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2 SITUANDO OS DISCURSOS

2.4 Síntese para a análise

Apesar de, sobre os livros didáticos, haver prescrições de formação crítica, o tratamento da democracia não necessariamente há de fazer jus à criticidade esperada, sendo necessário, portanto, examinar essa correspondência entre expectativa e realização. Há, para essa tarefa, duas ordens de critérios que devem ser observados. Por um lado, temos condições de produção institucionalmente estabelecidas que projetam uma expectativa sobre os discursos; por outro, temos, na sociologia da educação e em teorias pedagógicas críticas, um poderoso aporte para qualificar criticamente a concepção do próprio ensino de Sociologia. Uma distância entre promessa de criticidade e realidade pode se fazer, pois, tanto por desvios em relação aos próprios critérios institucionalmente estabelecidos, constituintes de suas condições de produção, quanto em razão de uma concepção de educação que não problematiza a fundo a relação entre educação e sociedade, entre teoria e prática, deixando de lado lições decisivas para uma consistência crítica no modo de conceber o ensino de Sociologia.

Um primeiro eixo necessário de análise, então, refere-se ao descumprimento, no tratamento da democracia, das próprias prescrições curriculares sobre os livros didáticos. A pluralidade teórica é central. É de suma importância que os alunos se formem tendo conhecimento de concepções de democracia diversas: para que conheçam, para além do senso comum, a fundamentação teórica do regime em que vivem; para que o considerem criticamente por meio de apropriação das problematizações que as diversas teorias da democracia lançam sobre ele; por fim, para para que conheçam outros caminhos, experimentados ou propostos, para a concretização da aspiração democrática, não importando qual caminho escolherão trilhar — importa que os conheçam para embasar as escolhas (que podem ser elaborações próprias posteriores, também) para suas práticas. Trata-se, em todos os casos, de adquirir conhecimento necessário para encarar criticamente os problemas da prática social com vistas à sua superação.

A pluralidade teórica, no entanto, não é suficiente. Ela pode ser descumprida em benefício da circulação de uma concepção ou grupo de concepções de democracia, por meio da omissão de outras. Mas também é possível (e não menos problemático) que ela seja cumprida sem estranhamento e desnaturalização, como se bastasse uma exposição de várias teorias dispostas lado a lado — à semelhança de produtos numa vitrine —, com tratamento parco ou nulo da história e do debate dessas teorias; como se a função do ensino fosse apresentar a diversidade não para o aluno se formar criticamente através do confronto de pensamentos, mas sim para escolher, sem um estudo que o envolva francamente no debate, a

teoria com a qual ele mais se identifica. Seria essa realização, nos termos de Miguel (2015, p. 607), um “acesso a uma pluralidade” alijado do estímulo à “capacidade de escrutínio crítico sobre as próprias preferências”, em sentido contrário ao desenvolvimento da autonomia intelectual. Seria ideal, aliás, para a reprodução da hegemonia, por ser aparentemente livre e plural. Assim, seguindo a proposta metodológica discursiva, analisarei o cumprimento das prescrições institucionais pelos discursos verificando como os princípios básicos dessas prescrições — estranhamento, desnaturalização, pluralidade teórica —, segundo uma (também institucionalizada) finalidade democratizante da educação, são ou deixam de ser realizados nos materiais. Será pressuposto, na análise, que são significativos tanto o dito como o não dito, tanto o explorado como o inexplorado, tendo como referência o conjunto de discursos possíveis de uma formação democrática a partir das Ciências Sociais. Identificadas essas dissonâncias entre as prescrições e suas realizações nos textos, trabalharei sobre a identificação dos seus sentidos e as implicações de apagamentos, de ênfases e de limitações da discussão teórica, tendo em vista o processo de incorporação de hegemonia por meio da tradição seletiva (WILLIAMS, 2011) e localizando socialmente a educação escolar e o currículo como meios de reprodução ou de tensionamento de hegemonias (APPLE, 2006).

