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Os livros didáticos e suas prescrições curriculares

2 SITUANDO OS DISCURSOS

2.2 Os livros didáticos e suas prescrições curriculares

Os seis livros didáticos, todos editados no ano de lançamento do respectivo edital ao qual foram submetidos, são os seguintes:

1) Sociologia para o ensino médio (TOMAZI, 2013),

2) Tempos modernos, tempos de sociologia (BOMENY et al., 2013), 3) Sociologia (ARAÚJO; BRIDI; MOTIM, 2013),

4) Sociologia em movimento (SILVA et al., 2013),

5) Sociologia hoje (MACHADO; AMORIM; BARROS, 2013) e 6) Sociologia para jovens do século XXI (OLIVEIRA; COSTA, 2013).

Todos os exemplares analisados são manuais do professor (MP), que, além do conteúdo disponível aos alunos, contêm uma seção especial para professores, localizada no fim de cada livro, e, em algumas obras, orientações aos professores inseridas em diversos pontos20. A análise abarcará passagens do livro do aluno e passagens específicas do MP, que serão sempre demarcadas como tal.

Dessas seis obras, cinco foram aprovadas pelo PNLD com seus livros digitais21. O acesso aos livros digitais era disponibilizado na Internet para alunos e professores que tivessem um exemplar físico, ficando hospedagem e manutenção sob responsabilidade das editoras. A análise desses materiais, no entanto, foi impossibilitada, dado que eles não estão mais acessíveis.

Os seguintes documentos publicados pelo Ministério da Educação estabelecem orientações curriculares para o ensino de Sociologia e prescrições sobre livros didáticos, e serão aqui abordados:

1) As Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM) de Sociologia, publicadas pelo MEC e escritas por Moraes, Guimarães e Tomazi (2006). As OCEM fazem parte do que pode ser entendido como política curricular nacional, que o próprio MEC concebe como “expressão de uma política cultural, na medida em que seleciona conteúdos e práticas de uma dada cultura 20 Por edital, o livro do aluno e o manual do professor devem conter no máximo 400 e 512 páginas respectivamente. O limite do livro do aluno foi batido por Sociologia para jovens do Século XXI e Sociologia em Movimento, que praticamente também alcançou o limite do manual do professor, com 511 páginas. (BRASIL, 2013, p. 2-3)

21 Apenas Sociologia para jovens do século XXI não teve livro digital. Os livros digitais são compostos pelo conteúdos dos livros impressos e por objetos educacionais digitais a eles integrados, isso é, “vídeos, imagens, áudios, textos, gráficos, tabelas, tutoriais, aplicações, mapas, jogos educacionais, animações, infográficos, páginas web e outros elementos.” (BRASIL, 2013, p. 3) A inscrição de um livro digital junto ao livro impresso era opcional, e a não aprovação do livro digital não eliminava o livro impresso da seleção.

para serem trabalhados no interior da instituição escolar” (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2006, p. 8), e foram construídas a partir de discussões com técnicos em educação, professores e estudantes.

2) O capítulo Metodologia de Ensino de Ciências Sociais: relendo as OCEM- Sociologia (MORAES; GUIMARÃES, 2010) do volume de Sociologia da Coleção “Explorando o Ensino”, publicada pelo MEC. No texto, os autores aprofundam e ampliam as reflexões e apontamentos feitos nas OCEM sobre como ensinar Sociologia no Ensino Médio.

3) O edital do PNLD 2015 (BRASIL, 2013), que estabeleceu as regras do processo de avaliação e seleção dos livros didáticos que seriam distribuídos aos alunos de Ensino Médio das escolas públicas brasileiras no período de 2015 a 2017.

Os dois primeiros materiais dizem respeito aos propósitos, princípios e métodos do ensino de Sociologia nas escolas. Uma consideração assaz interessante é feita sobre o propósito da presença da disciplina no Ensino Médio, geralmente associada, quase como clichê, à “formação para a cidadania”, não ficando claro o que essa formação exige. Os autores especificam algumas maneiras pelas quais a Sociologia pode construir essa formação:

A Sociologia, como espaço de realização das Ciências Sociais na escola média, pode oferecer ao aluno, além de informações próprias do campo dessas ciências, resultados das pesquisas as mais diversas, que acabam modificando as concepções de mundo, a economia, a sociedade e o outro, isto é, o diferente – de outra cultura, “tribo”, país, etc. Traz também modos de pensar [...] ou a reconstrução e desconstrução de modos de pensar. É possível, observando as teorias sociológicas, compreender os elementos da argumentação – lógicos e empíricos – que justificam um modo de ser de uma sociedade, classe, grupo social e mesmo comunidade. (MORAES; GUIMARÃES; TOMAZI, 2006)

