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Os grandes eixos temáticos da crítica de Macedo ao jornalismo vintista

No documento Os Jovens e a Renovação do Jornalismo (páginas 87-146)

Comunicações de tema livre

3. Os grandes eixos temáticos da crítica de Macedo ao jornalismo vintista

Em resumo, pode dizer-se que a crítica de José Agostinho de Macedo ao jornalismo português do início do século XIX assentou nos seguintes eixos temáticos, repetidos até à exaustão nas suas diversas obras:

1. Os jornais, opinativamente segmentados, e em cada vez maior número, fomentam a anarquia e a divisão do Povo e da Nação e geram emoção, podendo desencadear acções. O jornalismo tem, portanto, efeitos pessoais e sociais, em especial ao nível da opinião pública.

2. Os jornais providenciam ao Povo apenas o conhecimento de inutilidades e irrelevâncias, e desviavam-no da fé católica e da verdadeira ilustração, que exige daquele que quer conhecer um esforço pró-activo muito maior do que o gesto preguiçoso de ler um jornal em 15 minutos. A ilustração pessoal exige que se leiam mais livros e menos jornais.

3. Os jornalistas são maioritariamente pessoas incultas e impreparadas, muitas delas semi- analfabetas e, frequentemente, desviadas de outros ofícios onde seriam mais úteis, que

encontram na publicação de jornais uma fonte de rendimento à custa dos incautos que os compram.

4. Os jornalistas não hesitam em ajuizar e sentenciar em todos os assuntos como se todos os assuntos dominassem por igual. Querem, ilegitimamente, governar a Nação, ou representá-la, quando não sabem sequer governar-se a si mesmos nem têm conhecimentos ou aptidões para o fazerem. Arrogam-se, ilegitimamente, de serem os legítimos intérpretes dos anseios da Nação, quando nem sequer a compreendem.

5. Muitos jornalistas pouco mais fazem do que copiar-se uns aos outros e copiar os jornais estrangeiros julgando que em Portugal ninguém os lê. Por isso, os jornais são semelhantes uns aos outros e quem lê um, lê todos.

6. Defraudando o público e tirando partido da sua ignorância, são os redactores dos periódicos a fabricarem cartas para os seus jornais como se fossem cartas de verdadeiros leitores, o que acentua a sensação de semelhança entre os jornais, mas a sua leitura também gera a sensação de irrealidade. Uma outra fraude cometem os jornalistas quando escrevem sobre assuntos que não conhecem e sobre acontecimentos longínquos como se deles estivessem a par. Inventar notícias e fugir à verdade são pecados maiores do jornalismo.

7. Os jornalistas, maioritariamente, não sabem escrever. Desrespeitam a gramática e a ortografia e não sabem estruturar um texto, dando-lhe um fio condutor.

Bem vistas as coisas, as críticas de Macedo ao jornalismo oitocentista, em vários aspectos, não se afastam muito das críticas que contemporaneamente continuam a ser feitas ao jornalismo. Em suma,

é possível afirmar que muitas das críticas que hoje em dia se fazem ao jornalismo têm, afinal, raízes no passado...

De qualquer modo, apesar do intenso e polémico debate sobre o papel da imprensa no Portugal vintista, deve dizer-se que os portugueses entraram na terceira década do século XIX a fazerem a “aprendizagem da cidadania”, como lhe chamou Isabel Vargues (1997), graças aos jornais que transformaram o país ao dar-lhe uma espécie de fórum nacional permanente.

Conclusões

Em matéria de conclusões, deve dizer-se, em primeiro lugar, que José Agostinho de Macedo foi o primeiro autor português a tecer uma crítica estruturada e sistemática ao jornalismo, apresentando, igualmente, alternativas para o desenvolvimento da comunicação social. Nesse sentido, ele pode considerar-se como um precursor da teorização crítica portuguesa do jornalismo.

