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3. LABORATÓRIO EXPERIMENTAL DE CANTO PARA ATORES

3.3. OS JOGOS

De acordo com MALETTA (2005), “não é possível que um excelente ator seja desprovido de qualquer talento musical e corporal”, dado que esta excelência é intrinsecamente ligada à sua habilidade de ouvir, à percepção rítmica e melódica de falas e entonações (p. 170). Por esta perspectiva, o caminho adotado para trabalhar com os atores o desenvolvimento da sua habilidade de cantar se define no intuito de desfazer as resistências que obstaculizam o acesso à musicalidade que, como bons intérpretes, certamente possuem.

Em seu estudo sobre a formação múltipla do ator, Maletta afirma que a solução das dificuldades requer caminhos interdisciplinares, nos quais as diversas habilidades estimulem-se umas às outras. Neste sentido, o autor propõe exercícios de atuação polifônica, que têm como objetivo desenvolver a articulação entre vários discursos (palavra, melodia, gestual etc.), ao mesmo tempo em que se busca a conscientização sobre esta articulação. Outro ponto importante é que estes exercícios favorecem a desinibição corporal e vocal, pois “o gesto e o movimento podem tornar-se impulsos para o trabalho vocal, retirando o foco de um virtuosismo técnico que, muitas vezes, leva o ator a considerar-se inapto para a prática do canto, impedindo-o de experimentá-la” (2005, p. 189-190). Para promover a desinibição e estimular a

disponibilidade e a percepção através da musicalidade, foram utilizados no laboratório dois destes exercícios, cuja aplicação descrevo a seguir:

Guli Guli30 - este exercício foi escolhido para inaugurar as atividades lúdicas do nosso laboratório: é uma adaptação de uma brincadeira infantil, e consiste em cantar uma determinada melodia acompanhada por uma sequência de gestos. Uma observação importante ressaltada pelo pesquisador sobre a aplicação deste exercício é que não se gaste muito tempo com o aprendizado da melodia ou dos movimentos, pois não é necessária uma execução perfeita. “Mais ainda, evita-se destacar aqueles que, realmente, têm mais dificuldades, estimulando-os a se expressarem com mais liberdade” (MALETTA, 2005, p. 339).

Instaurando um clima de alegria em que o erro evoca a leveza do riso e da brincadeira, o Guli Guli é nosso pretexto para experimentar na prática a ideia de que, mais que a perfeição técnica do canto ou da execução da coreografia, o que importa é a alegria de jogar. É o prazer de estar em cena, de cantar e dançar como em um jogo ou brincadeira, que deve ser sempre buscado e alimentado, tal como acontecia na atuação revisteira; esta foi, em suma, a proposta-aposta que norteou este laboratório.

Voz e movimento circular 31 - este exercício propõe, além da execução de ações simultâneas, o desenvolvimento da habilidade rítmica e da percepção auditiva. Por apresentar uma aparência mais complexa e maior exigência quanto à coordenação motora, provocou na turma certa tensão e ansiedade por acertar, que procurei desfazer, ressaltando que o objetivo não era alcançar uma execução perfeita; o objetivo era o próprio exercitar, ainda que se procurasse realizar cada uma das ações da melhor maneira possível. Originalmente realizado com os participantes dispostos em círculo, o exercício foi experimentado por nós em semicírculo, por duas razões: primeiro, para instalar no corpo um estado de extroversão análogo à atuação revisteira, em que o ator, peito aberto, se dirige e se exibe ao seu público (REIS; MARQUES, 2004); em segundo lugar, para evitar uma possível confusão gerada pela referência de espelho ao se olhar a movimentação do colega em frente, estando em círculo.

Em um primeiro momento, a proposta era realizar a movimentação cantando a escala de Dó maior, ascendente e descendentemente. No primeiro dia em que o

30 Ver descrição do exercício na pág. 104. 31

experimentamos, o acréscimo do canto não parecia aumentar a dificuldade quanto à movimentação, ainda que esta absorvesse a maior parte da atenção dos participantes. No segundo dia, a escala descendente não soava: a turma explicou que conseguia entoar as notas, mas não os nomes das notas, no sentido descendente. Ou seja, tudo ia bem para dó-ré-mi-fá-sol-lá-si, mas se complicava para dó-si-lá-sol-fá-mi-ré, que é uma sequência mais conhecida no contexto de uma educação musical, ainda que básica, mas que os participantes não vivenciaram o suficiente para fixar.

Constatamos, os atores e eu, que no primeiro dia, provavelmente, tudo tivesse soado bem porque a turma estava sendo “levada” pelo colega que havia estudado música; na sua ausência, porém, o titubeio quanto aos nomes das notas gerou uma insegurança quanto à escala que contaminava até mesmo a movimentação que já estivera segura. Para liberá-los da tensão, passei a lhes falar os nomes antes de cada nota, pois o importante no momento não era a memorização, mas a realização das ações simultâneas, coordenadas rítmica e melodicamente. Sem esta preocupação, a coordenação aconteceu de modo satisfatório.

Um estágio posterior consiste em executar este exercício cantando a escala em cânone. Deste modo, sendo quatro pessoas, uma dupla começa, e a outra só faz o mesmo quando a primeira cantar a nota Mi. A dificuldade extra que então se apresenta, de cantar uma melodia e ouvi-la cantada por outro grupo em um tempo deslocado, se reflete sobretudo na afinação e torna-se ainda mais difícil em se tratando apenas de duplas: como cada dupla canta em seu próprio tempo, se uma pessoa vacila é muito fácil que seu companheiro também se perca.

Cantar ouvindo outra voz, outra melodia, é uma habilidade cujo desenvolvimento requer prática, tempo, constância, e traz grandes resultados para a ampliação perceptiva do ator, muito além das demandas do trabalho estritamente musical. Por isso, um excelente espaço de aprimoramento é o canto coral: “polifonia ensina polifonia”, afirma Maletta, destacando que a prática de cantar em diálogo com diferentes vozes, característica da polifonia vocal, favorece diretamente o aprimoramento da atuação polifônica, por estimular “não apenas o ouvido, mas também todo o corpo a incorporar múltiplas vozes” (2005, p. 190). Na prática do canto coral, exercita-se tanto a habilidade para ouvir, que é indispensável para contracenar, como também para dissociar, no sentido de ser receptivo às outras vozes e ao mesmo tempo preservar sua autonomia e a qualidade da sua própria ação.

O laboratório revelou uma grande carência por parte dos atores com relação à prática da polifonia vocal. Não tendo vivenciado isso como parte de sua formação dentro da Escola de Teatro da UFBA ou fora dela, dentro da breve experiência que tivemos juntos não lhes foi possível chegar à fase em que cantar a várias vozes gera prazer, ao invés de ansiedade, e ouvir as outras vozes já não confunde; pelo contrário, traz a segurança e o conforto da consonância, passando a ser mais fácil, pois as vozes auxiliam umas às outras.

É recomendável que os atores, tanto quanto possível, busquem e se permitam um contato mais continuado com a polifonia vocal, integrando corais universitários ou formando turmas sob a supervisão de um profissional competente. No âmbito das escolas de teatro, durante todo o período de formação dos atores, seria enriquecedor que, ao lado de um trabalho musical mais amplo, de conscientização rítmica e investigação de possibilidades musicais para a cena, o canto coral integrasse o seu currículo básico, propiciando a ampliação da percepção musical, o exercício técnico vocal e a apreensão de elementos da música e especificamente do canto, os quais são concernentes ao seu trabalho interpretativo.