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Abstinência x Redução de Danos

6. OS ENCONTROS E SUAS POSSIBILIDADES

"Eu posso me expressar? Com todo respeito, vocês sempre arrancam um pedaço da gente nestes momentos" – Relato da usuária S2.

Impossível não se afetar frente a esta narrativa e tantas outras, nos colocando em desconforto neste papel de pesquisadora. A opção ético-estética-política pela pesquisa-intervenção nos tranquiliza, nos autoriza, nos legitima na acolhida, na escuta a este momento de sofrimento e dor pelas perdas nestes percursos e histórias de vida desta e de outras pessoas.

Quantas sensações, sentimentos e afetos são despertados e emergem frente a possibilidades de encontros? Quantos significados e ressignificados podem surgir a partir dali? Quantas descobertas e desejos que vieram à tona? Infinitas possibilidades e caminhos podem se descortinar quando se possibilita o encontro e novas conexões podem surgir. Nesses encontros e nesses grupos se produzem novas sociabilidades e o comum gerado é o novo dispositivo antidroga, como nos afirma Lancetti (2015).

Nossas reflexões e afetações vão no sentido das infinitas potências e possibilidades que temos nas ações a serem desenvolvidas no trabalho nos CAPS e que nem sempre nos damos conta disso. Trazer Lancetti (2015) para nossas reflexões é manter viva sua história e sua luta contínua no sentido de não nos endurecermos nos processos cotidianos do trabalho.

Nas experiências lideradas por Tommasini e seu amigo inspirador Franco Basaglia, se constatou que tudo é possível no auge da participação e da solidariedade (BASAGLIA,1993, apud LANCETTI, 2015). Esses, no entanto, admitem a dificuldade em lidar com os dependentes de drogas, sendo uma das clínicas mais desafiadoras. Tommasini foi um dos precursores da Redução de Danos ao ir ao encontro dos usuários e por aceitar essas pessoas da maneira como elas eram.

Os CAPS são por definição e método de trabalho, instituições abertas e neste sentido devem estar sempre de portas abertas e não exigir abstinência para seu acolhimento.

Lancetti (2015) utiliza os termos plasticidade psíquica e atletismo afetivo como importantes dispositivos a serem desenvolvidos pelas pessoas que trabalham nos CAPS AD. A plasticidade psíquica se contrapõe à rigidez psíquica e se manifesta pela flexibilidade, resiliência e inventividade para lidar com situações-limites. Atletismo afetivo é um conceito criado por Artaud, e se refere a potência do corpo do ator, por meio de vários tipos de respiração e gritos, o ator sai da representação e alcança o interlocutor.

Alcançar as paixões através de suas forças em vez de considerá-las puras abstrações confere ao ator um domínio que o iguala a um verdadeiro curandeiro” (ARTAUD, 2006, apud LANCETTI, 2015)

Lancetti (2015) ao se remeter ao terapeuta nesta perspectiva diz que este se aproxima, escuta, olha, toca e iniciada essa relação, se dispõe às mais diferentes relações. O terapeuta olha o corpo, escuta suas expressões e se interessa pela biografia do sujeito. Onde os outros veem uma droga, ele enxerga uma pessoa. Dessa maneira ele suporta e dispõe a bancar repetições de vidas e até violentas, institucionalizadas, desgarradas por injustiças e aplainadas pela ordem social.

Reafirmamos aqui que a clínica da atenção psicossocial implica uma indissociabilidade entre clínica, crítica, política, ética e estética, que se tece nas tensões, vibrações do campo problemático da saúde mental e da vida, afirmando uma perspectiva clinico institucional (MACHADO & LAVRADOR, 2007).

Os desafios que nos impõe é afirmar a potência da vida sem subtraí-la, dar consistência a ela sem endurece-la, sem enclausura-la, sem entorpece-la (MACHADO & LAVRADOR, 2007).

Como traçar linhas de ação e contribuir para produzir outros modos de subjetivação que se contraponham ao fenômeno de Guerra às Drogas? Afinal, como afirmam

Tedesco & Pecorato (2016) atrelar saúde ao exercício da multiplicidade das formas de viver é privilegiar a capacidade de experimentar outras formas de conexão, praticando diferentes modos de estar no mundo.

Retomando os nossos objetivos de nossa pesquisa em que destacamos a importância da Dimensão sociocultural para os avanços da Reforma Psiquiátrica, cabe tecer algumas considerações. Porém, antes disso, sempre se faz necessário, nos questionar quanto aos principais objetivos da Reforma, com Amarante (2015,p.19) que são:

[...] transformar as relações que a sociedade, os sujeitos e as instituições estabeleceram com a loucura, com o louco e com a doença mental, conduzindo tais relações no sentido da superação do estigmas, da segregação, da desqualificação dos sujeitos ou, ainda, no sentido de estabelecer com a loucura uma relação de coexistência, de troca, de solidariedade,de positividade e de cuidados.

Reafirmar a complexidade da Reforma Psiquiátrica, as diversas conexões e os entrelaçamentos das suas diversas dimensões. As narrativas dos nossos participantes revelam os diversos aspectos que vão contribuir para os seus modos de subjetivação. Para a propagação e os avanços da Reforma precisamos pensar em estratégias que se disseminam por todas as dimensões. Vamos problematizar alguns pontos:

Dimensão Teórico-conceitual: esta dimensão, apesar de sua importância, pois atua diretamente na formação dos trabalhadores, também é pouco abordada e influencia de forma significativa nas diversas dimensões. A formação no campo da Atenção Psicossocial e da Redução de Danos exige reflexão sobre os conceitos de ciência e produção de conhecimento e como este se legitima, os diversos paradigmas, estruturas, relações de poder (AMARANTE, 2015).

