da faculdade de julgar reflexionante consiste na única forma através da qual devemos pensar a multiplicidade (empírica) da natureza como sistematicamente organizada. É a partir da argumentação de Kant exposta acima que a fundamentação do princípio da faculdade de julgar reflexionante para pensar a natureza conforme a fins deve ser entendida. Trata-se de um princípio a priori cuja origem e aplicação é a própria faculdade de julgar, afinal, como afirma o autor, “[...] o conceito da finalidade [Zweckmässigkeit] da natureza não é, pois, nem um conceito da natureza nem um conceito da liberdade, já que nada atribui ao objeto (da natureza) [...]”.431

426

KANT, KU, AA 5: 182.

427 KANT, KU, AA 5: 183, parênteses do autor. 428 KANT, KU, AA 5: 183.

429

KANT, KU, AA 5: 183-184.

430 KANT, KU, AA 5: 184, grifos e parênteses do autor, colchetes nossos. 431 KANT, KU, AA 5: 184, parênteses do autor.

Uma vez apresentadas as características de cada tipo de atividade da faculdade de julgar reflexionante, tanto estética quanto teleológica, bem como o fundamento do princípio a

priori sob o qual ambas operam em suas reflexões sobre a conformidade a fins da natureza,

faz-se necessário determinar agora qual desses usos opera a unificação dos domínios legislativos da natureza e da liberdade.

3.1.1.2.2 As condições de possibilidade da unificação dos domínios legislativos através da

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