Por sua vez, um segundo eixo de análise deve lançar foco sobre a criticidade da própria forma de pensar o ensino de Sociologia, problematizando como, em seus fundamentos, é pensada a relação entre educação e sociedade. A sociologia da educação toma a escolarização como uma prática complexa de socialização que coexiste com várias outras; segue que tanto essa complexidade do ensino quanto outros processos de socialização precisam ser levados em conta na concepção do ensino de Sociologia. As questões que aqui servirão como guias são: como os materiais consideram a relação entre a socialização pelo ensino de Sociologia e os diversos processos de socialização vividos pelos educandos? Como consideram os efeitos do aprendizado das Ciências Sociais nas vidas dos alunos, em suas relações sociais (inclusive as futuras) e contato com outros discursos e práticas políticas dentro e fora da escola? Trata-se de questionar, em suma, se os materiais foram elaborados seguindo uma racionalidade sociológica sobre as condições e as consequências da realização da formação pretendida. Não se trata de esperar ou exigir que seja considerado cada um dos inumeráveis conflitos possíveis entre o aprendizado de Sociologia na escola e o restante da vida de cada aluno. O que se põe sob exame é como os materiais localizam a formação sobre e para a democracia por meio da Sociologia em relação às formações por meio das demais relações vividas na escola (incluindo a postura dos educadores e o currículo oculto), na família, no mercado, nas organizações religiosas, pelas mídias, dentre outros meios.

Novamente, o que se considera e deixa de considerar é significativo e será examinado em suas implicações ideológicas em relação à hegemonia.

A formação necessária, como já discutido, é ao mesmo tempo sobre e para a democracia e, como tal, não pode ser desvinculada da prática social e de seus problemas. Para muitos alunos, a escola pode ser o único lugar do seu cotidiano em que se fale criticamente de democracia. Se as relações na escola não forem democráticas e esse falar não for acompanhado por uma crítica a essas relações, o ensino ficará bem aquém do seu potencial. É certo: não cabe aqui lançar um julgamento genérico sobre os professores, que podem escolher se deter, diante das dificuldades e riscos, para evitar uma retaliação que poderia resultar até numa demissão, pondo em risco, portanto, sua sobrevivência mesmo. Mas não os livros didáticos — esses não estão submetidos diretamente a essa correlação de forças. Eles oferecendo conteúdos e propostas de atividades para os alunos e orientações para os professores, podem veicular discursos que apontem para a democratização das relações no meio escolar, até com um possível efeito de legitimação para as iniciativas estudantis e docentes. Algumas entradas possíveis para isso seriam práticas políticas já conhecidas em muitas escolas, como a representação de alunos em instâncias decisórias e a organização em grêmios estudantis. Há vários pontos em comum entre as experiências de representação dentro de uma escola e no nível de parlamentos, por exemplo, que podem ser explorados por meio de diferentes concepções de democracia, com o potencial de construção crítica de novas práticas, por parte dos alunos, na política tanto no nível escolar como noutros. O edital do PNLD foi falho por não estipular que os livros provessem tal contribuição à democratização das relações na escola, sequer mencionando algo como a gestão democrática do ensino. No entanto, nada no edital vedava tal contribuição; ao mesmo tempo, muito das Ciências Sociais e da Educação a enseja. Assim, cabe analisar aqui sua realização ou não.

É importante lembrar que também os compromissos dos educadores (APPLE, 2006, p. 48) incidem sobre as relações, podendo ter sentido democratizante ou não; isso será pautado na análise, inclusive porque é exigido que os MP tenham orientações aos professores.

Por fim: se os livros de Sociologia no Ensino Médio não tratarem das diversas concepções de democracia, se não as puserem em confronto e em articulação com o mundo real, tendo em vista teoria e prática, embaraçarão a compreensão da democracia, convergindo para a manutenção da concepção e do regime hegemônicos, em vez de colaborar para a formação popular para a sua soberania e para a superação das desigualdades.