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3. OS GÊNEROS TEXTUAIS E O PROCEDIMENTO “SEQÜÊNCIAS DIDÁTICAS”

3.1 Os Gêneros Textuais

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46 gêneros textuais, definido por Bakhtin (op.cit.) como as “formas relativamente estáveis tomadas pelos enunciados em situações habituais, entidades culturais intermediárias que permitem estabilizar os elementos formais e rituais das práticas de linguagem”.

O gênero é visto como um instrumento mediador das práticas sociais, que precisa ser apropriado pelo aluno para que ele possa exercer um papel nas práticas sociais.

Em outras palavras, é através dos gêneros textuais que as pessoas participam das diversas situações sociais envolvendo a linguagem, e, portanto, saber usar uma língua passa por estar apto a usar os diferentes gêneros.

Embora as práticas sociais sejam um “lugar de manifestações do individual e do social na linguagem” (Bautier, 1995:203) e, portanto, sua natureza seja heterogênea e os papéis, ritos, normas e códigos, próprios da circulação discursiva, sejam dinâmicos e variáveis (Schneuwly e Dolz, 2004:73), os gêneros atravessam essa heterogeneidade e fazem emergir uma série de regularidades no uso.

Por exemplo, um email ou carta de reclamação de um produto defeituoso possuirá uma série de elementos discursivos e formais característicos e comuns, em geral, a todos os textos de reclamação de produtos defeituosos. Entre eles, poderíamos citar informações sobre o produto comprado, a data da compra, descrição do tipo de problema ocorrido, e uma possível solução esperada pelo cliente. Da mesma forma, um discurso de posse de um presidente de uma empresa para o conselho de administração e para seus acionistas provavelmente segue alguns protocolos, como agradecimentos, exposição de objetivos a serem buscados, desafios, etc., bem como certo rigor no uso da linguagem formal. Evidentemente, isto não quer dizer que não possa haver especificidades da situação, mas sim que existe um padrão relativamente estável, normalmente encontrado em textos de um mesmo gênero. A partir disto, entendo que aprender a usar uma língua exige não só o comando sobre o sistema lingüístico (competência, nos termos de Chomsky, 1965), mas a habilidade e consciência do uso social do gênero, isto é, sobre qual forma ou padrões estão presentes em determinado tipo de texto para que o usuário consiga atingir a função comunicativa esperada por ele.

47 Assim, embora cada situação de comunicação tenha especificidades únicas, as dimensões partilhadas pelos textos pertencentes a um determinado gênero lhe conferem certa estabilidade, o que torna a comunicação mais eficaz, já que os interlocutores conseguem estabelecer um ponto de sincronia sobre os objetivos do texto (oral ou escrito).

De acordo com Bakhtin, os gêneros podem ser divididos em gêneros primários e secundários. Enquanto os gêneros primários se constituem em circunstâncias de uma comunicação espontânea, os gêneros secundários aparecem em uma comunicação cultural, mais complexa e relativamente mais evoluída, principalmente escrita: artística, científica, e sociopolítica (Bakhtin, 1979: 281). Os gêneros primários, conforme Schneuwly e Dolz (2004:29) possuem as seguintes dimensões:

troca, interação e controle mútuo pela situação; funcionamento imediato do gênero como entidade global controlando todo o processo, como uma só unidade; e nenhum ou pouco controle metalingüístico da ação lingüística em curso. Em contraste, os gêneros secundários – foco de ensino da proposta dos autores acima mencionados – não são diretamente controlados pela situação, ou seja, não são espontâneos.

A proposta de Schneuwly e Dolz é de que o ensino de língua na escola seja baseado na prática e ensino de um número ‘x’ de gêneros ao longo das séries escolares. Os autores fazem um agrupamento dos tipos de gêneros, reproduzidos no Quadro 1, a seguir. É importante ressaltar, conforme os autores e pesquisadores, que os agrupamentos assim definidos não são estanques uns com relação aos outros, nem é possível classificar cada gênero de maneira absoluta em um dos agrupamentos propostos.

