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Os movimentos indígenas e o contexto regional histórico de lutas

Esta seção versa sobre a mútua determinação entre o interno e o externo no surgimento histórico dos movimentos indígenas. O objetivo é colher na literatura especializada elementos que permitam delinear a intrincada relação entre as pulsões internas próprias das premissas culturais dos povos indígenas e de sua experiência histórica de marginalização com o contexto histórico do último quartel do século XX de efervescência de lutas sociais. A justificativa é a hipótese de que tal relação deriva da natureza política que assumem os movimentos indígenas, porém, também contribui para formá-la.

74 A resistência indígena nem sempre foi via movimento social; tem assumido esta forma nos últimos tempos. Apenas este já é um fato significativo da interação dos povos indígenas com outros grupos sociais em luta e com a sociedade envolvente.

A organização em movimento social não emana diretamente da natureza interna dos povos indígenas. Ela deriva do contato e da leitura que os povos indígenas fazem da sociedade que os envolve. Mas não podemos perder de vista: o código cultural e o elemento identitário estão na base da organização sociopolítica:

los principios culturales comunitarios de estos movimientos y las presiones de enemigos externos son los potenciadores de una expresión organizativa centrada en la defensa comunitaria de su autonomía como pueblos. Estos principios facilitan la cohesión de sus miembros en prácticas subalternas de resistencia, que crean un escenario político de cierta unidad, a pesar de las diferencias en: sus posiciones políticas de negociación frente al Estado, los distintos matices de sus manifestaciones culturales, los contrastes en la memoria y la tradición ideológica de sus comunidades, así como las desavenencias entre las expresiones organizativas de estos movimientos. (GONZÁLEZ, 2010, p. 87).

As formas assumidas pelos movimentos indígenas assemelham-se às formas encampadas pelos movimentos sociais contemporâneos. O que pode indicar que na construção interna dos movimentos indígenas há uma imitação das formas assumidas, inauguradas e colocadas historicamente, pelos outros movimentos. Os povos indígenas passam a agir politicamente nos quadros da cultura política ocidental.

Quanto à difícil e essencial tarefa de conceituação da natureza própria e especificidade da política indígena, González (2010) é autora que tenta definir esse campo. O trabalho citado da autora é um esforço de apresentar ―la política alternativa de los movimientos étnicos analizando su naturaleza política‖. A autora explicita ―cómo dicha naturaleza se sustenta en la lucha ancestral que le funda‖ e como ela está ligada a sua identidade caracterizada ―como comunitaria, autónoma y participativa, consolidada en su persistente resistencia frente a sus adversarios‖ e enfatiza ―su capacidad de integración política como movimiento respecto de los conflictos que le asisten.‖ (GONZÁLEZ, 2010, p. 81).

Seoane (2009) não aborda a especificidade interna dos movimentos indígenas, porém descreve sua emergência ligada a um amplo contexto social de atuação de diversos movimentos sociais na América Latina. O autor permite uma compreensão da emergência da luta indígena como uma luta ligada e que ganha corpo nas lutas de outros movimentos sociais coetâneos. Tal análise permite o descentramento da luta indígena, frequentemente compreendida em termos autônomos e autocentrados, desvinculados do contexto histórico da sociedade ocidental envolvente.

75 Sem ignorar a singularidade dos movimentos indígenas, sua análise permite compreender o movimento indígena, sua formação histórica, as condições de sua emergência e suas pautas e práticas, nas semelhanças que ele tem com outros movimentos sociais emergentes no mesmo período. Assim, os movimentos indígenas tomam parte nas mesmas lutas e têm práticas e objetivos compartilhados com os movimentos sociais coetâneos.

Neste momento podemos começar a formular sociologicamente a tensão que existe entre o movimento histórico dos movimentos indígenas e o desenvolvimento dos movimentos sociais em geral no mesmo período.

Refletir sobre cada característica como características sociais dos movimentos sociais latino-americanos pode ser útil para descentrar a compreensão que temos dos movimentos indígenas e entender melhor sua especificidade. Pode-se indagar com isto as condições da formação da política indígena e dos movimentos indígenas ligadas a fatores exógenos, como as outras lutas sociais. As formas de mobilização, as formas de autolegitimação, a forma de postulação das demandas e exigências, o quanto elas se identificam a forma e contundência dos demais movimentos sociais envolventes? O quanto a política indígena é movida através de categorias externas, importadas da atenção às lutas sociais que se realizam coetaneamente? Tais questionamentos precisam ser feitos para localizar as determinações exógenas dos movimentos indígenas. Entretanto, precisam ser pesadas em relação à singularidade dos mesmos. Vale retomar mais uma vez Catherine González (2010), que enfatiza ―las particularidades de los movimientos étnicos en relación con otros movimientos sociales, las cuales son situadas [em] su naturaleza política y [em] una serie de acciones e instancias propias del caso investigado.‖ (GONZÁLEZ, 2010, p. 81).

