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Construindo vínculos parentais e reinventando identidades: os laços de compadrio

3.1. Os padrinhos e as madrinhas dos escravos crioulos e africanos no Desterro

A legislação portuguesa vigente no Brasil durante o período colonial, e mesmo depois dele, continha princípios básicos que fundamentavam juridicamente a relação entre senhor e escravo. Nenhum título versava especificamente sobre a posse e o domínio, mas o respeito a esses princípios encontrava-se regulamentado em alguns textos, inclusive no que dizia respeito do batismo de homens e mulheres africanos e seus filhos como se percebe na citação a seguir.269

Que todos os que tiverem escravos de Guiné os batizem

Mandamos que qualquer pessoas, de qualquer estado e condição que seja, que escravos ou escravas de Guiné tiverem, os façam batizar e fazer cristãos, até seis meses, sob pena de os perderem, os quais queremos que sejam para quem os demandar; os quais seis meses se começarão do dia que os ditos escravos houverem e forem em posse deles. E se alguns dos ditos escravos, que passem de idade de dez anos, se não quiserem tornar cristãos, sendo por seus senhores requeridos, façam-no então saber seus senhores aos priores ou curas das Igrejas em cujas freguesias viverem, perante os quais farão ir os ditos escravos e, se eles sendo pelos ditos priores e curas admoestados e requeridos por seus senhores perante testemunhas, não quiserem ser batizados, não incorrerão os senhores dos ditos escravos na dita pena. E sendo os ditos escravos em idade de dez anos ou de menos idade, então em toda maneira os façam batizar até um mês do dia que os ditos escravos houverem e forem em posse deles; porquanto nestes da dita idade não é necessário esperar por seu consentimento. E quanto às crianças que em nossos reinos e senhorios nascerem das escravas que das ditas partes de Guiné vierem, mandamos que os seus senhores, sob as ditas penas, as façam batizar aos tempos que os filhos dos cristãos e cristãs se devem e costumam batizar.270

Da perspectiva da legislação eclesiástica, expressa nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, a prática do sacramento do batismo representava o nascimento espiritual do indivíduo, visto ser um momento de purificação do pecado original mas, ao

269

LARA, Op. Cit, 2000, p. 37.

270

mesmo tempo, o registro de batismo também fundamentava a posse do senhor sobre o seu escravo, fosse esse adulto ou criança.271

De uma forma geral, para adultos e crianças era exigido pela igreja, no ato do sacramento do batismo, a presença de um padrinho e de uma madrinha: o primeiro deveria ser maior de 14 anos e a segunda maior de 12. Era vetado aos pais do batizando, aos infiéis, aos hereges, aos excomungados públicos, aos surdos ou aos religiosos, o compromisso de ser padrinhos, bem como se fazer essa escolha a algum dos Santos Católicos, excetuando-se quando a vida da criança estava em risco de morte.272

Portanto, por meio do batismo convertia-se o escravo ao mundo cristão, e assim legitimava-se a propriedade, oficializava-se a sua existência social e estabelecia-se relações de parentesco espiritual através do apadrinhamento. De acordo com Florentino e Góes, “o compadrio é uma relação parental de base espiritual, mas nem por isso menos importante do que aquelas de outros tipos, como as de base consangüínea ou o parentesco por meio de alianças matrimoniais, por exemplo, sobretudo no âmbito de uma sociedade em que o cristianismo tudo plasma.”273 Nessa perspectiva, o batismo foi uma oportunidade aproveitada pelos escravos para a criação de laços afetivos de proteção e de ajuda mútuas.

Os registros de batismo que constam nos Livros dos Escravos da Freguesia de Nossa Senhora do Desterro, entre os anos de 1788 a 1850, fazem referência aos padrinhos. De forma geral as informações que neles constam são: o nome do padrinho e da madrinha, a condição jurídica (livre, escravo ou forro), o estado civil (casado, solteiro, viúvo), se escravo, o nome

271

SCHWARTZ, Op. Cit, 1988, p.310. NEVES, Maria de Fátima R. Ampliando a família escrava: compadrio de escravos em São Paulo do século XIX. In: NADALIN, Sérgio Odilon, et alii (coord.). História e População: estudos sobre a América Latina. São Paulo: Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados, 1990, p. 237- 243.238. No caso do adulto, se esse já houvesse sido batizado, para comprovar a sua posse o senhor contava com um registro de matrícula.

272

LOPES, Op. Cit., 1998, p. 196.

273

do dono e, em alguns casos, sua cor e origem. No entanto, os registros nem sempre eram completos e muitos padrinhos e madrinhas batizaram vários afilhados, adultos e crianças, de forma que em alguns consta a sua condição social e/ou estado civil, enquanto em outros não.

Por isso, é necessário considerar que, ponto de vista estatístico, os números apresentados acerca desses sujeitos somente podem ser considerados em nível de amostragem. A partir dos dados de todos os registros compilados se elaborou a tabela a seguir, que evidencia a composição do universo de escolhas para padrinhos e madrinhas de escravos, tanto africanos quanto crioulos, na Freguesia do Desterro.