A crítica de José Agostinho de Macedo ao jornalismo político (e não só) do seu tempo permite, em segundo lugar, perceber que este autor tinha uma ideia clara sobre a influência do jornalismo na formação de correntes de opinião e sobre a repercussão das mesmas na ordem política e na governação. Macedo, sem empregar os conceitos que hoje em dia empregaríamos, percebeu que o espaço público se estava a politizar, não apenas por força dos jornais, mas também pela institucionalização da democracia representativa e pelo alargamento do direito de voto. Percebeu, também, que o jornalismo, ultrapassando o espaço interpessoal da comunicação directa, se tornava no mais importante agente de segmentação das opiniões a nível nacional.

Em terceiro lugar, pode dizer-se que José Agostinho de Macedo percebeu que o jornalismo panfletário não respondia às necessidades informativas da população, apontando a necessidade de se desenvolver um jornalismo de cariz informativo, como aquele que seria protagonizado, em Portugal, pelo Diário de Notícias, 33 anos depois da morte do autor. Paradoxalmente – coisa que

não é de admirar em quem viveu uma vida de paradoxos – o próprio Macedo foi um dos mais lídimos praticantes do panfletarismo.

Bibliografia

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CAVROÉ, Pedro Alexandre. Resposta ao Papel Intitulado “Exorcismos Contra Periódicos e

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MACEDO, José Agostinho. Carta ao Senhor Redactor do Diário do Governo. Lisboa: Impressão Liberal, 1822.

MACEDO, José Agostinho. Carta de Manuel Mendes Fogaça Escrita a seu Amigo Transmontano

sobre uma Coisa que Observou em Lisboa Chamada O Observador. Lisboa: Impressão Régia, 1818.

MACEDO, José Agostinho. Carta de um Pai para Seu Filho Estudante na Universidade de

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MACEDO, José Agostinho. Carta Escrita ao Senhor Redactor da Gazeta Universal pelo Veterano,

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MACEDO, José Agostinho. Cordão da Peste ou Medidas Contra o Contágio Periodiqueiro. Lisboa: Oficina da Viúva de Lino da Silva Godinho, 1821b.

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MACEDO, José Agostinho. Resposta aos Dois do Investigador Português em Londres, que no

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VARGUES, Isabel. A Aprendizagem da Cidadania em Portugal (1820-1823). Coimbra: CoimbraMinerva, 1997.

Outra bibliografia de Macedo referida no texto

MACEDO, José Agostinho. A Besta Esfolada, n.º 1 a n.º inédito de 1831, 1828-1831. MACEDO, José Agostinho. A Tripa Virada, n.º 1 a n.º 4, 1823.

MACEDO, José Agostinho. Carta de J. A. D. M. a seu Amigo J. J. P. Lopes, n.º 1 a n.º 32, 1827. MACEDO, José Agostinho. Censura dos Lusíadas. Lisboa: Impressão Régia, 1820.

MACEDO, José Agostinho. Dom Luís de Ataíde ou a Tomada de Dabul: Drama Heróico para a

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MACEDO, José Agostinho. Gama: Poema Narrativo. Lisboa: Impressão Régia, 1811.

MACEDO, José Agostinho. Manifesto à Nação ou Últimas Palavras de José Agostinho de Macedo. Lisboa: Oficina de António Rodrigues Galhardo, 1822.

MACEDO, José Agostinho. Motim Literário em Forma de Solilóquios, n.º 1 a n.º 37, 1811. MACEDO, José Agostinho. O Desaprovador, n.º 1 a n.º 25, 1818 a 1819.

MACEDO, José Agostinho. O Desengano, n.º 1 a n.º 13, 1831.

MACEDO, José Agostinho. O Espectador Português: Jornal de Literatura e Crítica, n.º 1 a n.º 26, 1816 a 1818.

MACEDO, José Agostinho. O Oriente. Lisboa: Impressão Régia, 1814.

MACEDO, José Agostinho. O Sebastianista Desenganado à Sua Custa. Lisboa: Impressão Régia, 1810.