Tal originalidade é também enunciada por Maria da Glória Gohn (2010). A autora afirma que ―Alguns autores chegam a separar o termo movimento social do termo movimento indígena, pois consideram que este último tem uma especificidade e um campo próprio, que não se confunde com outros movimentos sociais.‖ (GOHN, 2010, p. 18-9). É uma pena Gohn não ter incluído a referência destes autores.

A especificidade dos movimentos indígenas, todavia, não se restringe a sua natureza política sui generis; porém é definida também pela sua relação singular com o estado nacional, o que pode implicar que o válido e efetivo para outros movimentos sociais não o seja para os movimentos indígenas.

Varios autores afirman cómo la institucionalización de las demandas de los movimientos sociales, en términos democráticos, constituyen una de sus principales metas, sin embargo, para el caso de los movimientos étnicos

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latinoamericanos no se puede asimilar tan fácilmente tal correspondencia entre institucionalización e inclusión social.‖ (GONZÁLEZ, 2010, p. 82-3).

Os movimentos indígenas se apropriam de e embarcam nas formas de atuação dos movimentos sociais coetâneos; porém o fazem segundo sua lógica própria. Vitor Contreras também defende esta interpretação, e a formula em conexão com a etnopolítica indígena.

Conforme o autor (2008, p. 189), a mobilização indígena desenvolve-se no meio de um amplo processo histórico de mobilizações de diversos grupos igualmente excluídos.

A partir de uma simples análise de conjuntura, poderíamos afirmar que esse tipo de manifestação é coerente com um processo regional mais amplo caracterizado pela articulação de movimentos políticos historicamente considerados marginais – entre eles os movimentos indígenas - que encontram espaços de expressão mais abrangentes no âmbito de uma crise generalizada da hegemonia dos estados-nacionais.

Porém, este fator não atua sozinho, outro o acompanha. O processo de reetnização da América Latina, também lembrado por Quijano (2005) e Domingues (2007, p. 177) e descrito por Lalander (2010, p.40) como politización de la etnicidad. O processo é descrito por Contreras (2008, p. 189-90) como uma mobilização política indígena em torno da valoração positiva do elemento étnico, até então estigmatizado pelo processo colonial.

Mas não é só isso. É bom não esquecer que existe, também, uma explicação mais específica. A recente ―explosão‖ da ―questão indígena‖ no contexto latino-americano está estreitamente relacionada com o que poderíamos chamar processo de reetnização, resultante das experiências de participação política de inúmeras organizações e movimentos etnopolíticos que contribuíram para dignificar o étnico e outorgar um sentido positivo à condição de indígena. O fato mais importante que ocorreu nas últimas três décadas, do ponto de vista das populações indígenas, foi a composição de novos espaços de organização que ultrapassaram as esferas de suas próprias comunidades, alcançando círculos mais abrangentes de expressão de suas reivindicações e demandas. A questão não se limita, portanto, a transcender o espaço da aldeia, da reserva ou da comunidade, mas sim de "driblar" a relação exclusiva com o Estado através do órgão de tutela.

O processo de reetnização trata-se portanto de negar concretamente o colonialismo e o indigenismo de estado, buscando uma forma, pela valoração positiva do étnico, de reivindicar autonomia frente a relação de subordinação imposta pelo estado-nação.

Desse modo, a revalorização das culturas indígenas, acompanhada de uma crítica reiterada aos sistemas de opressão e dominação (colonialismo, capitalismo, imperialismo), estabeleceu um novo contexto para pensar as relações interétnicas na região. A defesa e recuperação da terra, o reconhecimento da especificidade étnica e cultural, a igualdade de direitos frente ao Estado, a luta contra a repressão e a violência, o estatuto da indianidade frente aos direitos humanos, a valoração da tradição e a reparação histórica, entre outros, são temas instituídos nessas novas instâncias de expressão política." (CONTRERAS, 2008, p.190).

77 Todas as demandas indígenas ganham assim força e maior legitimidade a partir do processo de reetnização. Tal processo, assim, deve ser incluído então na investigação dos fatores envolvidos no desencadear histórico dos movimentos indígenas. Quanto ao processo de reetnização em si, trata-se de investigar as forças internas que o impulsionaram e verificar as relações de mútua determinação entre ele e o processo de organização política indígena, e o peso de cada proposição para o resultado histórico efetivado.