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Domínios sociais de comunicação Aspectos tipológicos

Capacidades de linguagem dominantes

Exemplos de gêneros orais e escritos

Cultura literária ficcional Narrar

Mimese da ação através da criação da intriga no domínio do verossível

Conto maravilhoso Conto de fadas Fábula

Lenda

Narrativa de aventura Narrativa de ficção científica Narrativa de enigma

Narrativa mítica

Sketch ou história engraçada Biografia romanceada Romance

Romance histórico Novela fantástica Conto

Crônica literária Adivinha Piada Documentação e memorização das ações

humanas Relatar

Representação pelo discurso de experiências vividas, situadas no tempo

Relato de experiência vivida Relato de viagem

Diário íntimo Testemunho Anedota ou caso Autobiografia Curriculum vitae Noticia

Reportagem Crônica social Crônica esportiva Histórico

Relato histórico

Ensaio ou perfil biográfico Biografia

Discussão de problemas sociais controversos Argumentar

Sustentação, refutação e negociação de tomadas de posição

Textos de opinião Diálogo argumentativo Carta ao leitor

Carta de recomendação Carta de solicitação Deliberação informal Debate regrado Assembléia

Discurso de defesa (advocacia) Discurso de acusação (advocacia) Resenha crítica

Artigos de opinião assinados Editorial

Ensaio Transmissão e construção de saberes

Expor

Apresentação textual de diferentes formas dos saberes

Texto expositivo Exposição oral Seminário Conferência Comunicação oral Palestra

Entrevista com especialista Verbete

Artigo enciclopédico Texto explicativo

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Tomada de notas

Resumo de textos expositivos e explicativos Resenha

Relatório científico

Relatório oral de experiência Instruções e prescrições

Descrever ações

Regulamentação mútua de comportamentos

Instruções de montagem Receita

Regulamento Regras de jogo Instruções de uso Comandos diversos Textos prescritivos

Quadro 1: Proposta provisória de agrupamentos de gêneros (Schneuwly e Dolz, 2004: 60)

Dessa maneira, o gênero é visto como um megainstrumento que fornece um suporte para as situações de comunicação e uma referência para os aprendizes. Em outras palavras, os gêneros são vistos, dentro do contexto escolar, não só como o instrumento de comunicação, mas como o próprio objeto de ensino e aprendizagem.

Esta alternativa de ensino diferencia-se notavelmente do ensino tradicional de língua materna (e muitas vezes de língua estrangeira), excessivamente baseado nas formas gramaticais e no domínio de conhecimentos metalingüísticos, que acabam preparando o aluno para falar sobre a língua, mas não para saber usá-la nas diferentes práticas de linguagem encontradas na vida fora da sala de aula. Nesta proposta, o planejamento de um currículo de ensino não visa especificamente a fazer o aluno dominar certas estruturas (syllabus estrutural), mas dominar práticas de linguagem com as quais ele poderá se deparar em situações autênticas. O domínio das estruturas gramaticais não ocupa papel central no processo, embora isso não signifique que não possua seu devido valor ou que não deva ser tratado em algum momento do programa de ensino (vide a seção 3.3 a seguir).

Em oposição a esta visão, a proposta de prática e ensino de gêneros textuais na escola está intimamente ligada à noção de letramento (Street, 1984; Heath, 2001;

Kleinman 1995; Soares, 2002) como alternativa para o ensino. O conceito de letramento, de acordo com Kleinman (1995), começou a ser usado nos meios acadêmicos em uma tentativa de separar os estudos sobre o “impacto social da escrita” dos estudos sobre a alfabetização, cujas conotações escolares destacam as competências individuais no uso e na prática da escrita. Assim, enquanto a

50 alfabetização refere-se mais especificamente ao simples domínio individual sobre a aquisição de códigos, sobre a capacidade de decodificar a escrita e sobre a habilidade “mecânica” para se produzir um texto, o conceito de letramento é bem mais amplo no sentido de que condiciona essa habilidade individual ao seu uso dentro das práticas sociais de leitura e escrita existentes no contexto social onde o indivíduo está inserido, sempre ligada com as práticas sociais de interação oral. O domínio dos gêneros pode possibilitar ao indivíduo, conforme Soares (2002), não só saber ler e escrever, mas exercer práticas sociais de leitura e escrita que circulam na sociedade em que vive, conjugado-as com práticas sociais de interação oral.