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CAPÍTULO 2 – QUESTÕES LGBT NA ESCOLA: POLÍTICAS PÚBLICAS E INTERVENÇÕES

2.3. Produzindo ruídos: as intervenções do Projeto de Extensão Papo Sério

2.3.1. Tensões em cena

No decorrer do trabalho de campo que desenvolvi em minha participação no Projeto Papo Sério, alguns eventos foram particularmente emblemáticos. Tratarei de duas delas, que foram bastante importantes para minhas reflexões nesta pesquisa. Coincidentemente, tratam-se, respectivamente, da primeira oficina de que participei, ainda em 2013, e da penúltima, no final do segundo semestre de 2014. Penso que ambas ilustram perfeitamente o estado de alerta e a mobilização de resistências nas escolas quando há desestabilização de discursos que legitimam as

29 A UFSC é uma das instituições de ensino superior que executa o GDE no Brasil, já por três edições: 2009, 2012-2013 e 2015, quando se tornou um curso de especialização. Este é realizado por meio do Instituto de Estudos de Gênero (IEG) da universidade, o qual congrega nove núcleos de pesquisa que abordam as temáticas de gênero, sexualidades e questões raciais na UFSC, bem com outros nove núcleos de outras universidades em uma rede de parcerias.

condutas naturalizadas para as questões de gênero e sexualidades, além de permitir problematizar os efeitos que diferentes elementos de mediação podem provocar neste contexto.

A primeira situação ocorreu em uma escola de outro município da região rural da Grande Florianópolis. O contexto da nossa vinda foi atípico no sentido de que quem intermediou a relação foi um aluno do Ensino Médio que havia sido bolsista de iniciação científica no NIGS. A bolsa fora um prêmio que recebera por ter o trabalho mais votado no nosso concurso de cartazes contra homo-lesbo-transfobia e heterossexismo nas escolas.

O tema que nos demandavam abordar era a gravidez na adolescência, pois a escola estava registrando casos recorrentes entre as alunas. Uma das preocupações da nossa equipe, dentro da perspectiva teórica e política na qual trabalhávamos, era sempre trazer uma abordagem de sexualidade múltipla, não-heterossexista e vinculada às noções de autoconhecimento, respeito e prazer. Assim, decidimos tratar o tema pela perspectiva dos direitos sexuais e reprodutivos, evitando nos aproximar dos discursos tradicionais de que sexo traz doenças e problemas, que não deve acontecer na adolescência etc.

As oficinas de que participei transcorreram com bastante engajamento das turmas e tiveram uma avaliação positiva das/os alunas/os. Algumas meninas, inclusive ficaram conversando com pessoas da nossa equipe durante o intervalo. Quando o sinal soou, porém, e trocamos de salas para realizar mais uma rodada de oficinas, uma das alunas que havia participado no primeiro horário veio nos procurar. Contou, indignada, que o professor de Física chegara na sala fazendo uma piada sobre como a melhor forma de não engravidar a namorada era, para os meninos, “comer a cunhada”, e para as meninas, “beber suco de laranja”.

Duas pessoas da equipe chamaram esse professor para conversar, o que este interpretou como uma ofensa. “Nunca tive minha autoridade questionada nesta escola”, exaltou-se, ao que um dos rapazes da equipe respondeu “Se a sua autoridade está desconstruindo o trabalho sério que estamos desenvolvendo aqui e propagando machismo, ela vai ser questionada, sim”. Algumas semanas depois, ficamos sabendo de outras reações negativas por

parte da direção, que recebera reclamações de outras/os professoras/es e familiares de alunas/os julgando absurdo termos, por exemplo, mencionado que mulheres se masturbam. Essas repercussões evidenciam o quanto são desestabilizadas as instâncias conservadoras quando ocorre o rompimento de silêncios historicamente institucionalizados e o questionamento das práticas que fazem a manutenção dessa ordem.

A segunda cena ocorreu na escola em que havia trabalhado o professor Camilo, localizada em um bairro da região central de um município industrial. Não vou avançar na narração da receptividade pouco amigável que tivemos por parte da direção da escola, mas sim do extremo acolhimento e interesse com que fomos recebidas/os pelas/os ex-alunas/os do professor. Nem todas as turmas com as quais realizamos oficinas haviam trabalhado com ele, mas tive a oportunidade de estar em uma das que trabalhara. Nesse grupo, ocorreu uma completa inversão das dinâmicas que costumávamos observar entre as/os estudantes.

As pessoas que mais se pronunciaram e participaram foram meninas, sendo que algumas delas se assumiram lésbicas diante de toda a turma. O tema – não por acaso – era homofobia, e os relatos de vivências que as alunas trouxeram fizeram algumas delas chorar. Uma menina que, suponho, se considerava heterossexual, emocionou-se ao apoiar a amiga; outra aluna contou as discriminações que sofria por ter duas mães e por ter se “descoberto” lésbica também. Nenhum menino se expôs do mesmo modo, mas alguns deles vieram dizer “obrigado” ao final da oficina.

Minha reflexão sobre esse episódio é que essas reações foram desencadeadas pelo trabalho contínuo de Camilo, associado ao fato de que ele se tornou adorado por toda a turma e à legitimidade que a presença da nossa equipe trouxe para a questão da homossexualidade. Assim, num contexto que se mostrava bastante hostil, a atuação de um professor como Camilo, com relações muito fortes de identificação com as/os estudantes, tornou-se potencialmente desestabilizadora. No âmbito dessa oficina, em que havia também toda uma equipe corroborando os discursos do professor, com todas as implicações simbólicas de

representar uma universidade, conduziu ao que entendo como uma inversão das relações de poder entre as/os alunas/os. Ali, a legitimidade de fala era delas: meninas e lésbicas.

2.4. Conflitos pessoais: experiências de professoras/es

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