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1 INTRODUÇÃO

3.2 As pautas e reivindicações dos movimentos feministas brasileiros do final

3.2.2 Os feminismos das décadas de 1970 e 1980

A segunda onda do feminismo emergiu durante os anos 1970 e 1980, a partir da resistência e luta das mulheres contra o autoritarismo, a violência e falta de cidadania no interior dos regimes militares. Grande parte das componentes do movimento advinha das organizações de esquerda e da luta contra o capitalismo e pela democracia, segundo Matos (2014) “a partir de um exercício crítico significativo, rejeitavam práticas hierárquicas e androcêntricas dessa esquerda, bem como a invisibilização e desconsideração da necessidade das transformações de gênero para a luta política geral” (MATOS, 2014, p.05).

Costa (2005) chama este momento de “feminismo da resistência” e destaca que ele surge como consequência da resistência das mulheres à ditadura militar e sob o impacto dos movimentos feministas internacional e do processo de modernização que implicou uma maior incorporação das mulheres no mercado de trabalho e a ampliação do sistema educacional. O processo de modernização incorpora também a efervescência cultural de 1968: os novos comportamentos afetivos e sexuais, acesso ao recurso das terapias psicológicas e da psicanálise, derrota da luta armada, as novas experiências cotidianas

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que entraram em conflito com o padrão tradicional e as hierarquias de gênero (SARTI, 1998 apud COSTA, 2005).

A autora lembra que neste período os movimentos de mulheres burguesas e de classe média, organizados por setores conservadores, tiveram papel importante no apoio aos golpes militares. No Brasil, o movimento articulador das Marchas com Deus, pela pátria e pela família, mobilizou grande número de mulheres em 1964 e 1968. Múltiplas tensões caracterizaram às relações com a esquerda, com os partidos políticos dominados pelos homens, com os setores progressistas da Igreja Católica, e com um Estado patriarcal, capitalista e racista. Também chama a atenção para o fato de que predominava na esquerda latino-americana a visão de que as feministas “... eram pequenos grupos de pequeno-burguesas desorientadas, desconectadas da realidade do continente, que haviam adotado uma moda e faziam o jogo do imperialismo norte-americano” (STERNBACH; ARANGUREN; CHUCHRYK, 1994, p. 70 apud COSTA, 2005);

De acordo com Alvarez (2000), neste contexto o Estado representava a violência exercida sobre os corpos das mulheres, o silêncio das demandas de participação e a impermeabilidade das questões de igualdade, os feminismos se construíram em posição de aversão ao Estado. Para um movimento que emergia e que buscava delimitar seus contornos, a defesa de espaços próprios de organização e da autodeterminação para suas pautas e prioridades, a autonomia tornou-se central, significava na época a independência e oposição absoluta tanto ao Estado, quanto à esquerda. (MATOS, 2014, p. 6).

Os movimentos feministas passaram a ter mais importância, a partir deste período, com a volta dos movimentos sociais no país, sendo denotado publicamente como agente na transformação da sociedade brasileira, reivindicando espaço e discutindo sobre a desigualdade como um campo de luta (TELES, 1999; MIGUEL, 1988; SARTI, 1988). A reivindicação e os protestos por parte das mulheres contra as injustiças sociais e pelos direitos sociais e políticos volta à arena pública (COSTA, 2005, p.17).

Ao realizar uma revisão interpretativa das trajetórias dos feminismos no Sul das Américas, Alvarez (2014), defende que, neste momento, ocorre no campo discursivo de ação o “centramento” e a configuração do “feminismo no singular”. A autonomia, então invocada, principalmente, em relação aos partidos e organizações revolucionárias de