Como princípios epistemológicos para o ensino de Sociologia, são propostos o estranhamento e a desnaturalização. O princípio de estranhamento, caracterizado pelo espanto diante da realidade, é apresentado como um ponto de partida para ir além daquilo que já se sabe, do senso comum, em direção a novos saberes:

Estranhar […] é espantar-se, é não achar normal, não se conformar, ter uma sensação de insatisfação perante fatos novos ou do desconhecimento de situações e de explicações que não se conhecia. Estranhamento é espanto, relutância, resistência. Estranhamento é uma sensação de incômodo, mas agradável incômodo – vontade de saber mais e entender tudo –, sendo, pois, uma forma superior de duvidar. Ferramenta essencial do ceticismo. (MORAES; GUIMARÃES, 2010, p. 46, grifo suprimido)

Apesar de essencial para as Ciências Sociais, esse princípio não é específico delas, mas sim comum a todas as ciências e à Filosofia. Em razão disso, em complemento ao estranhamento é proposto o princípio da desnaturalização. Desnaturalizar é questionar o

suposto caráter natural de algo. Em pensamentos típicos do senso comum ou pseudocientífico, considerar um fenômeno como natural implica também considerá-lo eterno, imutável, essencialmente invulnerável à ação humana. Não raro, invoca-se também um suposto caráter divino em complemento ou substituição ao caráter natural. Desnaturalizar, isso é, questionar esse caráter natural ou divino das explicações sobre a realidade, abre caminho para pensar razões históricas e sociais para o objeto em questão. Mediante esses princípios, o estudo da Sociologia se constituiria como um caminho formador de uma espécie de autoconhecimento crítico:

O conhecimento no campo das Ciências Sociais é, antes de tudo, um exercício de autoconhecimento, mas de modo sistemático, rigoroso e intersubjetivo, uma vez que a investigação sociológica oferece ao estudante instrumentais que lhe garantem um tratamento coerente e analítico das questões que estão à sua volta, compreendidas com racionalidade. (MORAES; GUIMARÃES, 2010, p. 53-54).

Vemos, aqui, uma orientação curricular de educação cientificamente referenciada e orientada à realidade dos alunos, no sentido de que aos educandos deve ser mediado o desenvolvimento, a aquisição do melhor conhecimento objetivo possível das “questões que estão à sua volta”.

O edital do PNLD (BRASIL, 2013) referente às obras que serão aqui analisadas apresenta determinações para os livros de todas as disciplinas em geral, para os livros de cada área de conhecimento especificada pela LDBEN e para cada disciplina. Algumas determinações são apresentadas no corpo principal do edital, enquanto a maioria restante se concentra no Anexo III — Princípios e critérios para a avaliação de obras didáticas destinadas ao Ensino Médio. Destaco aqui as que interessam à análise.

De início, há três determinações gerais importantes. Exige-se que os livros contenham referências a outras disciplinas (da mesma área do conhecimento e de outras) e “atividades de experimentação e situações reais para consolidação da aprendizagem” para os alunos. (BRASIL, 2013, p. 2, 4.1.6.). Além disso, proíbe-se que o MP ofereça apenas resoluções de exercícios — ele é obrigado a oferecer “orientação teórico-metodológica e de articulação dos conteúdos do livro entre si e com outras áreas do conhecimento”, discussão sobre avaliação, conteúdos complementares, bibliografia e “sugestões de leituras […] para a formação e atualização do professor.” (BRASIL, 2013, p. 2, 4.1.8.). Estabelece-se, ainda, que cada obra deve visar tanto o uso coletivo (com orientação docente) quanto individual. (BRASIL, 2013, p. 2, 4.2.14.).

No Anexo III, uma seção introdutória argumenta, tendo como ponto de partida as finalidades do Ensino Médio estabelecidas pela LDBEN, pela organização da escolarização dos jovens como “um processo intercultural de formação pessoal e de (re)construção de

conhecimentos socialmente relevantes, tanto para a participação cidadã na vida pública, quanto para a inserção no mundo do trabalho e no prosseguimento dos estudos”; pelo “diálogo efetivo e constante com as culturas juvenis”; e pela “abordagem interdisciplinar dos objetos de ensino-aprendizagem”. De forma bem expressiva, essa argumentação conduz à orientação de “dar à aprendizagem significados sociais, culturais e políticos imediatos no combate à escolarização estéril dos conhecimentos”, “colaborando para o processo de construção de sua plena cidadania”. Afirma-se, ainda, uma relação entre a consideração do mundo do trabalho, do exercício da cidadania e do contexto cultural do aluno com “um ensino-aprendizagem mais significativo e emancipador, voltado para o desenvolvimento do pensamento crítico e da autonomia”. (BRASIL, 2013, p. 38, grifos suprimidos).

