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Os nomes do amor e suas dimensões na contemporaneidade

PARTE I – OS PERCURSOS BIFURCADOS DA SEXUALIDADE

4 NO COMEÇO DA EXPERIÊNCIA ANALÍTICA: O AMOR

4.3 Os nomes do amor e suas dimensões na contemporaneidade

Amores românticos, amores corteses, amores nômades, amores orbitais, amores fragmentados, amores-paixão, amores sublimados, amores contabilizados, amores (ou desamores) que formam sintomas contemporâneos, apontando para uma espécie de patologia do amor. São vários os nomes que o amor recebe na contemporaneidade e sua marca espalha- se por todos os lados. A existência de um novo tempo prenuncia configurações diferenciadas no campo do amor, mas, seria a existência de um Novo Amor? Quais são os traços que marcam o amor contemporâneo e em quê ele se difere da experiência de amor em outros tempos? É o amor uma invenção, do mesmo modo que alguns (Foucault, 1988; Giddens, 1993; Nelli, 1975) sustentam que o sexo, pelo menos como o concebemos hoje, o é? Qual será o futuro do amor frente às possibilidades tecnológicas de perfeição?

A lógica do mercado movido pelas engenhosidades relacionadas às técnicas e tecnologias estabelece um ambiente que cria aparatos de produção de subjetividade, mas não produz sentidos, uma vez que seu funcionamento é autônomo. Na contemporaneidade, é o biopoder75 associado a uma ética prescritiva que acaba por ditar as normas da convivência, do estar-em-si e das relações amorosas. Se tais engenhosidades são capazes de produzir subjetivações é porque o inconsciente, embora não seja cultural, não é imune à cultura e, por

Isso mesmo, através do registro do Imaginário, faz com os sujeitos assumam posições mais ou menos semelhantes àquelas propostas pela cultura. É a partir dessas imagens identificatórias que podemos pensar em fenômenos que se instalam em um determinado momento da história, e o amor não escapa a isso.

A revolução industrial propiciou intenso crescimento demográfico e, ao mesmo tempo, um rápido crescimento do racionalismo acadêmico. Ao lado dessas questões, as ciências humanas promoveram uma ampla discussão em torno da família, dos ideais burgueses, do papel do Estado e as relações familiares trazem não só a marca do casamento em si, mas também a marca do concubinato, o nascimento de filhos “ilegítimos” e pré-conjugais. Se a família pequeno-burguesa era, de certo modo, a família dominante, por outro lado vemos assim a seu lado a família denominada “popular”, constituída por casais instáveis de concubinos e com ou sem vários filhos. Esta última, no entanto, não resiste (ou resiste mal) à política moralizante do Estado e das elites.

75 A teoria foucaultiana de biopoder baseia-se na concepção de que a política exerce poder sobre os corpos no

intuito de regular, disciplinar, engendrar e capturar desejos e comportamentos. É um tipo de poder que possui uma eficácia muito maior que o poder da repressão porque o mesmo recai sobre os corpos e sobre as consciências e não permite que o sujeito o conteste, uma vez que é sutil e silencioso.

Obviamente que tais características marcam certo modo de amar e de se relacionar. É oportuno lembrar que o amor traz marcas de seu tempo, no sentido de que o mesmo porta elementos imaginários que configuram um determinado momento e, de certo modo, servem de traços fenomênicos de um tempo trazendo em si de elementos identificatórios desse tempo.

Desse modo, o discurso amoroso do final do século XIX é amplamente marcado por elementos que demonstram o mal-estar do homem daquela época diante das questões de seu tempo e, ainda, em seu modo de amar. Se Goethe demonstra as agruras de um Werther angustiado diante dos impasses de sua época e dos reflexos de tais impasses na sua vida amorosa é por que ele ancora no imaginário social de seu tempo. É este modo de amar – amor romântico76 – permeado por modos de amar do passado, tais como o amor cortês, o amor-louco, o amor-paixão, o amor-impossível que vai adentrar o século XX como um modo de amar dominante. Pode-se dizer que esta tipologia amorosa constrói três categorias discursivas, a saber: a) o amor é universal e natural, presente em todas as épocas e culturas; b) o amor é um sentimento “louco” e “cego” e; c) o amor é a condição fundamental para a felicidade.