MACEDO, José Agostinho. Os Burros. Lisboa: Impressão Régia, 1812.

(Re) vendo Saramago: Ensaio Fotográfico sobre a Cegueira

Cássia Maria Popolin (Universidade Estadual de Londrina) cassiapop07@yahoo.com.br

Ieda Cristina Borges (Universidade de Marília) iedajorn@gmail.com

Resumo – O livro Ensaio sobre a Cegueira, do escritor português José Saramago – Prêmio Nobel de Literatura em 1998, foi o ponto de partida para a análise da cegueira, não sob o aspecto físico, mas sob suas mais variadas manifestações. A fotografia foi utilizada como mensagem visual para representar as cegueiras presentes na sociedade e como uma possibilidade de reflexão e de levantar questões em que muitos ainda insistem em não ver. Cegueira de sentimentos, social, da insensibilidade e da indiferença são alguns pontos discutidos sob a ótica da fotografia. Jornalistas e repórteres fotográficos desempenham papel fundamental no processo de informação e atuam como agentes sociais, trazendo à tona discussões relevantes, através de investigações de fatos que possuem forte efeito na vida das pessoas e do país.

Palavra chave - Saramago; cegueira; fotografia

“Não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo não vêem”, assim o médico, um dos personagens do livro Ensaio sobre a Cegueira, finaliza seu discurso. Nesta obra, o escritor português José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura em 1998, leva o leitor a “enxergar”, e muito mais que isso, o faz temer a própria humanidade frente a uma situação de caos.

O livro começa com uma súbita e inexplicável epidemia de cegueira. A maneira como Saramago escreve, com poucos pontos, muitas vírgulas e discurso corrente, faz com que os acontecimentos passem com uma velocidade incrível: vão-se cegando vários personagens sem que se possa dar uma pausa para respirar. E quando finalmente se resolve parar, percebe-se que o autor não deu nome à cidade, não datou os acontecimentos e manteve seus personagens anônimos, conhecidos apenas como o motorista, o ladrão, o homem da venda preta ou a rapariga dos óculos escuros.

No entanto, entre tantos cegos presos em um manicômio por ordem governamental, existe uma mulher que ainda consegue enxergar. É a mulher do médico, a única que pode ver as belas e horrorosas imagens descritas ao longo da narrativa. Assim como Blimunda, personagem de Memorial do Convento, também de Saramago, ela se questiona se o fato de continuar enxergando é uma bênção ou uma maldição e desejou estar cega, e “atravessar a pele visível das coisas e passar para o lado de dentro delas”.

Durante a quarentena, período que são obrigados a se confinar, o velho da venda preta relata o que acontece fora do manicômio, através das notícias do rádio e do que via antes de entrar no manicômio. Através de seus questionamentos consegue abrir os olhos para a realidade do mundo, o caos que pode se instalar a qualquer momento, as atitudes impensadas de quem está no poder tentando isolar o problema ao invés de estudá-lo. Regras são quebradas, pois ninguém mais vê quem está agindo errado; os mais fortes abusam do poder, e o instinto de sobrevivência vai tomando conta dos homens.

Ao final do livro, Saramago faz o leitor parar, fechar os olhos e ver, se questionar se é assim que os homens verdadeiramente são e se é preciso cegarem-se todos para que enxerguem a essência de cada um. E nos coloca a responsabilidade de “ter olhos quando os outros os perderam”.

Como afirma Collier ( 1973 – 1), “a máquina fotográfica não se apresenta como um remédio para nossas limitações visuais, mas como uma auxiliar para nossa percepção”. E acrescenta: “somente a sensibilidade humana pode abrir os “olhos” da câmera” e ver além do retângulo do visor. Com a câmera nas mãos o fotógrafo se torna narrador, ajuda as pessoas a verem o mundo de outros ângulos e a refletir sobre questões sociais que se insere em seu discurso”.