Tabela 13. Condição jurídica dos padrinhos e madrinhas de escravos africanos e crioulos da Freguesia do Desterro, 1788 a 1850.

Escravos % Forros % NC % Santos % Total

Padrinhos

1.706 32,83 187 4 3.282 63 22 0,42 5.197

Madrinhas 1.310 25,83 183 4 1.920 38 1.658 32,7 5.071 Fonte: Livros Catedral, Batismo de Escravos, 1788-1850.

O total de registros de batismos de escravos africanos e crioulos entre os anos de 1788 a 1850 é de 5.245. Mas, como se observa na tabela, a presença do padrinho aparece em 5.197 (99,08%) e a da madrinha em 5.071 (96,68%), sendo que em 46 (0,88%) registros não há a presença de nenhum dos dois, número insignificante em relação ao total, evidência que reafirma a importância do sacramento e a participação dos padrinhos nesse contexto estudado. Porém, em vários registros não há referência à condição jurídica dos padrinhos. Evitando

incorrer em erro de generalização, ao categorizá-los como livres, considerei pertinente uni-los sob a denominação NC (Não Consta): 3.282 (63,15%) padrinhos e 1.920 (37,86%) madrinhas. Analisando os registros, foi possível evidenciar duas formas de nomear esses sujeitos: somente pelo primeiro nome; e pelo nome e sobrenome, sendo que neste caso, alguns apresentam designações junto ao mesmo.

Em relação aos padrinhos, do total de 3.282 registros, em 817 (24,89%) aparece somente o primeiro nome: Pedro, João, Paulo, Joaquim, Felipe, José, Benedito, Vicente, Ciriano, Cipriano e tantos outros que podem se tratar de escravos ou forros. Nos outros 2.465 (75,11%) registros constam o nome e o sobrenome do padrinho e alguns trazem uma designação assim específica numericamente: Coronel, 1; Ajudante, 7; Alferes, 22; Cadete, 5; Capitão, 17; Major, 5; Sargento, 6; Tenente, 18; Reverendo, 5; e finalmente, Padre, 1. Neste segundo caso, excetuando-se os padrinhos que apresentam as patentes militares e os eclesiásticos que se constituíam de pessoas livres, é possível, em relação ao restante, que também fossem livres ou forros. Um exemplo disso foi o africano Francisco de Quadros que batizou vários africanos adultos e filhos de mulheres africanas, 25 ao total. No entanto, aparece como sendo de condição forra em apenas 5 registros.

No que diz respeito às madrinhas, do total de 1.920 registros que não apresentam a condição social, 491 (25,57%) apresentam somente o primeiro nome: Joana, Maria, Vitória, Antônia, Anna, Vicência, entre tantas outras, que podem também ser escravas ou forras. Os outros 1.429 (74,42%) registros apresentam nome e sobrenome das madrinhas e, no caso, destacam-se 135 com a designação de “Dona”.

Portanto, esses dados obtidos por meio da análise dos nomes apontam que não é possível generalizar todos os padrinhos e madrinhas que não apresentam referência à condição jurídica como livres. Mesmo assim, evidencia-se uma predominância de padrinhos e madrinhas de condição forra e livre em relação aos escravos, dado indicativo da possibilidade

de que um dos critérios na escolha para o estabelecimento das relações de compadrio poderia ser a condição forra ou livre dos padrinhos. Assinala-se que a presença de militares, 81 registros no total, está relacionada ao papel inicial da Ilha de Santa Catarina como importante base para a ocupação das terras ao sul do Brasil e por ser capital da Capitania e Província.

Outra questão que se destaca na tabela é a menção a santos católicos como padrinhos e madrinhas, sendo o número de santas o mais significativo, superando inclusive o de escravas. Na tabela a seguir, é possível visualizar quais santas foram mais “invocadas”.274

Tabela 14. Números de intercessoras invocadas como madrinhas de escravos africanos e crioulos, 1788 a 1850.

Nossa Senhora 1.478

N.S. da Conceição 25

N.S. das Dores 50

N.S. do Amparo, da Lapa, do Pilar, do Terço, dos Remédios 5

N.S. do Carmo 4 N.S. do Desterro 33 N.S. do Livramento 4 N.S. do Parto 5 N.S. do Rosário 23 Santa Anna 13 Santa Isabel 2 Santa Rita 15

São Francisco de Paula 1

Total 1.658

Fonte: Livros Catedral, Batismo de Escravos, 1788-1850.

274

Nos registros do período quando a madrinha era Nossa Senhora ou outro Santo a expressão utilizada era “invocou-se” por madrinha ou por padrinho.

