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Os pais Atropelados

No documento 1. INTRODUÇÃO. Jean-Louis Lang. (páginas 154-159)

O NOME-DO-PAI E A METÁFORA PATERNA

6. APRESENTAÇÕES CLÍNICAS

6.2. O Anjo Negro

6.2.4. Os pais Atropelados

Outra sessão, outro sonho: “era como se fosse de verdade!” Descreve: “Tinha dois ‘loucão’ - um homem e uma mulher. Tinha uma subida para planador e para baixo tinha um precipício. Vamos fazer uma manobra radical - eles estavam de jet

ski. Eu fiquei olhando, só que eles não estavam de avião e sim de moto. No meio do caminho era como se eu estivesse na moto: começaram a subir. Me deu um frio na barriga de verdade. Eu é que tinha que me segurar para não cair no precipício. Aí a moto continua girando e nós também: eu, o cara e a mulher”.

Associações: “Era como se fosse um simulador, um treinamento que eu tivesse que fazer”, “Frio na barriga como no elevador, antes (agora já sobe normalmente de elevadores), ou na praia, quando pego onda e é muito grande”.

“Eu não via meu corpo, só minha mão e meus olhos. Estou sentindo com os olhos, mas não estou reparando eu ali”. Lembra da escola: “Presto atenção, vendo e escutando, escrevo com a mão”; “aula de história - sobre Idade Média, igrejas, coisas religiosas” (Fala da professora: chamou sua atenção a calma dela e a história que ela contou).

An.: “E se fosse ao contrário: dormindo, com olhos abertos? (Ele tinha falado que estava dormindo, mas é como se estivesse acordado, com olhos fechados) .

W.: “Como quando a gente come uma maçã e vê uma larvinha - você não quer ver para não perder o apetite?”

Encadeia: “Meu avô era porcão: comia pepino e tirava pedaço com larvinhas, eu via, que nojo...”

An.: “O sonho fala de você e um casal”.

W.: “Casal? Meu pai, mãe, meu tio e a mulher dele...” An.: “Pais, ... algo que não quer ver”.

Relembra a situação dos pais na praia e a vontade dele de fazer xixi: “perdi a vontade”.

Lembro a explicação sexual do pai.

W.: “É, eu não queria ver. Se fosse outra mulher, bonita... Eu não queria ver meu pai, minha mãe, meu irmão ali. Fazia como se fosse uma brincadeira”.

Comento que o que apareceu no sonho foi medo, queda. Marco o quanto ele pôde retomar àquele momento, através do sonho, vivendo-o, desta vez. E se pôde falar disto, não vai mais cair no precipício.

Ele me olha, confuso.

W.: “Uma coisa que notei é que não estou mais preocupado com o que fiz, estou vivendo mais”.

Relendo esta sessão, questionei o caráter de forçamento de minhas intervenções em direção à situação traumática. Penso que eu estava bastante envolvida neste lugar transferencial e intervim desde as associações a que eu mesma fui remetida. Entretanto, o efeito de simbolização produzido na seqüência confirmou este direcionamento.

Walter vem contando do novo assalto que sofreu no parque. Disse que esperou praticamente para ser assaltado: “dei bobeira”, “não tomei uma atitude, só guardei o relógio”.

An.: “O que você quis proteger foi o relógio”. W.: “Guardei duas coisas: a vida e o relógio”.

An.: “Duas coisas relacionadas com ‘ficar paralisado’”.

W.: “É, teve partes em mim que não cresci: a situação da minha mãe e do meu pai, a ‘experiência’”. “Só com a minha prima é que não fiquei paralisado, senão teria dado besteira, mas isso foi antes daquelas coisas lá, antes eu tomava atitude legal”.

O significante que ele escolhe para representar o trauma - “a experiência”, situa bem o horror que viveu. É um momento de nomeação e interpretação daquele tempo, que vai sendo simbolizado como parte de seu passado - um apagamento pode ser efetivado.

Situação de alarme: os pais descobrem que ele comprou uma revista pornográfica. A mãe mexeu nas coisas dele e achou.

W.: “Eles vão ficar com uma imagem ruim de mim”.

O pai, por sua vez, segundo relata W., preocupa-se que eu ache que é ele que está levando o filho para este caminho, por causa da “experiência”.

Proponho falarmos com os pais na semana seguinte, ele está de acordo.

Questiono um pouco a “imagem ruim”, para quem seria? Ele percebe que há diferença entre as posições do pai e da mãe. Interroga-se “de que lado fica?” Falo

sobre os pais terem colocado numa das entrevistas que esperavam que ele “evoluísse” e agora ele está crescendo. Ele se pergunta: “será que eles querem que eu cresça ou fique criança?”