A fotografia é mágica e sempre invisível: não é ela que se vê, mas um discurso que faz desencadear em torno dela. Bulla (2005 – 217) define a fotografia como a “representação de uma realidade, que transmite significado, produz sentido, provoca emoções, fala de alegrias, solidão, dor...” e por que não da cegueira?

A foto abaixo (foto 1), produzida em preto e branco, foi invertida através do photoshop, para o positivo. A intenção foi de produzir o efeito da treva branca ou mal-branco como Saramago denominou a cegueira acometida por seus personagens. Esta imagem convida para uma reflexão acerca da cegueira de sentimentos, como diz a epígrafe do livro: “se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. As grades do berço em primeiro plano representam o aprisionamento dos sentimentos, e o que deveria ser proteção, passa a ser abandono. A boneca, solitária, interroga a consciência coletiva através da objetiva fotográfica.

Ou como afirma Dubois que esse exercício de regressividade na fotografia é algo que se deve buscar, é ir além daquilo que é visível, buscar o negativo no positivo, atravessar camadas, “ascender da consciência da imagem rumo a inconsciência do pensamento”. Para ele, uma foto sempre esconde outra, atrás ou em torno dela; é assim que funciona o “aparelho psíquico-fotográfico”.BULLE ( 2005 -219)

Fotos: Cássia Popolin

Foto 1 – Cegueira de sentimentos

A imagem seguinte (foto 2), conta com a estética do contra-luz e do contraste. Mais uma vez o preto e branco deixa a cargo do repertório imaginativo do leitor o preenchimento das lacunas deixadas pela ausência de cromia. Por ser o oposto da fotografia em cores, ele também se opõe ao que se vê na realidade, afinal o mundo que percebemos é colorido, e assim o preto e branco propõe uma leitura diferente do mundo, daquilo que não se enxerga ou daquilo que não se quer enxergar. A realidade é passada sem máscaras, e encontram-se nas entrelinhas espaços abertos para quem lê a imagem, mas a cegueira social salta aos olhos e é visível.

[ Foto 2 – Cegueira Social

De volta à caverna de Platão

Em Janela da Alma – um filme sobre o olhar (2001), de João Jardim e Walter Carvalho, aborda que a visão é antes de tudo uma questão cultural sendo influenciada mais pelo mundo que nos cerca do que por dados ou defeitos naturais. Vê-se mais o que é imposto. Em seu depoimento no documentário, Saramago questiona e responde: e se todos nós estivéssemos cegos? E estamos: cegos da razão e da sensibilidade. E em sua justificativa nos remete à caverna de Platão para mostrar o fascínio e a alienação que causam o mundo das imagens.

Saramago tratou desse assunto em seu livro A Caverna, lançado em 2000, onde utiliza-se da alegoria da Caverna, descrita no livro VII inserido em A República e escrito por Platão onde relata a

sentadas em frente a uma parede. Atrás delas, há uma fogueira que projeta imagens dos passantes. O mundo dessas pessoas é este. Imagens, somente imagens. Segundo ele, o homem contemporâneo perdeu-se dentro das diversas realidades criadas por ele, optando olhar o mundo por meio de simulacros do mito platônico.

O ver já não é mais um fenômeno ótico ou biológico, faz parte da maneira como se codifica e decodifica o mundo que nos circunda. É antes de tudo, uma maneira de interpretar, de dar sentido, de criar e recriar a chuva ininterrupta de imagens que nos inundam diariamente. Somente o olhar da consciência é capaz de filtrar e perceber o que é manipulação, alienação e distração do que é denúncia, verdade e expressão viva da realidade.

Analisando a foto abaixo (foto 3), a moldura criada pela árvore, leva o leitor a observar a figura principal da imagem: o catador de lixo reciclável. Esta cena nos remete mais uma vez à mulher do médico, que se sentia como se estivesse por trás de um microscópio a observar o comportamento de uns seres que não podiam nem sequer suspeitar da sua presença. Aqui a câmera registra e flagra um senhor de idade trabalhando como catador para completar o salário da aposentadoria. “Que país é este?”, Renato Russo já se perguntava em 1978.

