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CAPÍTULO 4 – PROCESSOS DE SOCIALIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO

4.3. Relações horizontais: o “outro mundo” da universidade

4.3.1. Os espaços de militância

Tornar-se estudante universitária/o consiste, por si só, no atravessamento de importante fronteira simbólica, uma que demarca o início de profundas transformações na vida social da/o sujeita/o. Reflexão pertinente sobre o tema traz a etnografia de Jonatan Gómez (2011) sobre o ingresso de estudantes de uma universidade pública da Guatemala no mundo da política. Gomez (2011) evidenciou o papel ritual das experiências vividas na universidade, instrumentalizando-se também a partir dos conceitos de projeto e campo de possibilidades de Gilberto Velho (2013) para demonstrar que estes espaços podem ser compreendidos como um domínio social específico, no qual múltiplos campos de possibilidades exercem influência sobre os projetos das/os sujeitas/os. Gomez (2011) dialoga também com o trabalho de Samir Pérez Mortada (2009), para quem a vivência universitária permite ressignificar o social na medida em que a/o estudante se envolve nas atividades de militância.

Estabeleço um paralelo com as experiências de minhas e meus interlocutoras/es, para quem a entrada na universidade significou atravessar uma fronteira simbólica para novas redes e espaços de sociabilidade, permeada por referentes que circunscrevem campos de possibilidades outros que aqueles acessíveis até então.

E na faculdade foi que eu conheci um outro mundo. Todo tipo de gente. Pessoas de outras cidades, outras perspectivas de ver a vida, de ver as pessoas. E por meio disso eu fui me permitindo viver outras coisas, fui me permitindo estar com as pessoas. Por eu ter sido muito introspectiva em boa parte da minha vida, eu tinha muita dificuldade de estar em grupo, sentar num bar, ser aberta com as pessoas. Eu era muito reclusa, muito calada. E na faculdade fui me permitindo... (DÉBORA, em entrevista semiaberta por videoconferência.)

O “outro mundo” de que fala Débora, traduzindo em seu imaginário uma reflexão que se repete entre minhas e meus interlocutoras/es, diz respeito a uma pluralidade de discursos constitutivos da experiência universitária. Estes passam a interpelar as/os estudantes, recrutando-as/os a ocupar novas posições sociais.

No que diz respeito à sexualidade, as diferentes possibilidades de significação disponíveis no campo permitem estabelecer relações de identificação com referentes que antes implicavam em marginalização e desqualificação na vida social no âmbito das relações verticais da comunidade de origem. Observo, a partir do que evidenciam as narrativas dessas pessoas – como o trecho de minha conversa com André, logo abaixo - que a esfera simbólica da militância política, em seus diferentes campos de

atuação, configura, de fato, um importante elemento na rearticulação de si.

Eu me identifico como militante do movimento LGBT desde que entrei na universidade. Meu primeiro encontro de estudantes foi o Fórum de Diversidade Sexual. Eu acho que a minha formação enquanto estudante e enquanto pessoa se dá muito pela militância no movimento estudantil, e especificamente pela diversidade sexual. Então eu acho que se relaciona muito. Tudo que eu faço eu acho que reflete muito isso. (ANDRÉ, em entrevista presencial semiaberta).

A extensão dos discursos políticos das militâncias empreendidas pela juventude universitária transcende seus espaços específicos de discussão e articulação de estratégias de ação, visto que processos de ocupação simbólica, direta ou indireta, estão implicados necessariamente na atuação política no campus. Na UFSC, por exemplo, já na recepção às calouras e calouros, vem ocorrendo, nos últimos anos, o primeiro contato com as representações de grupos organizados de estudantes.

Em 2013, 2014 e 2015, coletivos de alunas/os negras/os e LGBT, aliados a atuação de núcleos de pesquisa dedicados ao estudo das temáticas de gênero, sexualidade e raça desta instituição, engajaram-se em atividades de apresentação da universidade para as/os novas/os estudantes, a começar pela presença de estandes para distribuição de material informativo às portas do auditório em que se realizou a cerimônia oficial de boas- vindas às pessoas recém-ingressas. Circulou também pelo campus da universidade uma cartilha de conteúdo educativo para o combate às violências homo-lesbo-transfóbicas, machistas e capacitistas nos trotes universitários, tendo por público-alvo, principalmente, as/os calouras/os.

Mencionei ações pontuais, realizadas em uma data estratégica - o início do semestre -, mas estas se replicam durante todo o ano em diferentes contextos. Um exemplo facilmente observável são os cartazes de conteúdo politizado que são fixados em espaços públicos no campus, ocupando as paredes externas dos edifícios de salas de aula, a fachada do restaurante universitário e os murais oficiais de cada centro de ensino. Nestes, entre anúncios de aluguel e recados oficiais dos diferentes departamentos da universidade, a presença das mensagens de cunho político, que necessariamente fazem parte dos materiais produzidos por esses coletivos – mesmo os de conteúdo não necessariamente ou explicitamente combativo, como a divulgação de uma festa, por exemplo – evidenciam o quanto o contato com essa pluralidade discursiva é parte do cotidiano da universidade pública.

A experiência universitária pode, assim, ser compreendida como intrinsecamente permeada por mensagens que recrutam à identificação com discursos politizados, que ocupam dos lugares mais íntimos – como o fazem as pichações nas portas das cabines nos banheiros36 – às próprias “fronteiras” territoriais do campus,

marcadas em tinta nos muros da instituição e nos bairros de entorno. Esses discursos tornam-se, assim, constitutivos do cotidiano no campus, espaço que centraliza a vida social nesta etapa da trajetória no sistema de ensino. Introduz, desse modo, às/os sujeitas/os a um contexto de resistência e de possibilidade de ação, deslocando a marginalização da homossexualidade para a condição de opressão social passível de enfrentamento.

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