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Capítulo I – Família, um conceito em evolução

3.6 Factores de protecção: o escudo invisível

3.6.3 Os mecanismos e processos de protecção

O conhecimento dos factores de protecção levou à procura dos mecanismos e processos de protecção em que estão envolvidos, que, segundo Martins (2000) requer, reciprocamente, a compreensão rigorosa dos mecanismos e processos de risco.

Foram identificadas por Rutter (1990, in Martins, 2004) quatro funções de mediação ou de moderação associadas aos processos de protecção, que passamos a expor:

a) a redução do impacto do risco;

b) a redução da cadeia de reacções negativas;

c) o estabelecimento e manutenção da auto-estima e auto-eficácia; d) a abertura de novas possibilidades de desenvolvimento pessoal;

A alteração da exposição da criança ao risco ou a redução do seu envolvimento na situação de risco pode diminuir ou mesmo anular o impacto negativo do risco. A supervisão e regulação

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parental das actividades e relações dos filhos, as próprias qualidades pessoais das crianças, que criam interacções familiares e sociais mais positivas, e a sua conduta, orientada no sentido de as retirar ou distanciar fisicamente das situações que lhes são prejudiciais, podem constituir-se como eficazes na redução da exposição efectiva ao risco (Martins, 2004).

As exposições ao risco são precedidas por sequências de reacções negativas que desempenham um papel relevante na continuidade e majoração dos seus efeitos e nas marcas adversas a longo prazo que podem provir das experiências de maus tratos (Martins, 2004). As mudanças nos padrões de prestação de cuidados às crianças, nomeadamente a institucionalização, são incluídas nestas cadeias.

Os conceitos e sentimentos que as pessoas têm acerca de si próprios e das suas possibilidades de, face aos desafios com que se confrontam na vida, controlarem o que lhes acontece – auto- estima e auto-eficácia – provêm de dois tipos de experiências (Rutter, 1990 in Martins, 2004):

a) As relacionadas com o desenvolvimento de uma vinculação segura

b) O sucesso no cumprimento de tarefas identificadas pelos indivíduos como centrais para os seus interesses.

As investigações realizadas a partir das memórias adultas e os estudos intergeracionais feitos junto de populações de alto risco sugerem que a segurança da vinculação infantil é um dado que potencia o desenvolvimento da auto-estima, emprestando um grau de protecção contra riscos ambientais posteriores. Martins (2004) salienta que, apesar das primeiras tarefas desenvolvimentais funcionarem como um factor forte e persistente de amortecimento das adversidades, importa ressalvar que “também há lugar para a mudança ao longo do tempo de acordo com a natureza das experiências vividas pelos indivíduos no trajecto de todo o seu ciclo vital” (p. 40).

Por outro lado, e segundo Quinton, Rutter & Liddle (1984 in Martins, 2004), o êxito social, o assumir de responsabilidades (no âmbito das possibilidades da criança), o sucesso em domínios não académicos (desporto, música, teatro, etc.) constituem um segundo tipo de realizações com impacto ao nível da auto-estima e da auto-eficácia.

Ao longo do ciclo vital, vão surgindo momentos decisivos, que abrem caminho para novas possibilidades de desenvolvimento pessoal e/ou perdas inevitáveis.

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Os factores de protecção podem-se combinar aditivamente com os factores de risco, realizando uma compensação, ou seja, o risco grave pode ser contrabalançado por qualidades pessoais ou fontes de apoio. Mas a tensão pode funcionar como um mecanismo de desafio, se não for excessiva, aumentando a competência individual. Pode ainda ocorrer uma relação condicional entre factores de risco e de protecção, em que estes moderam o impacto da tensão na qualidade da adaptação da criança, podendo não ter efeitos detectáveis na ausência de tensão (Garmezy, Masten e Tellegen 1984, in Martins, 2004). Podemos concluir através destes três modelos funcionais (compensação, desafio e imunização) que o modo de operação dos factores de protecção é bastante complexo.

Face ao exposto, é possível afirmar que muitas são as variáveis a ter em conta na procura da explicação dos maus-tratos a crianças e jovens. Os modelos apresentados são exemplo disso mesmo. Contudo, queríamos destacar o Modelo Integrativo de compreensão dos maus-tratos de Machado (1996) uma vez que o mesmo espelha as relações dinâmicas entre os diversos níveis e os factores ou características presentes em cada nível. Desta forma, o referido modelo acaba por sintetizar o que encontramos em estudos separados e por isso mesmo o termos enriquecido com a referência a trabalhos de outros autores. Por outro lado, e é essa a nossa opinião, este modelo revela-se útil na escolha de qual a melhor forma de proteger e promover os direitos da criança. Ou seja, qualquer intervenção carece de uma avaliação prévia, que se pretende que seja global, por forma a fundamentar e orientar as decisões que são tomadas. E como o trabalho neste campo se apoia na colaboração e vontade de mudar da família, os factores de protecção aparecem neste capítulo para nos recordarem que a intervenção não pode se resumir em “aniquilar” as fraquezas mas sim no apostar no empowerment dos indivíduos e num trabalho social onde o velho provérbio chinês “não dês o peixe, ensina a pescar” seria, não só aplicado, como complementado pois haveria também lugar para ensinar a fazer a cana de pesca!

