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Em princípio, a natureza bastava; era linda e luxuriante. O homem que chegou aos trópicos, depois de temores seculares e insistentes tentativas, a ela precisou se adaptar. Não era como os nativos30, que moravam ao sabor dos ventos com abrigos tão primitivos quanto eficientes. Não! Não poderia ser desse modo! Colonizar significava edificar, alastrar-se, invadir. E, de fato, um confronto entre europeus e indígenas aconteceu (LEMOS, 1999). Abre-se o caminho para a implantação da Nova Lusitânia, semelhante à antiga, como nos mostra a Figura 35 (FREYRE, 1971b; FERRARE, 2006), semeada e consolidada com a cana de açúcar (DIEGUES JR, 1980; 1952).

Os conquistadores portugueses, ao principiar o processo de assentamento, utilizaram um repertório de elementos arquitetônicos que havia sido desenvolvido para

outras circunstâncias climáticas31 (EVANS, 2003; TEIXEIRA, 2005; LEMOS, 1979; WEIMER, 2005). “Naturalmente, no início, se experimentou de tudo e, com o tempo, as técnicas, segundo as conveniências locais, foram se depurando e selecionadas de acordo com os materiais disponíveis. No começo, cada um fazia o que sabia, depois, fazia o que convinha” (LEMOS, 1979, p. 42).

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Por toda a América Latina a população indígena deixou evidências das claras respostas ao meio e às condições climáticas (EVANS, 2003), entretanto nas regiões florestais tais evidência são menos freqüentes devido reabsorção pela natureza dos materiais orgânicos que constituíam os abrigos.

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A aptidão dos luso-hispânicos para “desenvolver tais relações simbióticas com a natureza (...) deve-se ao fato de que, desde seus começos como sociedades (...) Espanha e Portugal foram sempre apenas parcialmente europeus: seu clima e sua situação permitiram-lhes adotar numerosos valores e técnicas de civilizações não- européias, cujas origens eram – ou são – tropicais” (FREYRE, 1971b, p. 21). Além disso, lembremos que “o clima português – mais africano que europeu – [talvez] explique porque eles mais do que os outros europeus, se adaptam facilmente às regiões tropicais” (ibdem, p. 45).

Figura 35 – Casas geminadas das cidades de cunho português. Fonte: Reis Filho, 2004, p. 31.

Tipologias e métodos construtivos foram introduzidos, mas, aos poucos, a casa foi adquirindo variações e apropriando-se de influências da arquitetura moura32 e oriental33 conhecidas pelos desbravadores do Atlântico como menciona Freyre:

O português excedeu a todos os outros europeus e abriu caminho a uma casa brasileira em que à europeidade, de início tocada de sugestões absorvidas de mouros e de orientais, se vem juntando considerável adaptação da vivência doméstica a condições tropicais de clima e de luz. De ambiente. (FREYRE, 1971a, p. 22)

O programa de atividade doméstica se acomodou às condições tropicais (EQUIPEMENTOS..., 2001), atitude expressa, em especial, “na fragmentação das casas de morada, quando as cozinhas eram inapelavelmente separadas e localizadas nos quintais” (LEMOS, 1979, p. 17); na supressão das chaminés, no afastamento do estábulo e de tudo o mais que pudesse agregar calor ao âmago da casa (TEIXEIRA, 2005; LEMOS, 1979).

A região adocicada pelo açúcar vai absorvendo34 a arquitetura e a interpretando conforme o meio sócio-ambiental estabelecido. Desenvolvendo-se, incorpora influências e materiais locais tornando-se intimamente relacionada com seu entorno (EVANS, 2003; FREYRE, 1971a, 1971b; LEMOS, 1979; COSTA, 1980). As edificações ganham maiores aberturas e as esquadrias desenhos vazados, por onde as refrescantes brisas, tão necessárias em climas quentes e úmidos, adentraram as casas (EVANS, 2003; COSTA, 1980; BITTENCOURT, 1989).

O caráter introspectivo da casa árabe permaneceu durante séculos (e na arquitetura popular até os dias atuais) com as alcovas e as camarinhas. A casa luso-tropical não deixa de

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Durante oito séculos, a península ibérica foi dominada por árabes e mouros deixando ali “fortes traços de si próprios”; esse fato explica a influência dessa cultura (FREYRE; 1971b, p. 33).

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Os portugueses aprenderam com indianos e chineses o, então, melhor tipo de telhado para as regiões quentes e úmidas, que “prolongados em alpendre servem para eliminar os excessos da luz e proteger a casa contra as pesadas chuvas tropicais” (FREYRE, 1971b, p. 212).

