• Nenhum resultado encontrado

Construindo vínculos parentais e reinventando identidades: os laços de compadrio

3.2. Padrinhos e madrinhas de adultos escravos africanos

Inicialmente é preciso considerar que os adultos africanos, recém-chegados através do tráfico atlântico, não possuíam relações afetivas que lhes permitissem escolher seus padrinhos e madrinhas. Nesta perspectiva, é mais provável que essas escolhas tenham sido feitas por seus proprietários e, além disso, como a legislação eclesiástica estabelecia a obrigação desses batizarem seus escravos, é possível que em muitos casos a realização de tal sacramento tenha se constituído apenas em uma formalidade.

No entanto, partindo do pressuposto que os africanos na condição de sujeitos históricos, portadores de valores e culturas, realizam uma leitura do contexto no qual são inseridos e aprendem a fazer uso daquilo que lhes é imposto, é plausível supor que com o tempo os vínculos de apadrinhamento, inicialmente impostos, tenham sido utilizados para criar possibilidades de ajuda e auxílio mútuos.

Essa hipótese pode ser passível de comprovação a partir da análise da condição jurídica dos padrinhos e madrinhas desses africanos adultos.

No total de registros de batismo dos africanos adultos, 1.138 entre os anos de 1788 a 1850, a referência aos padrinhos ocorre em 1.125 (98,86%) registros e as madrinhas em 1.062 (93,32%), distribuídos conforme as condições jurídicas da tabela a seguir.

Tabela 17. Condição jurídica dos padrinhos e madrinhas de escravos africanos adultos, 1788 a 1850.

Escravos % Forros % NC % Santos % Total

Padrinho

405 36 41 3,64 671 59,65 8 0,71 1125

Madrinha 202 19,02 41 3,86 259 24,39 560 52,73 1062 Fonte: Livros Catedral, Batismo de Escravos, 1788-1850.

Conforme se pode inferir do resultado da tabela em relação aos padrinhos e madrinhas de africanos adultos batizados, houve uma predominância dos primeiros em relação às madrinhas. O mais evidente é a expressiva presença, 560 ao total, de registros nos quais aparece como madrinha Nossa Senhora.

Assim como procedido na Tabela 13, uniu-se sob uma mesma denominação, NC, aqueles registros de padrinhos e madrinhas que não apresentavam referência à condição jurídica, no total 671 dos primeiros, sendo que destes, 317 (47,24%) apresentam nome e sobrenome, podendo, portanto ser forros ou livres, com destaque para a presença das designações de Reverendo, 1; Ajudante, 1; Capitão, 1; Catete, 1; e Alferes, 1; nos outros 354 (52,44%) registros consta somente o primeiro nome, de forma que esses padrinhos podem ser escravos ou forros.

Os dados resultantes desta análise, se relacionados aos números de padrinhos forros e escravos, resulta na evidência de que havia uma predominância de padrinhos escravos em relação aos forros e livres, e dos dois primeiros em relação ao último. Tal dado sinaliza para o fato de que os padrinhos dos africanos adultos possuíam em sua maioria a experiência da escravidão passada ou presente.

Em relação às madrinhas, o mesmo procedimento foi realizado: de um total de 259 registros, em 155 (59,85%) consta seu nome e sobrenome, com destaque para 3 madrinhas que apresentam a designação de “Dona” e 104 (40,15%) que trazem somente o primeiro nome.

Os dados apresentados na tabela, no que se refere a um número maior de padrinhos em relação às madrinhas, e de que os primeiros possuem em comum com seus afilhados a experiência da escravidão, fundamentam a idéia apresentada inicialmente de que o batizado do africano adulto e a escolha dos padrinhos pode ter sido feita pelos proprietários, em muitos casos visando o cumprimento de uma obrigação religiosa. Todavia, considerando as porcentagens de padrinhos e madrinhas escravos, forros e os que apresentam apenas a referência ao primeiro nome, que podem ser escravos e forros, temos um conjunto de pessoas com práticas de trabalho, com experiência passada ou presente da escravidão e referências culturais comuns.

Portanto, é legítimo inferir que as relações de apadrinhamento dos escravos africanos adultos ocorrem entre parceiros. Malungo, nesse contexto, significava o companheiro que recebia àquele que chegava (boçais) ensinando o necessário para a sobrevivência, desde o trabalho a ser desempenhado, o conhecimento da língua mas, é possível que seja, também, aquele que batiza, apadrinha, protege.279 Além disso, encontramos casos de padrinhos e madrinhas de adultos que também batizaram crianças, indicando que alguns proprietários, quando escolhiam padrinhos de condição escrava, o faziam entre aqueles reconhecidos pela

279

O termo Malunga possui muitos significados. Pode se referir a camarada, companheiro, parceiro, aquele que participa das atividades, das amizades, do destino. Também é utilizado aos escravos africanos que tinham vindo da África na mesma embarcação ou a irmão de criação. Para Nei Lopes, o termo se refere a homem, marido, ou a pessoa desconhecida, o estrangeiro. LOPES, Nei. Novo dicionário bantu. 2.ª ed, Rio de Janeiro: Editora Pallas, 2003; HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

comunidade escrava, o que sinaliza para uma possível intenção de aproximar o africano recém-chegado a mesma.

É o caso, por exemplo, de Joaquim e Damiana, escravos de Floriano Vieira, que batizaram o pequeno Vicente, em 1837, filho de Rita, escrava de Manoel Luis da Silveira, e ainda, no mesmo ano, o africano Antônio, de 15 anos, escravo do mesmo Manoel.280

Outros exemplos de escravos que batizaram africanos recém-chegados e que pertenciam ao mesmo proprietário podem corroborar a hipótese de que, com o tempo, os vínculos de apadrinhamento podem ter possibilitado proteção e ajuda mútuas.