A contemporaneidade, indiscutivelmente marcada pela liberalidade das relações sexuais e amorosas, pelo discurso da performance e do desempenho, ainda possibilita localizar pontos do amor cortês e do amor romântico que compõem o seu modo de amar. Por outro lado, faz-se necessário observar o que Ribeiro (1998) sintetizou ao afirmar que, no passado, as pessoas “’não davam’, mas se ‘davam’. Hoje, elas ‘dão’, mas não se ‘dão’” (p.18), uma vez que se a denominada revolução sexual promoveu a liberação da moral sexual civilizada, vitoriana e puritana, por outro lado instaurou “... uma sexualidade mecânica, sem amor, reduzida à busca de gozo” (DEL PRIORE, 2005; p.13). Por esse viés, pode-se afirmar que a revolução sexual produziu um efeito paradoxal: de um lado, abria a possibilidade da circulação dos sujeitos pelo campo do prazer sexual; de outro lado, proporcionou o aprisionamento dos sujeitos em um modo discursivo baseado na contabilização das práticas amorosas e sexuais e na capacidade performática dos amantes.

76 Uma recente pesquisa realizada por Bierhoff (2004) demonstra que o estilo amoroso predominante no

Ocidente é o romântico. Essa pesquisa foi realizada através de questionário aplicado em 2000 pessoas. O questionário contém dez afirmações, com as quais os entrevistados devem concordar ou das quais devem discordar, em variados graus de intensidade. O iniciador de tais pesquisas foi esse sociólogo da universidade de Toronto, no Canadá, que identificou seis estilos de amor e publicou um livro intitulado The colors of love

(http://www.johnalanlee.ca/author.htm). No entanto, o aprimoramento de tais estudos se deu com pesquisas do psicólogo norte-americano Robert Sternberg, que criou a teoria do triângulo, na qual discutiu que o amor tem três componentes diferentes: Intimidade, Compromisso, e Paixão. Todavia, uma pesquisa exaustiva só foi realizada por Bierhoff.

Se a história fornece elementos para se pensar o amor no Ocidente, pode-se afirmar, segundo Miller (s/d) que a trajetória do amor ao longo dos tempos tem modificado a forma do homem lidar com o gozo e, sendo assim, o tempo que se chama “Hoje” apresenta o amor como algo para ser consumido, uma espécie de bem de consumo cujo traço característico mais marcante é a satisfação imediata. Como se sabe, a contemporaneidade é freqüentemente definida como um tempo de constante crise nas relações e nos mais diversos segmentos da sociedade: crise no casamento, na instituição familiar, nas instituições sociais e públicas, crise...

Parece-nos, desse modo, que a palavra “crise” é o significante mestre de um tempo atual repleto de sinais confusos, propenso a mudanças rápidas e imprevisíveis. Se tais características marcam o tempo presente, pensar no amor e seus efeitos é um ponto oportuno de discussão em torno das relações humanas, pois é exatamente em torno dos efeitos disso que se chama pós-modernidade que as relações, hoje, são vivenciadas.