Seguidamente, vamos expor alguns programas de intervenção que têm vindo a ser aplicados junto de famílias que se mostraram maltratantes relativamente às suas crianças.

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Capítulo IV - Famílias em risco: intervir para reconstruir

Desde que se começaram a desenvolver os sistemas de protecção à infância e conforme se vai construindo lentamente um corpo de conhecimentos a este respeito, uma das questões que surge como mais problemática é a dúvida sobre separar ou não da sua família a criança ou jovem em risco ou vítima de maus tratos.

No início dos anos 50, quando nos países anglossaxónicos imperava uma filosofia que se resumia à expressão “resgatar a criança e começar do zero”. Como salienta Torres (2003), já Bowlby reclamava a necessidade de inventariar quantas acções se realizaram para apoiar a família da criança e evitar a separação de pais e filhos, quando o perigo advinha de condições materiais como a higiene, o alojamento e a alimentação, claramente deficitárias ou, inclusive, a atenção foi negligente e com episódios de mau-trato, salvo casos extremos.

Quase todos os países experimentaram épocas mais pró separação da criança da família, em que a tendência dominante era a de retirada da criança e consequente institucionalização e épocas mais pró preservação familiar (Capul & Lemay, 2000). Estes movimentos pendulares pareciam obedecer mais a “modas da actualidade”, fruto de correntes de opinião pública ou de prioridades políticas (papel social do Estado), do que à investigação científica sobre os progressos e resultados numa e noutra orientação (Torres, 2003). Na verdade, o reconhecimento da legitimidade da investigação sobre o desenvolvimento das crianças e os seus contextos de vida relevantes é relativamente recente (Martins, 2004). Apesar da existência e disponibilidade de conhecimento pertinente para a tomada de decisões, este frequentemente não tem qualquer impacto prático, sendo descurada a sua importância.

Mas voltando à controvérsia “separação/preservação”, para além dos argumentos ideológicos, devem ser tidos em conta dados objectivos e avaliações que permitam fundamentar a avaliação do nível de risco, a tomada de decisão relativamente aos casos que devem ser abordados com uma ou outra medida, ou as condições e recursos necessários para manter a criança no seu meio ou separar-se dele (Torres, 2003).

Ainda antes de nos debruçarmos sobre os programas de preservação familiar, abrimos aqui um pequeno parêntesis sobre a institucionalização. A colocação de uma criança numa

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instituição pode constituir uma nova forma de violência contra a mesma e a sua família. Os progenitores, que nem sempre souberam cumprir com a sua função parental, são, ainda assim, reconhecidos pelas crianças como seus pais, resultante do sentimento de filiação constituinte da sua identidade pessoal, da sua história de vida, do seu nome e da sua pessoa (Martins, 2004).

Sendo certo que a atitude do técnico tem que ser, necessariamente, de reprovação do acto “a sua flexibilidade tem que o deixar compreender aquilo que muitas vítimas dizem ou sentem: que apesar da revolta e do sofrimento, a falha dos pais não os transforma nuns “não-pais”” (Alarcão, 2006, p. 295). Mesmo quando é necessário retirar temporariamente a criança por forma a dar à família e ao menor aquilo a que Selick (1996, in Torres 2003) chama de respite care, ou seja, um tempo e espaço para parar e respirar, é necessário ajudar os pais a criar condições para que a família se possa reunir de novo. Como Guerra (2004) salienta, chegou a altura de compreender que “sem família a apoiar o jovem delinquente não há reinserção social eficaz e de que sem apoio capaz de recuperar a família disfuncional, não há reinserção familiar eficaz do menor em perigo” (p. 13). As colocações devem ser trabalhadas num “contexto de colaboração que ligue as várias pessoas numa lógica de “e...e” e não numa lógica de “ou...ou”, de modo a permitir que o suporte da colocação se estenda para além da situação de urgência” (Alarcão, 2006, p.295) e se consiga evitar o corte relacional e o desequilíbrio emocional daí decorrente, como também minimizar o risco da família se reorganizar não incluindo o elemento vítima que lhe foi retirado e não modificando a sua vivência abusiva e negligente.