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2.3. As Mídias e os Gêneros

2.3.1. Os gêneros na Teoria Semiolinguística do Discurso

Ao tratar dos gêneros, Charaudeau (2004) propôs uma nova perspectiva, rompendo com a tradição literária de classificação. Nessa nova concepção, ao levar em consideração a ancoragem social do discurso, sua natureza comunicacional, as atividades linguageiras e as características formais dos textos produzidos, os gêneros acabam por determinar certos “domínios da palavra”.

A ancoragem social refere-se ao reconhecimento de que os gêneros se relacionam com distintos “domínios da prática linguageira”, que, por sua vez, determinam os papéis e as identidades dos sujeitos da enunciação. Na concepção em questão, é essa determinação que permite marcar um discurso como pertencente a um determinado domínio (jurídico, religioso, político etc.). O autor inclusive utiliza o termo “performatividade” ao afirmar que, assim sendo, não será mais “o que é dito” que caracterizará esse pertencimento, mas o reconhecimento dos estatutos sociais dos sujeitos. No caso de nossa dissertação, então, serão os estatutos dos envolvidos os responsáveis por indicar que os discursos analisados pertencem ao domínio político.

Com relação às atividades linguageiras, Charaudeau (2004) indica que é possível um tipo de texto possuir distintos procedimentos de organização, uma vez que não há consenso entre os estudiosos se tais atividades são operações mentais ou mesmo se estão ligadas aos MOD (isto é, se são de uma tendência cognitiva ou de uma tendência semiolinguística).

Nessa nova visão dos gêneros, se aceitamos sua existência, estamos também confirmando que existem restrições. Ao questionarmos em que esfera (nas formas textuais ou no nível das práticas sociais) elas atuam, vemos aparecer diante de nós um dilema: se estão no campo das características formais, o sujeito não possui liberdade, estando impossibilitado de se colocar enquanto tal no texto; por outro lado, se as restrições são de ordem social, o indivíduo estará completamente (pré-)determinado por seu posicionamento no dispositivo da prática social.

Charaudeau (2004) tenta responder a esse dilema recorrendo inicialmente à ideia que aponta para a socialização dos indivíduos através da linguagem e desta por aqueles (seres individuais e coletivos). As normalizações dos sentidos, dos comportamentos e das formas se dão nessa relação mútua, seguida pela memorização do sujeito. Com isso, o linguista aponta para a hipótese dos sujeitos possuírem três tipos de memórias.

É na primeira, denominada memória dos discursos, que circulam os saberes de conhecimento e de crença sobre o mundo. Tais saberes constroem as identidades coletivas e circulam na sociedade dividindo-a em comunidades discursivas, que “reúnem — virtualmente — sujeitos que partilham os mesmos posicionamentos, os mesmos sistemas de valores, quer se trate de opiniões políticas, julgamentos morais, doutrinas, ideologias etc.” (CHARAUDEAU, 2004, p. 4).

A segunda é a memória das situações de comunicação, na qual são constituídas as comunidades comunicacionais, que abrigam sujeitos que se posicionam de maneira similar sobre o que é recorrente em dadas situações de comunicação, uma espécie de contrato de reconhecimento.

A terceira e última é a memória das formas dos signos, que engloba comunidades de “saber dizer”, relacionadas às maneiras de emprego das formas. Há ainda as comunidades semiológicas, relacionadas com a capacidade dos sujeitos de elaborar julgamentos e de falar em nome de normas sociais compartilhadas.

Charaudeau (2004) estabelece a hipótese de uma articulação estreita entre as três e também entre situação de comunicação e normalização-codificação das práticas linguageiras.

Já tratamos da questão das restrições. Aquelas que se ligam às identidades dos parceiros, aos papéis que estes assumem nas trocas e às finalidades que os movem (estas últimas sendo as definidoras das visadas discursivas) estão todas presentes na situação de comunicação.

Para Charaudeau (2004), quando ocorre de diversas situações de comunicação possuírem características semelhantes, é porque todas integram o mesmo domínio de comunicação. O linguista ainda aborda a discursivização, na qual se encontram as maneiras de dizer, outro espaço de restrições. Para entender o fato de textos diferentes possuírem características que os fazem aparentar pertencer a um único tipo, Charaudeau (2004) busca distinguir as restrições discursivas das restrições formais. As primeiras estão ligadas aos MOD, enquanto as formais remetem às maneiras de dizer que estão presentes em textos das mesmas classes.