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esquerda, virou uma espécie de “palavra mágica” lançada discursivamente para distinção entre feministas e “outras” mulheres ativistas (SCHUMAHER e VARGAS, 1993, p.450 apud ALVAREZ, 2014, p.21). Para a autora esse espaço possibilitou e viabilizou a que questões tidas como privadas se tornassem assuntos políticos – eixo discursivo norteador dos feminismos desde esse primeiro momento em diante. Porém ela salienta que a representação “autonomista” do feminismo tende a apagar o fato de que, desde os seus primórdios nos anos 1970, ele constitui um campo discursivo de ação heterogêneo, mesmo que relativamente reduzido em sua extensão horizontal e com uma articulação vertical – em direção ao Estado – nula evidentemente, dado o contexto ditatorial. Isto é, apesar dessa hegemonia discursiva ter delimitado estritamente o que e quem compunha “o” movimento feminista, o campo feminista contemporâneo no Brasil e em muito da América Latina de fato já nasceu plural e heterogêneo.

No período pós regimes militares, Costa (2005) identifica três padrões de mobilização política do movimento de mulheres na América Latina pós-regimes militares: (1) Os grupos de direitos humanos de mulheres voltados para a luta por anistia política, pelo retorno de exilados, banidos, pela proteção aos presos políticos e pela denúncia sobre os desaparecidos. Um exemplo e um destaque dessa prática são o Movimento Feminino pela Anistia no Brasil e as Madres de la Plaza de Mayo; (2) Os grupos e organizações feministas; e (3) As organizações de mulheres urbanas pobres articuladas geralmente através do bairro, em associações e federações, em torno de demandas como o aumento do custo de vida, a melhoria do transporte, o saneamento básico, as creches, a saúde pública etc. Esses grupos, destaca a autora, geralmente são frutos da atuação da Igreja Católica (CEBs - Comunidades Eclesiásticas de Base) ou de partidos políticos vinculados a um pensamento de esquerda (COSTA, 2005, p.17).

O ano de 1975 foi o Ano Internacional da Mulher, promovido pela ONU, foram realizadas várias atividades, à luz das propostas do “novo" movimento feminista que neste momento se desenvolvia na Europa e nos Estados Unidos. O patrocínio da ONU e um clima de relativa distensão política do regime permitiam às mulheres organizarem-se publicamente pela primeira vez desde as mobilizações dos anos 1967-1968, culminando na Conferência da Organização das Nações Unidas (ONU), na Cidade do México. Este ano aparece na literatura oficial como marco inicial da atual mobilização de mulheres no país, ou seja, seria o ano de “início” das ações feministas. No Brasil, é realizado um evento que marca

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a busca por visibilidade pública das questões feministas, patrocinada pelo Centro de Informação da ONU, sobre o papel e o comportamento da mulher na realidade brasileira. Este evento foi organizado por grupos informais cariocas, em sua maioria formados a partir dos grupos de reflexão sobre a “condição feminina” e não por instâncias governamentais.

Já no final dos 1970 e início dos 1980, surgiram organizações de mulheres negras no Brasil que se declararam “autônomas” dos movimentos feministas “branco” e também do movimento negro misto (que abarca homens e mulheres). Muitas ativistas negras e outras mulheres militantes continuaram agindo nos movimentos mistos e na militância partidária, começaram a se apropriar e a culturalmente traduzir os discursos feministas, assim crescentemente ressignificando o chamado “específico”. A “especificidade” das mulheres negras (RIBEIRO, 1995), por exemplo, desde logo foi enquadrada em termos de uma “tripla discriminação” por militantes negras que não se sentiam interpeladas pelo feminismo que nesse momento então se configura como hegemônico (COSTA, 2005, p. p.25).

As questões feministas ganham espaço quando o processo de “abertura” política se consolida no país, a partir da década de 1980. Grupos que se formavam nesse momento declaram-se abertamente feministas, em um contexto no qual as reivindicações se dão em dois âmbitos: nas políticas públicas e nas reflexões sobre a condição específica da mulher (SARTI, 1988). Estes dois aspectos de atuação irão orientar as agendas e ações futuras do campo feminista. Exemplo forte disto é o momento do mundo público, que marca ações dos movimentos feministas e de feministas no governo organizadas em prol da cidadania feminina: a constituinte de 1988.