Embora a legislação eclesiástica proibisse a escolha de santos para padrinhos, exceção apenas no caso de o batizando estar em perigo de morte, a quantidade destes invocados para o batismo evidência que tal prática foi largamente utilizada pelas populações escravas africanas e crioulas do Desterro. Assinala-se também, embora proibida pela Igreja, a presença de 6 eclesiásticos como padrinhos: 2 Reverendos e 1 Padre.

Ao que tudo indica, além do Desterro a prática de nomeação de santos para padrinhos e madrinhas foi comum para outras regiões do Brasil. Por exemplo, a invocação de Nossa Senhora como madrinha foi apontada por Silva em pesquisa relativa à Freguesia de Nossa Senhora da Graça, de São Francisco do Sul e de São Francisco Xavier, de Joinville, ao norte de Santa Catarina, no período de 1845 a 1888. Segundo a autora, em São Francisco, cerca de 4,5% das crianças, durante o período pesquisado, tiveram como madrinha Nossa Senhora da Rosário, por 43 vezes; Nossa Senhora das Dores, por 20 vezes; Nossa Senhora da Graça, 6 casos; Nossa Senhora da Conceição, 3 vezes e Nossa Senhora da Guia, uma vez.275

Se as informações acerca da condição social dos padrinhos e madrinhas dos escravos africanos e crioulos aparecem relativamente pouco nos registros, encontra-se um número ainda menor em relação a procedência e ao estado civil dos mesmos. No que diz respeito a procedência, esta é referida em apenas 0,38% registros de padrinhos e 0,20% de madrinhas em relação ao total, e estão divididas conforme a tabela a seguir.

275

SILVA, Denize Aparecida da. “Plantadores de raiz”: Escravidão e compadrio nas freguesias de Nossa Senhora da Graça de São Francisco do Sul e de São Francisco Xavier de Joinville – 1845/1888. Dissertação em História, UFPR, 2004, p. 77-78.

Tabela 15. Procedência dos padrinhos e madrinhas de escravos africanos e crioulos, 1788 a 1850. Padrinhos Madrinhas Angola 1 Calabar 1 Benguela 3 Conga 2 Cabundá 1 Costa 1 Congo 7 Guiné 1 Costa 2 Nação 2 Ganguela 1 Quissamã 1 Moçambique 1 Rebolo 1 Monjolo 1 Desterro 1 Nação 1 Total 10 Espanhol 1 Ilhas 1 Total 20

Fonte: Livros Catedral, Batismo de Escravos, 1788-1850.

É possível que o reduzido número de referência nos registros em relação à procedência signifique a pouca importância dada a essa questão pelo pároco na hora de proceder ao registro. Por outro lado, aqueles que apresentam as procedências indicam para a questão da reinvenção das identidades dos africanos, visto que essas aparecem incorporadas ao nome como sobrenome, por exemplo: Maria Guiné276, Anna Rebolo277, Maria Conga.278 Portanto, se incorpora uma denominação advinda do tráfico, a nação, um nome recebido no batismo católico e se utiliza essas referências para marcar uma identidade africana que estabelece diferença em relação às demais.

276

AHESC. Livro Catedral, Batismo de escravos, 1771-1798.

277

AHESC. Livro Catedral, Batismo de escravos, 1771-1798.

278

No que diz respeito ao estado civil, os registros nos quais consta essa referência em relação aos padrinho são de apenas 804 (15,47%) casos e as madrinhas 560 (11,4%) casos, distribuídos entre casados, solteiros e viúvos conforme a tabela a seguir.

Tabela 16. Estado civil dos padrinhos e madrinhas de escravos africanos e crioulos, 1788 a 1850.

Casados Solteiro Viúvos Total

Padrinho 266 537 1 804

Madrinha 188 369 3 560

Fonte: Livros Catedral, Batismo de Escravos, 1788-1850.

Pelo que se observa dos dados da tabela, existe uma predominância dos padrinhos e madrinhas solteiros em relação aos casados. Destes últimos, foi possível identificar que 132 são casais: 99 não consta a referência quanto a condição social; 2 são forros; de 5 casais o padrinho é escravo e a madrinha forra; 26 são escravos: de 18 casais o padrinho e a madrinha pertencem ao mesmo proprietário e 8 são de proprietários diferentes. Evidencia-se novamente nesta questão, que a categoria jurídica e o fato dos escravos casados pertencerem, em alguns casos, a proprietários diferentes, não impossibilitou o estabelecimento de vínculos familiares e de compadrio.

Todos os dados apresentados até o momento são relativos aos padrinhos e madrinhas que constam no total de registros de batismos de escravos ocorridos no Desterro entre os anos de 1788 a 1850 e, portanto, englobam africanos e filhos de africanos e crioulos escravos. Portanto, é necessário focar nossa análise para os batizandos adultos de procedência africana, objetivando compreender como foram criados seus vínculos de apadrinhamento. Neste caso,

além dos dados estatísticos, o cruzamento dos nomes permite perceber alguns indícios acerca dessa questão.