Para Zygmunt Bauman (2004) a modernidade deve ser definida como líquida e traz consigo uma acentuada fragilidade dos laços humanos, o que o autor denomina de “amor líquido”. Segundo esse autor, este é um tipo de relacionamento é característico da contemporaneidade: trata-se dos “relacionamentos de bolso”, que é o tipo de relacionamento de que se pode dispor quando necessário e depois tornar a guardar. Tais mudanças implicam também em mudanças semânticas, em que os termos “relacionar-se” e “relacionamentos” foram substituídos pelo atual “ficar” mas também por outros como “conectar-se”, “estar conectado”, etc. Não se trata apenas de preciosismos, ou “variações lingüísticas”, mas isso tudo refere-se a mudanças que ocorrem no campo das trocas amorosas. Para Bauman (2004; p.12), significantes como “relações”, “parentesco”, “parcerias”, que apontam para o engajamento mútuo “[...] ao mesmo tempo em que silenciosamente excluem ou omitem o seu oposto, a falta de Compromisso -, uma rede serve de matriz tanto para conectar quanto para desconectar; não é possível imaginá-la sem as duas possibilidades”. Trata-se, nesta concepção, de tomar o significante “rede” como aquilo que permite a conectividade, a circulação e a movimentação à revelia. A perspectiva adotada por Bauman é a de que os relacionamentos encontram-se no centro das atenções de todos e alimentam as páginas de aconselhamento das centenas de revistas e livros que tratam do assunto. O tipo de amor presente na atualidade, segundo Bauman, sustenta-se na satisfação sem Compromisso, na felicidade sem momentos difíceis, na exclusividade com liberdade, enfim, um tipo de objeto de consumo emocional.

Homem sem vínculos, conectado em redes, com dificuldades de comunicação na era da comunicação, isolado e desbussolado. É esse o homem mapeado pela Sociologia, pela antropologia e confirmado na clínica psicanalítica: um sujeito marcado pela inoperância dos laços sociais, vazio e só, no entanto, vivenciando amores instantâneos e nômades.

Por que amores nômades, instantâneos e desconectados? Sujeitos que se queixam constantemente de seu estado de solidão são lançados em uma busca desenfreada pelo amor orbital, que circula pelas redes e é facilmente conseguido nos diversos pontos da sociedade. Os amores conseguidos em um simples click, ou construídos a partir de um jogo imaginário ocorrido em uma sala de bate-papo são freqüentes e tornaram-se um modo de gozar corriqueiro. De uma juventude transviada nos anos 60, passamos a uma juventude nômade, no início do nosso século.

Parece que o projeto moderno em torno dos ideais românticos de amor absoluto e eterno, com suas outras derivações fracassou. No entanto, o amor não fracassou, mas assumiu uma nova configuração que veio como efeito dos novos modos de vida da juventude. Todavia, mesmo com o suposto fracasso dos ideais românticos, permanecem na cultura os fundamentos de um amor que é colocado como a razão da existência dos humanos. Isso posto, toda a construção literária e também midiática do amor no Ocidente exibe o amor-paixão romântico que nos legou a idéia de felicidade sentimental e a “ficção” de que amar romanticamente é uma tarefa relativamente fácil, ao alcance de todos. Para Costa (1999; p. 74), as exigências do ideal romântico são tão duras quanto à maioria dos ideais de autoperfeição que o Ocidente criou. Assim, bravura, coragem, santidade, virgindade, castidade, quietismo, dentre outros, são ideais tão pesados que as regras impostas aos crentes de todos os tempos se tornaram muito difíceis de serem seguidas. No entanto, o amor romântico também apresenta um agravante, pois hoje “[...] temos a impressão de ser mais livres e autônomos do que nunca, o que acentua o mal estar provocado por uma questão que parece sem saída” (idem; ibidem).

Amores orbitais? Sim, amores que a contemporaneidade favoreceu e que promovem o isolamento e a atuação, separados de elementos até então ligados pela libido. Como conseqüência, em um tempo em que o Outro não existe, uma revivescência do individualismo aparece, inclusive na forma muito particular na medida em que cada um tornou-se empresário de seu próprio desejo. Se até meados do século XX a moral sexual civilizada se apresentava como uma norma imperativa e ainda era fonte de repressão, de impedimento, sobretudo da sexualidade através de um imperativo do “não-gozar”, a contemporaneidade funciona pelas vias da inexistência de tais ideais e sob o imperativo do “mais-gozar”.