É notável, ainda, uma defesa do diálogo como meio pedagógico; nesse sentido, a cultura escolar

não deve se impor pelo silenciamento das culturas juvenis, populares e regionais que dão identidade ao alunado do ensino médio. Sua relevância deve, antes, evidenciar- se num diálogo intenso e constante, em que seus valores e sua pertinência para a vida do cidadão sejam explicitados e discutidos. (BRASIL, 2013, p. 38, grifos meus)

O edital faz referência, ainda, ao dever de que as propostas curriculares contemplem, em conformidade com as DCNEM 201222: trabalho, ciência, tecnologia e cultura como “eixos integradores entre os conhecimentos de distintas naturezas”; “trabalho como princípio educativo”; “pesquisa como princípio pedagógico”; “direitos humanos como princípio norteador”; e “sustentabilidade socioambiental como meta universal”. (BRASIL, 2013, p. 39).

São apresentados, em seguida, critérios eliminatórios válidos para todos os livros candidatos. O primeiro é o respeito à Constituição Federal, à LDBEN, ao Estatuto da Criança e do Adolescente, às DCNEM, assim como às resoluções e aos pareceres do CNE. O segundo, a “[o]bservância de princípios éticos e democráticos necessários à construção da cidadania e ao convívio social republicano”, vedando livros que “veicularem estereótipos e preconceitos” de várias ordens e “qualquer outra forma de discriminação ou de violação de direitos”; “fizerem doutrinação religiosa, política e/ou ideológica”; ou fizerem propaganda comercial em seu conteúdo. (BRASIL, 2013, p. 40).

O terceiro critério diz respeito à coerência entre abordagem teórico-metodológica e proposta didático-pedagógica objetivos. Exige-se que esses elementos sejam explicitados no MP, com orientações de estratégias de ensino; que a coerência entre eles se faça presente em

22 Estabelecidas pela Resolução nº 2, de 30 de janeiro de 2012, da CEB do CNE, em substituição às DCNEM 1998. (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 2012).

todo o livro do aluno (inclusive em sua estruturação); que direcionem para aprendizagens progressivamente mais complexas, desenvolvam “o pensamento autônomo e crítico” sobre os objetos estudados, contribuam “para a apreensão das relações que se estabelecem entre os objetos de ensino aprendizagem propostos e suas funções socioculturais” e para a exploração de articulações interdisciplinares. (BRASIL, 2013, p. 41). Esse último ponto é posto de modo mais detalhado no quarto critério: a perspectiva interdisciplinar deve ser bem desenvolvida no MP, os conteúdos devem ser articulados com disciplinas de todas as áreas e com a realidade e devem estar presentes propostas de atividades nessa perspectiva. (BRASIL, 2013, p. 41-42).

O quinto critério veda a apresentação e utilização “de modo incorreto, descontextualizado ou desatualizado” de “conceitos, princípios, informações e procedimentos”. O sexto critério sintetiza exigências várias sobre o MP, já tratadas aqui. O sétimo diz respeito a questões editoriais várias; além de parâmetros mais técnicos (revisão, impressão, legibilidade etc.), constam a inclusão de referências bibliográficas e a representação adequada, nas ilustrações, da “diversidade étnica da população brasileira, [d]a pluralidade social e cultural do país”. (BRASIL, 2013, p. 42-43). Um último critério trata dos recursos multimídia, não cabendo aqui para a análise.

Para os livros didáticos da área de Ciências Humanas (Filosofia, Geografia, História e Sociologia), primeiramente são apresentados alguns princípios de avaliação. Afirma-se, sobre alguns conceitos comuns a essas disciplinas, que eles “constituem ferramentas de trabalho para a análise dos contextos sócio-históricos, bem como para a compreensão das experiências pessoais, familiares e sociais dos estudantes, a partir da contribuição específica de cada uma das disciplinas que a compõem”; esclarece-se que, no entanto, o reconhecimento disso não deve prejudicar o trabalho com as especificidades das disciplinas. (BRASIL, 2013, p. 49).