André, escravo de Antônio Rodrigues, apadrinhou o escravo africano Miguel, de nação monjolo, em 1827, também de propriedade do mesmo Antônio. Esse senhor possuía uma escravaria composta por quatro africanos ladinos, ou seja, já inseridos no contexto da vila há algum tempo e conhecedores da língua: Francisca, de nação benguela; Caetano, de nação monjolo; Antônio, cassange; e Rita, moçambique.281

Outro africano de nação, Miguel, benguela, batizado em 1788 na Matriz282, era escravo de Antônio Vieira Rabelo, e batizou como padrinho dois outros africanos de nação numa mesma ocasião no ano de 1794, também de propriedade de Antônio.283

Em 1816, Manoel, congo, foi batizado com mais três africanos: Matheus da costa, Pedro e José, ambos congos, todos propriedade do Capitão Vicente José Duarte.284 Vinte e dois anos depois de sua chegada, Manoel, juntamente com Joaquina, benguela, batizam o africano Joaquim, cabinda, todos escravos do mesmo Capitão.285 A madrinha, a africana

280

AHESC. Livro Catedral, Batismo de Escravo, 1818-1840.

281

AHESC. Livro Catedral, Batismo de Escravo, 1771-1798; 1798-1818; 1818-1840.

282

AHESC. Livro Catedral, Batismo de Escravo, 1771-1798.

283

AHESC. Livro Catedral, Batismo de Escravo, 1771-1798.

284

AHESC. Livro Catedral, Batismo de Escravo, 1798-1818.

285

Joaquina, de nação benguela, batizou seu primeiro filho em 1809 e, além dela havia ainda na propriedade do Capitão, Joanna, que batizou seu filho em 1829, portanto, ambas já inseridas também, há algum tempo, no contexto da diáspora.286 Joaquina e Manoel apadrinharam ainda, em 1838, Luiza, de 13 anos, escrava de outra proprietária, Francisca Fernandes.287 Francisco, escravo do Cirurgião Mor José Antônio de Lima, em 1825, foi padrinho de Matheus, africano de nação moçambique, também escravo do Cirurgião.288

Evidentemente, esses são exemplos de escravarias maiores, sendo que nas menores propriedades devia-se recorrer ao apadrinhamento com escravos de outros senhores, a exemplo de Dona Maria Custódia que possuía apenas um escravo, Antônio, que em 1838 batizou o africano Antônio, congo, que tinha idade de 10 anos, de propriedade de Thomas dos Santos.289

É possível que os padrinhos africanos, que viviam no contexto da vila há um tempo, tenham auxiliado seus afilhados – e novos companheiros – a sobreviver no novo contexto. Neste momento, convém fazer novamente referência ao colocado no capítulo anterior: os africanos de diferentes procedências possuíam uma capacidade e disponibilidade para a adaptação, para a mudança, mas principalmente para compartilhar culturas e valores. Acrescenta-se a isso o fato de que era comum, em várias partes da África, a prática de “tomar conta da criança” e isso consistia no envio dos infantes para serem cuidados ou criados por pessoas que não eram seus pais ou parentes imediatos, com o objetivo de que houvesse a mobilidade social do mesmo e de sua família. Havia, também, outra prática chamada clientela que, grosso modo, implicava o apoio a pessoas em troca de proteção.290

286

AHESC. Livro Catedral, Batismo de Escravo, 1798-1818; 1818-1840.

287

AHESC. Livro Catedral, Batismo de Escravo, 1818-1840.

288

AHESC. Livro Catedral, Batismo de Escravo, 1818-1840.

289

AHESC. Livro Catedral, Batismo de Escravo, 1818-1840.

290

Evidentemente, não quero dizer com isso que tais práticas foram implantadas pelos africanos no contexto da diáspora, mas é pertinente considerar que relações de proteção, de ajuda mútua, de parentesco, não eram estranhas aos africanos. Se considerarmos essa questão sob a perspectiva de que o processo de deslocamento pelo Atlântico e a inserção em um novo contexto resultaram na transformação cultural, é possível compreender que muitas das práticas dos africanos na diáspora são caracterizadas pelo seu caráter transcultural e que, portanto, apresentam elementos dos dois lados do atlântico reinventados.

Em relação aos dados que sinalizam o apadrinhamento de africanos adultos, em sua maioria por escravos e forros, em comparação aos livres, essa característica também foi apontada por estudos relativos a outras regiões do país. Por exemplo, Ferreira291 ao analisar a freguesia urbana de São José no Rio de Janeiro, evidenciou a presença de 51,2% de padrinhos e madrinhas escravos; 7,9% de forros e 40,9% de livres. Por sua vez, Schwartz verificou que, para a Bahia colonial, num contexto rural, entre os adultos batizados, em 70% dos casos, os padrinhos eram escravos e 10%, forros.292

Os dados até aqui expostos sinalizam que o estabelecimento das relações de apadrinhamento de africanos adultos possivelmente extrapolou o sentido meramente religioso, acabando por moldar as relações sociais.293 De certa forma, essas relações vão, por sua vez, marcar o espaço da vila portuária do Desterro ao mesmo tempo em que os africanos de diferentes procedências criam outros vínculos familiares e reinventam as suas identidades.

291

FERREIRA, Roberto Guedes. Na pia batismal: família e compadrio entre os escravos na freguesia de São José do Rio de Janeiro, primeira metade do século XIX. Dissertação em História, UFF, 2000, p. 189.

292

SCHWARTZ, Op. Cit, 1988, p. 332-334.

293

SCHWARTZ, S. Purgando o pecado original: compadrio e batismo na Bahia do século XVIII. In: REIS, João José. Escravidão e invenção da liberdade. São Paulo, Brasiliense, 1982.