Assim, os modernos manuais de amor e sexo enfatizam o desempenho e a “inventividade” sexual, ao lado dos famosos destaques das capas de revistas que trazem “o” modo de amar das celebridades e que reflete (n)os modos de amar contemporâneos. É recorrente ler nessas revistas – e também ouvir no discurso dos jovens – enunciados do tipo “a fila tem que andar”, enunciados estes que retratam as últimas conquistas amorosas e o “troca- troca” de casais. A partir disso, é possíveis sustentar que a relação entre os humanos assume a posição de uma relação entre coisas. Não só as revistas retratam tal discurso, mas também em recente reportagem do Jornal Hoje, da Rede Globo77, sobre a vida dos jovens brasileiros, na tentativa de esclarecer o sentido do significante “ficar”, uma jovem dizia: “[...] eu posso ficar com um a cada semana, ou até ficar com vários na mesma noite, o barato é fazer número”. Mas acrescenta com certo descuido: “o chato é que as pessoas começam a te chamar de galinha”. Os enunciados da jovem ilustram bem o discurso que a contemporaneidade começa a construir sobre o amor. O amor é, assim, objetalizado, e os efeitos discursivos recaem sobre o próprio sujeito do enunciado, pois, na medida mesmo em que a garota torna o parceiro como objeto de gozo, esse gozo incide diretamente sobre ela, transformando-a, do mesmo modo, em objeto.

Cada vez mais é comum constatar as denominadas “noites avulsas” de sexo, que ainda são chamadas de “fazer amor”. Se, durante um tempo, o amor foi exaltado, sublimado, elevado à categoria de significante inacessível, o que a contemporaneidade parece privilegiar é a degradação do amor, em que a prevalência da abundância e da disponibilidade das experiências amorosas assume a tônica. Não se trata de uma nostalgia do amor romântico, mas trata-se de pensar o amor como aquilo que faz signo e encontra-se na ordem da contingência, do acidental. O discurso da garota entrevistada pelo Jornal Hoje demonstra o como a objetalização do sujeito amoroso na contemporaneidade se presentifica nas “relações de bolso”, pois o que prevalece é a programação, a instantaneidade e a disponibilidade.

Os modernos manuais de relacionamento são, de certo modo, uma política de vida, uma vez que oferecem conselhos sobre como proceder diante de um fato amoroso que, cedo ou tarde, vai acometer homens e mulheres. É nessa condição que se inscrevem as revistas masculinas e femininas, que são um tipo de “livro de relacionamento” reduzido. Como veremos abaixo, o leitor pode encontrar em tais veículos sugestões sobre o modo de como se portar diante de seu parceiro, se o tem, ou como fazer para conquistar um, caso não o tenha. Em uma arquitetura discursiva prescritiva, as revistas orientam o leitor a lidar com as

77 Série de grandes reportagens do Jornal Hoje sobre quem é o jovem brasileiro, a partir de diferentes temas. A

dificuldades da vida afetiva, com os conflitos e, ainda, a mostrar como o sujeito pode encontrar um parceiro e sair incólume de um relacionamento, ou seja, com menos “efeitos colaterais”. É o que tentaremos demonstrar ao analisar discursivamente revistas masculinas e femininas veiculadas no Brasil, tais como as revistas VIP e Playboy, do lado masculino, e as revistas Nova e Marie Claire, do lado feminino.

Destacamos que o “salto” dado por nós dos escritos literários para os escritos midiáticos refere-se à percepção de que, na contemporaneidade, a mídia ocupou espaços que antes eram destinados à literatura. O estilo dos textos, a tiragem, as estratégias de captação, dentre outros elementos garantem um certo privilégio ao o discurso midiático, no que tange ao seu alcance, quando comparado com a literatura.

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