Observamos como os dois lados se apresentam para ele como possibilidades de escolha e de identificação. A preocupação com a “imagem ruim” é dele em relação à mãe e do pai em relação a mim, no que há uma identificação entre o pai e ele, mais além da questão com a mãe. É a posição da analista como terceiro termo que move o processo.

Sessão “emergencial” com os pais e Walter. A mãe fala que Walter sempre a “atropela”, ela tem que reagir e depois chamar o pai dele.

O pai comentou que primeiro foi “atropelado” também pela questão da revista: “a gente não acreditava que ele pudesse comprar”. Contou que, inicialmente, ia “picar” a revista. Depois, falou com amigos da igreja e viu que era normal - aconteceu com os filhos deles. Descobriu que o filho estava fazendo o que ele nunca teve coragem de fazer e até queria. Resolveu então ver a revista junto com o filho.

Resultado: viram todos juntos a revista, o pai, ele, o irmão e a mãe(!)... Walter reclama: “eu queria ver só com você, pai”.

Falo sobre as mudanças de Walter - está fazendo coisas de rapaz. O pai reconhece. Aponto a importância de eles se adaptarem a este novo lugar do filho, para não serem “atropelados” novamente.

A mãe continua reclamando muito de Walter, tentando incluir e proteger o outro filho. Mas Walter desta vez se coloca, discorda do que ela fala, expõe o que pensa.

Falo da questão da privacidade - como foi difícil para Walter se situar após aquela explicação desastrosa do pai que incluía a mãe e que ocasionou uma parada na evolução dele. O quanto era importante, agora que ele tinha um lugar para trabalhar suas coisas, que os pais pudessem ter uma postura mais cuidadosa: respeitar as coisas dele, o tempo dele, o espaço dele. Sugiro que a mãe não seja mais incluída nestas descobertas de “homem” que ele vem fazendo.

A mãe, compreensivelmente, aceita muito mal minhas observações. O marido acaba lhe “traduzindo” tudo novamente.

Ela se queixa, por fim, de que também não tem o espaço dela, o tempo dela, que largou tudo pelos filhos. Digo-lhe que podia entender como era difícil para ela este momento e que seria interessante ela procurar recuperar um pouco do que largou.

O pai, aparentemente, estava de acordo com as colocações.

Walter desenhava, mas estava muito atento e pronto para corrigir ou perguntar sobre o que os pais falavam. Ficamos de conversar sobre os desenhos na sessão seguinte. Porém, não posso deixar de me surpreender com o colorido destes desenhos.

Como combinado, retomamos os desenhos da sessão anterior. São duas paisagens de praia. Uma mostra a praia ao amanhecer, uma palmeira inclinada, um barco e embaixo o trajeto Curitiba-Florianópolis, a quilometragem que separa as duas cidades, um avião, o nome da empresa aérea, com a indicação 1 hora e, riscado: de ‘Vôou’. O outro desenho mostra a praia ao pôr-do-sol, um coqueiro ereto, com côcos, uma prancha de surfe e embaixo o mesmo trajeto, a quilometragem e um ônibus, com o nome da empresa rodoviária.

Peço que associe com a conversa dos pais, ele diz: “praia, pessoas sem roupa, revista pornô, praia de nudismo”.

Fazemos a comparação entre os desenhos: uma palmeira vergada pelo vento, o coqueiro ereto, com frutos; uma praia tranqüila, outra agitada; um veleiro, uma prancha de surfe; um avião, um ônibus.

Fala do vidro preto do ônibus, que associa com “privacidade”: “foi sobre isso que meus pais conversaram em casa, depois da entrevista”.

No final, marco algo que havia em comum entre os desenhos e o que os pais notaram nele: que ele “mudou de praia”.

Ele fala das coisas que têm para fazer na praia e não sabe ainda como são ... surfe, body-board.

Esta sessão foi um marco em seu percurso: aí se encenou o abandono do tempo infantil e o ingresso num tempo outro, da adolescência. Fruto do reconhecimento dos pais, na sessão conjunta, de que ele realmente tinha crescido e, principalmente, conseqüência de uma operação de apagamento que ele pôde realizar. Só-depois, na releitura do caso, é que me dei conta de algo que nos ‘escapou’ no trabalho dos desenhos: a rasura do VÔOU, cujo ato falho trouxe justamente o VÔ e algo que ele pôde apagar ali e fazer letra.

No documento 1. INTRODUÇÃO. Jean-Louis Lang. (páginas 154-159)