Retomando e desenvolvendo, de forma específica para a área, princípios e finalidades da legislação vista no capítulo 1, os seguintes objetivos a serem garantidos aos estudantes são especificados:

• processar e comunicar de forma ampla informações e conhecimentos;

• reconhecer e respeitar diferenças, mantendo e/ou transformando a própria

identidade,

• percebendo-se como sujeito social construtor da história;

• compreender que as sociedades se criam e se recriam pelas ações de diferentes

sujeitos e grupos sociais, sendo produzidas e transformadas com a intervenção de diversos fatores;

• identificar, problematizar e refletir (sobre) informações contidas em diferentes

fontes e expressas em diferentes linguagens, associando-as às soluções possíveis para situações-problema diversas;

• compreender que as ações dos sujeitos sociais são realizadas no tempo e no

• compreender que as instituições sociais, políticas e econômicas são

historicamente construídas/reconstruídas por diferentes sujeitos ou grupos sociais;

• desenvolver a autonomia intelectual a partir da problematização de situações

baseadas em referências concretas e diversas, rompendo com perspectivas unilaterais;

• trabalhar com diferentes interpretações, relacionando o desenvolvimento dos

conhecimentos com os sujeitos sociais que os produzem;

• apropriar-se de diferentes linguagens e instrumentais de análise e ação para

operar na vida social os conhecimentos que construiu de forma autônoma e cooperativa;

• garantir o desenvolvimento de atividades interdisciplinares e o reconhecimento

da relevância da integração entre os componentes curriculares da área de ciências humanas, e desta com outras áreas do conhecimento. (BRASIL, 2013, p. 49). No que concerne à Sociologia, são especificadas as Ciências Sociais que a constituem e cujos conteúdos devem ser tratados nos livros — Antropologia Cultural, Ciência Política e Sociologia — segundo “pressuposto de que fenômenos relativos à representação simbólica do mundo, à dominação política e às formas de sociabilidade são indissociáveis”. A disciplina é concebida como constituinte de um “processo de alfabetização científica do aluno”, que exige lhe “oferecer uma perspectiva ‘desnaturalizada’ e ‘crítica’ da vida social”, cujos fenômenos serão “alvo de inquirição e investigação permanente para que o aluno possa pensar de modo mais sofisticado acerca do mundo social e de sua condição neste mundo.” (BRASIL, 2013, p. 51, grifo meu). O cumprimento desses elementos são, em seguida, postos como exigências entre os critérios eliminatórios. São acrescidos ainda outros critérios, dos quais destaco:

• explicita algumas das inquietações intelectuais que deram origem aos conceitos e

teorias clássicas das Ciências Sociais e apresenta algumas das reinterpretações científicas e seus usos mais recentes;

• apresenta análises sociológicas de situações familiares aos alunos, demonstrando

que os conceitos e teorias das Ciências Sociais auxiliam na identificação de características novas e estabelecem relações ocultas entre diferentes fenômenos sociais;

• apresenta e propõe a análise sociológica de formas de expressão que compõem a

vida cultural contemporânea (como charges, excertos de livros, imagens, conteúdos da internet, matérias publicitárias, letras de músicas, filmes, etc.);

• estimula a curiosidade do aluno para a compreensão da vida social;

• permite que conceitos e teorias das Ciências Sociais sejam incorporados pelos

alunos na condição de ferramentas para análise do mundo social na qual estão inseridos e para compreensão da sua própria condição no mundo; […]

• contempla – nas análises, exemplos e atividades propostas – situações de

diferentes regiões do país e experiências de diferentes classes sociais, possibilitando ao aluno o respeito pela diversidade cultural e o reconhecimento da desigualdade social;

• aborda historicamente os conteúdos e temas tratados a fim de constituir a noção

de processo social;

• apresenta diferentes visões teóricas do campo das Ciências Sociais não

privilegiando uma perspectiva única e uma leitura dogmática acerca do mundo;

• explicita a pluralidade de teorias e abordagens metodológicas que constituem o

campo de conhecimento das Ciências Sociais;

• apresenta, entre os diferentes capítulos, coerência na abordagem didática de

Percebe-se, então, que o edital do PNLD incorpora, para os livros de Sociologia, muito das OCEM — até as palavras-chave são praticamente as mesmas, excetuada a palavra “estranhamento”, cujo conteúdo não aparece com tanta evidência. Ao mesmo tempo, o edital trabalha com uma perspectiva que contém alguns elementos importantíssimos de teorias críticas sociológicas e pedagógicas (como a consideração da prática e dos problemas da vida social, “situações-problema”), embora não ponha em consideração, por exemplo, currículo oculto. Por fim, inclui também os princípios e finalidades tratados na legislação sobre educação, dando a eles um conteúdo mais explícito, com destaque para a pluralidade de ideias, que toma forma de recusa a “uma perspectiva única e uma leitura dogmática acerca do mundo”. Nota-se, no entanto, uma ausência: nada sobre gestão democrática do ensino. Apesar de esse ser um princípio constitucional e de o edital pôr no horizonte a formação para a participação na vida pública, a participação nos rumos da própria escola não tem atenção especial.

Tal era, enfim, o estado das prescrições curriculares vigentes para aqueles livros didáticos; em certos aspectos, elas ainda estavam aquém das discussões travadas nas primeiras seções do capítulo 1, porém serão fundamentais para a análise.