Na questão do álcool e outras drogas, os proibicionistas se articulam com o paradigma biomédico e biologista, reforçando a neutralidade da ciência e referindo- se aos antiprobicionistas e antimanicomiais como sendo meramente “ideológicos” e sem fundamentação científica. O paradigma da história natural da doença é

sustentado pelo modelo de doença-cura e encontra-se presente no imaginário sociocultural.

Dimensão técnico-assistencial: Podemos afirmar que foi significativa a implantação de serviços a partir da Lei 10.216. O fechamento de inúmeros manicômios pelo país e a implantação da Rede de Atenção Psicossocial, tendo os CAPS seus maiores representantes, são dados significativos. Porém encontra inúmeras fragilidades, do ponto de vista, tanto de serviços assistenciais, como os CAPS III e CAPS AD III, leitos em hospital geral, como da sustentação deste trabalho em rede e intersetorial. Estas fragilidades se ampliam considerando a formação técnica dos seus trabalhadores, voltada para o paradigma biologista. O paradigma da Redução de Danos ainda não nos parece ressoar nos serviços.

O momento é extremamente preocupante em função da nota técnica da ABP e do Conselho Federal de Medicina, emitida no último 25/04/2017, em que questionam a estrutura da RAPS, recomendando o retorno dos ambulatórios de Psiquiatria, Unidades de Psiquiatria e não leitos em Hospital Geral. Nessa nota técnica reafirma- se o saber médico e psiquiátrico na condução da Política de Saúde Mental no país. Nas narrativas percebemos que o modelo de internação e de isolamento ainda é muito internalizado pelos nossos participantes. Essas medidas encontram respaldo e apoio popular, uma vez que são alimentadas permanentemente pela mídia.

Dimensão jurídico-político: Esta direção caminha junto com as demais dimensões, pois as ações disparadas são o sinalizador do imaginário cultural sobre os loucos e os drogados (dimensão sociocultural), as respostas encontradas no campo do cuidado (dimensão tecno-assistencial) e como a justiça responde a estas demandas (dimensão teórico-conceitual)

Conforme já afirmado, a evolução dos gastos em internações compulsórias no ES é estratosférica, saltando de quase dois milhões em 2011 para 35 milhões em 2017. Legitimar o caminho da judicialização não só no campo da Saúde Mental, mas no SUS é decretar a sua inviabilidade e falência. Outro aspecto importante refere-se ao campo dos direitos humanos e da cidadania. A psiquiatra contribuiu para a ideia de

periculosidade e a justiça da criminalização dos loucos e dos drogados legitimando a questão das interdições e os enclausuramentos.

Nas narrativas constatamos a recusa em serem tratados como criminosos e um apelo para que sejam considerados cidadãos e responsabilizados pelos seus atos.

Dimensão sociocultural: refere-se a ações e intervenções culturais visando à desconstrução do imaginário social dos loucos e drogados com a ideia de periculosidade e dos estigmas ligados à irresponsabilidade e criminalização.

Amarante (2015) afirma que a própria organização dos serviços, como eles operam considerando estas pessoas como cidadãos, exercitando formas de cuidado e acolhimentos que respeitem e contribua para seu empoderamento, favorece o incremento desta dimensão e que tem relação e interatividade com a participação social e política dos diversos atores envolvidos.

As diversas intervenções culturais realizadas ao longo destes trinta anos de luta antimanicomial pela via da música, da arte, da dança, apropriando-se da cidade têm um efeito considerável neste processo de transformação cultural e social. Como nos aponta Mafesolli o imaginário se revela para além da racionalidade e estas práticas tem o papel potencializador de ativá-lo (2001). Na sua complexidade transversal, o imaginário opera nas mais diversas situações e em todos os domínios da vida, nos processos revolucionários, mas também contrarrevolucionários.

Nesse sentido, ao trabalharmos com a pesquisa-intervenção, colocando em discussão diversos temas e problematizando os paradigmas da abstinência x redução de danos, acreditamos ter contribuído para jogar sementes que possam germinar, se enraizar e dar frutos. Sentimos que há condições e disponibilidade para isto. A usuária S1 ao fazer uma narrativa sobre nossos encontros nos contempla e nos anima:

[...] venho dizer que foi um prazer interagir nessas semanas com você. Essas cinco semanas foram de bom proveito e também nos mostrou que estar em grupo faz bem a alma e o coração. Sabemos que não é fácil lutar contras as drogas, seja ela ilícita ou lícita, pois quaisquer delas já nos é prejudicial a saúde. Mas um dos problemas mais agravante é o preconceito. Porém você

com o seu jeito calmo e tranquilo de se expressar nos ajudou a enxergar que é provável lutar contra o preconceito. Eu agradeço em nome de todo o grupo por estar conosco todos esses dias e agradecermos também pela presença de Karina, pois ela nos foi uma auxiliar exemplar.

A luta contra as drogas, a busca pela abstinência, a legitimação da internação se fazem predominantes, mas convivem com o preconceito, a discriminação, o direito ao trabalho, à moradia, à cidade, enfim o desejo de uma vida digna também pulsa com força nestas pessoas.

A seguir, apontamos algumas pistas que consideramos importantes para a continuidade deste percurso.