Na visão desse autor, as restrições discursivas são dados externos que acabam por construir os discursos. Entre esses dados estão as escolhas dos modos enoncivos (narrativo, argumentativo, descritivo) pelo falante, o engajamento a um modo enunciativo (alocutivo,

elocutivo, delocutivo), os modos de tematização que guiarão os discursos e os modos de semiologização, responsáveis pelas organizações visual e verbal dos atos de linguagem.

As restrições das marcas formais têm relação com o agrupamento de diferentes textos a um mesmo gênero. Charaudeau (2004) alerta ainda que a simples recorrência de regularidades como método de classificação pode levar a dois problemas: o primeiro deles é ligado ao sentido das formas. Nem sempre uma forma semelhante significa a mesma atitude em textos distintos, o que ocorre, por exemplo, com a interrogação e a impessoalidade. O segundo problema é que a recorrência não nos dá a segurança de afirmar que estamos lidando com um “tipo específico” de texto, já que seria necessário identificá-la como específica ou exclusiva do texto. Sendo exclusiva, teríamos então um gênero textual; do contrário, estaríamos diante da dificuldade de classificar o referido texto. Assim sendo, o linguista francês dá às características formais o status de “propriedades específicas” dos textos, ainda distantes de serem “propriedades constituintes”.

Tratemos das visadas. Charaudeau (2004) as define como uma “intencionalidade psico- sócio-discursiva que determina a expectativa (enjeu) do ato de linguagem do sujeito falante e por conseguinte da própria troca linguageira” (CHARAUDEAU, 2004, p. 23). As visadas devem ser percebidas, segundo o autor, de um ponto de vista daquele que fala (no caso das mídias, da instância de produção), mas sendo também necessário o seu reconhecimento por parte da instância de recepção. O pesquisador aponta para seis visadas principais:

1) Visada de Prescrição: o EU busca “mandar fazer” e, tendo autoridade para tanto, o TU deverá encontrar-se em uma posição de “dever fazer”.

2) Visada de Solicitação: o EU, que é legitimado, busca “saber” algo, enquanto o TU encontra-se posicionado em um “dever responder”;

3) Visada de Incitação: EU quer “mandar fazer”, mas não sendo legitimado como autoridade, só tem condições de incitar o TU (por meio de persuasão ou de sedução) a acreditar que será beneficiado por seus próprios atos. Assim, deve “fazer acreditar”, enquanto o TU está em posição de “dever acreditar”.

4) Visada de Informação: EU busca “fazer saber” algo, estando em posição de autoridade e de legitimação, enquanto o TU localiza-se como instância de “dever saber”.

5) Visada de Instrução: o EU quer “fazer saber-fazer”, também estando em posição de autoridade de saber e de legitimação para passar adiante seus conhecimentos. TU, por sua vez, está na posição de “dever saber-fazer” segundo um modelo proposto pelo EU.

6) Visada de Demonstração: EU tenta “estabelecer a verdade e mostrar as provas”, baseado em uma posição de autoridade de saber. A TU cabe receber e “ter que avaliar” esta verdade.

É importante salientar que Charaudeau (2004) diferenciou as visadas discursivas de outras categorias, como os atos de fala. Um mesmo ato, por conseguinte, poderá dotar-se de mais de uma visada discursiva (é, inclusive, o que geralmente acontece). Não obstante, o linguista ainda afirma que há dominância entre visadas presentes em uma situação específica. No caso da situação de comunicação midiática, por exemplo, há uma visada dominante dupla: de informação (já que as organizações respondem à demanda da opinião pública por esclarecimentos sobre as situações que ocorrem no espaço público) e de incitação (uma vez que, como vimos, as empresas estão em uma relação de mercado e concorrência e precisam fazer com que seus discursos cheguem ao maior número possível de alvos, captando-os).

A situação de comunicação, nessa perspectiva, é composta por uma relação entre a finalidade (e as visadas), as identidades dos sujeitos, o propósito comunicativo e as circunstâncias materiais. É por isso mesmo que, na visão de Charaudeau (2004), podemos falar em um “contrato de comunicação” para cada situação particular.

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