Mais uma vez a cegueira social está impregnada nos pixels dessa imagem. Em cada ponto um questionamento. A fragmentação e o recorte oferecem a ela uma singularidade. Como destaca Sontag ( 2004 – 13),

Essa insaciabilidade do olho que fotografa altera as condições do confinamento na caverna: o nosso mundo. Ao nos ensinar um novo código visual, as fotos modificam e ampliam nossas idéias sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos o direito de observar. Constituem uma gramática e, mais importante ainda, uma ética de ver.

Ou ainda segundo Dubois (1994 -161),

a foto aparece como uma fatia, uma fatia única e singular de espaço-tempo, literalmente cortada ao vivo. Centésimos de segundos captados pelo abrir e fechar das cortinas do

obturador. O olhar atento seleciona a imagem no visor como uma tesoura recorta a cena, separando o que é mais interessante do que é acessório, uma leitura de mundo que um olhar apenas convencional jamais teria acesso.

Olhar para esta foto é ter a impressão que estamos olhando-a de dento da “caverna”, cabe ao leitor escolher entre o olhar questionador ou continuar na cegueira social, classificando-a como mais uma imagem refletida pela “fogueira” da insensibilidade. Nas palavras do semiólogo Roland Barthes, citadas em Samain (1998 –128):

A fotografia é essencialmente uma “fuga” e a ocasião de uma “aventura” que somente se tornam possíveis, quando a fotografia induz a pensar e torna-se “pensativa”, quando ela “deixa o detalhe remontar sozinho à consciência afetiva”, quando, ondulosa como as ondas do mar, leva nosso pensamento, nosso imaginário... à reflexão

Foto 3 – Que país é este?

Na definição de Saramago (2005 – 302), as mãos são os olhos dos cegos. Na foto a seguir (foto 4), as mãos desse jovem de 23 anos, catador de papel, que trabalha recolhendo material em um lixão, também são os olhos de quem insiste em não querer ver mais uma injustiça social.

Poucas imagens mostram tão pouco, e, simultaneamente possuem tanto significado. O plano de detalhe neste caso é responsável por transformar as mãos no centro de interesse da fotografia, colocando-as para representar o personagem a quem elas pertencem. Sabe-se que o jovem está ali, mas que não ficou retido pelo recorte, é o que Dubois (1994 – 179) denomina de fora-de-campo, ou

espaço off, que ao mesmo tempo que está ausente do campo de representação, marca sua relação de continuidade com o recorte selecionado.

A unicidade de um olhar, de um detalhe que nos sensibiliza, não se pode traduzir em palavras, mas em imagens. Imagens que circundam o pensamento e que encontram voz num retângulo silencioso chamado fotografia. Ou como ainda escreve Saramago (2005) sons exteriores vão repassando o véu da inconsciência em que estamos envolvidos.

A imagem das mãos nos lança vários olhares e diferentes indagações. Nesta fotografia a câmera atuou como uma extensão dos olhos, um instrumento da percepção e congelou fragmentos carregados de mensagens denotativas e conotativas, ora oferecendo informações ao intelecto, ora ao afeto. Basta abrirmos os olhos da mente. A fotografia é mágica e sempre invisível: não é ela que vemos, mas um discurso que nos faz desencadear em torno dela, não é mero registro visual e mimético, mas é capaz de provocar questionamentos e tornar-se pensativa.

Como sintetiza Andrade ( 2002 – 114),

olhar para o mundo é uma condição, compreendê-lo por meio desse olhar é uma busca eterna, instigante e fascinante. Fascinante porque é pela contemplação da beleza do mundo que nos encantamos e nos apaixonamos. Instigante porque a vontade de mergulhar em seu desconhecido pode nos levar ao diferente e transformar o que estamos viciados a enxergar.

E nesse momento, as mãos que trabalham levam-nos a uma viagem de identificação e interiorização;

No documento Os Jovens e a Renovação do Jornalismo (páginas 87-146)