Ao mesmo tempo em que traziam a politização da vida privada, as feministas desenvolviam uma ampla política de alianças com setores mais progressistas e democráticos do país (MORAES, 1996; SARTI, 1988). Segundo Maria Lígia Quartin de Moraes, houve uma grande absorção do feminismo marxista pelas feministas oriundas da esquerda radical e pelo movimento de mulheres, nas décadas de 1970 e 1980. Em grande parte, isto se deu porque o marxismo era uma teoria que auxiliava com explicações científicas sobre as origens históricas da discriminação da mulher, apesar de, em outras instâncias, manter as questões de gênero em segundo plano.

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Para Costa (2005) o feminismo brasileiro dos anos 1970 e 1980 constituiu uma experiência política das mais interessantes, porque as feministas brasileiras traçaram políticas de aliança com outras forças oposicionistas pelas liberdades democráticas – principalmente com partidos de esquerda – sem abrirem mão da luta específica (COSTA, 2005). Como consequência disto, de acordo com a autora, houve o aumento do espaço político das feministas e seu poder reivindicatório. As ações feministas direcionaram-se no sentido de consolidar e fortalecer as conquistas atuais e futuras.

Costa (2005) destaca que os anos 1980 trouxeram novos dilemas ao movimento feminista. Durante a década anterior, o movimento havia centrado no trabalho de organização, na luta contra a ordem social, política e econômica. O avanço do movimento fez do eleitorado feminino um alvo do interesse partidário e de seus candidatos, que começaram a incorporar as demandas das mulheres aos seus programas e plataformas eleitorais, a criar Departamentos Femininos dentro das suas estruturas partidárias, até o principal partido da direita, o PDS, criou seu Comitê Feminino. Para a autora a eleição de partidos políticos de oposição para alguns governos estaduais e municipais forçou as feministas a repensarem sua posição ante ao Estado na medida em que a possibilidade de avançar em termos de política feminista era uma realidade. Segundo seus registros, a vitória do PMDB para o governo de São Paulo garantiu a criação do primeiro mecanismo de Estado no Brasil voltado para a implementação de políticas para mulheres: o Conselho Estadual da Condição Feminina, criado em abril de 1983 (COSTA, 2005, p. 6).

Nesta esteira, em 1985, ocorre a criação de um Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM). Para as autoras utilizadas nesta revisão bibliográfica, a criação do conselho se tornou um marco histórico, considerado consequência das lutas feministas no país, ou seja, foi a primeira vez em que se reconheceu no governo federal a importância da atuação dos movimentos feministas e de mulheres no Brasil e a importância das demandas por condições de vida mais justas e igualitárias para as mulheres brasileiras (COSTA, 2005), constituindo-se num importante mecanismo de controle social das ações do Estado.

Para Costa (2005) o Conselho teve uma atuação marcante na campanha da constituinte de 1988, por meio do “lobby do batom” (conjunto formado por mulheres na bancada legislativa federal), assim como a Constituinte de 88 revelou alguns avanços históricos:

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(1) uma bancada feminina de 26 mulheres dentre 559 deputados e deputadas federais; (2) o lobby do batom, uma articulação do CNDM, movimento feminista e bancada feminina, representou uma quebra nos tradicionais modelos de representação vigentes até então no país, na medida em que o próprio movimento defendeu e articulou seus interesses no espaço legislativo sem a intermediação dos partidos políticos e conseguiu aprovar em torno de 80% de suas demandas para a Constituição Federal de 1988.

É relevante frisar que de acordo com Costa (2005) neste momento as feministas não poderiam deixar de reconhecer a capacidade do Estado moderno para influenciar a sociedade como um todo, não só de forma coercitiva com medidas punitivas, mas através das leis, de políticas sociais e econômicas, de ações de bem-estar, de mecanismos reguladores da cultura e comunicação públicas. No processo de Ongnização as chamadas “ONGs feministas” passam a exercer de forma especializada e profissionalizada a pressão junto ao Estado, buscando influenciar nas políticas públicas. Essa hegemonia das ONGs passou a ser uma preocupação para vários setores do movimento, impondo novos desafios e dilemas à militância.