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ser território feminino (de cuidado com o lar, de domesticidade – que reflete a persistência das alcovas para o resguardo feminino), mas vai somar-se ao caráter público da arquitetura romana e jogar-se

para fora; prolongar-se na natureza; ganhar beirais e abrigar-se do sol e das chuvas (ver Figura 36). Tropicaliza-se a casa brasileira com sacadas, varandas, alpendres e venezianas (FREYRE, 1971a; 1971b).

Incorporando as varandas (Figura 37), tal arquitetura predominou nos verdadeiros centros de pulsão social que foram os bangüês alagoanos (DIEGUES JR., 1980; 1952; SANT‟ANA, 1970), principalmente nas casas de engenho, configurando a paisagem rural, ao passo que assumiram razões práticas de adequação ao clima (FREYRE, 1971a; LEMOS, 1979; LEMOS, 1999a; 1979; WEIMER, 2005; BITTENCOURT, 2004; BITTENCOURT & CÂNDIDO, 2005).

Nas cidades (ainda precárias), insistia uma arquitetura mais contida, seguindo os moldes portugueses de configuração espacial e estética. Nessas casas, a adaptação ao clima encontrou respaldo no “uso de balcões artísticos, de janelas em rótula e de portas e janelas com muxarabis de madeira” (VILLAS BOAS, 1982, p. 8), heranças mouriscas da arquitetura portuguesa (MELLO, s/d; FREYRE, 1971a; 1971b), de acordo com a Figura 38.

Figura 36 – Esquema do sobrado colonial frente ao clima. Fonte: idem.

Figura 37 – Varanda da casa-grande do engenho Salgado. Pilar. Fonte:

As paredes internas a meia-altura, os tetos cobertos com telhas de barro, as paredes de taipa, entre outras estratégias, sugerem que havia certa preocupação em proporcionar ambientes mais ventilados (VILLAS BOAS, 1982; LEMOS, 1979). No entanto, as casas urbanas, quando a cidade reclama o urbano para si, eram implantadas sem maiores reflexões quanto a suas orientações. Eram os terrenos estreitos e compridos e a casa a ele se adequava (VILLAS BOAS, 1982; REIS FILHO, 2004; LEMOS, 1979; ABREU, 2002).

As casas, quer urbanas quer rurais, após incorporarem artifícios de adequação ao clima, mantiveram-se numa uniformidade impressionante (RODRIGUES, 1981; VAUTHIER, 1981), tanto por causa das Cartas Régias e Posturas Municipais quanto por escolha dos próprios habitantes (REIS FILHO, 2004; FREYRE, 1971a; VILLAS BOAS, 1982). Também não havia significativas distinções formais e qualitativas entre as casas das famílias mais ou menos abastadas, além do tamanho das próprias habitações – morada inteira ou meia morada, térrea ou assobradada, como podemos observar nas Figuras 39 e 40 (REIS FILHO, 2004; SCHLEE, 2001). “Não havia meio termo; as casas eram urbanas ou rurais, não se concebendo casas urbanas recuadas e com jardins” (REIS FILHO, 2004, p. 22).

Figura 39- Esquema da configuração espacial em planta.Fonte: Reis Filho, 2004, p. 31.

Figura 40 – Aparência das casas urbanas. Ritmo, simplicidade e uniformidade. Fonte: idem. Figura 38 – Edificação com balcão

artístico, nítida influência árabe em Olinda-PE. Fonte: Weimer, 2005, p.

Autores como Reis Filho (2004), Lemos (1979; 1989; 1999b), Schlee (2001) e Vauthier (1981), atribuem essa monotonia espacial às limitações impostas pelas técnicas vigentes, à tradição construtiva e às recomendações das normas para que cidades e vilas brasileiras se assemelhassem às paisagens portuguesas. Poucos questionamentos tentaram relacionar essa rigidez arquitetônica à satisfação dos usuários em suas casas, ou o grau de adaptabilidade construtiva alcançada em relação ao clima. Há também de se considerar o papel do escravo no funcionamento das habitações coloniais brasileiras, como bem descreve Lucio Costa:

Ele [o escravo] era esgoto; era água corrente no quarto, quente ou fria; era interruptor de luz e botão de campainha; o negro tapava goteira e subia vidraça pesada; era lavador automático, abanava que nem ventilador (apud Schlee, 2001, p. 22-23, grifo nosso)

Todos esses fatores, em conjunto, parecem ter contribuído para que a configuração da casa se mantivesse praticamente estável até o último quartel do século XIX, quando acontece a abolição da escravatura. Por isso, há de se considerar o conforto de uma maneira holística, pois se pode tratar, antes da satisfação térmica, de um estado de espírito onde, nesse caso, a comodidade prevaleceu. Enquanto se conservavam “as formas de habitar dependentes do trabalho escravo, não havia margem para grandes mudanças” (REIS FILHO, 2004, p. 33).