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Os percursos do estrangeirismo e o imaginário social brasileiro

2.3 ESTRANGEIRISMO: UM FENÔMENO NA CONTRAMÃO

2.3.1 Os percursos do estrangeirismo e o imaginário social brasileiro

O substantivo masculino “estrangeirismo” quer dizer, ao pé da letra, “emprego de palavra ou construção estrangeira” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 184). Ao tomarmos o termo em seu significado fundamental, entende-se que se trata do uso de palavra ou alguma expressão que tenha ou não equivalente vernáculo.

No Brasil, de certa forma, o estrangeirismo já irritava estudiosos desde meados do início do século passado. Christino (2001), por exemplo, constatou que intelectuais de 1920 já manifestavam sua repulsa pelo uso de vocábulos não originados da língua portuguesa, sendo que, neste período, desenvolvia-se no país uma discussão influenciada por um nacionalismo efervescente. Ainda segundo a autora, vários intelectuais defendiam que quanto mais próximos nós estivéssemos da língua culta da literatura portuguesa, mais protegida estaria a língua portuguesa (IDEM). Além disso, ressalte-se que

de forma geral, os estudiosos do período 1920-1945 reconheciam que o léxico nacional se tinha enriquecido com a contribuição das línguas africanas. Por outro lado, discordavam quanto às alterações trazidas por negros (e índios) na conformação da pronúncia, da morfologia e da síntaxe do português brasileiro. Os interessados na descrição dos falares populares e/ou regionais concederam maior espaço à herança não-branca, que permaneceu praticamente excluída dos tratados voltados para a norma culta e empenhados em ressaltar a unidade linguística entre Brasil e Portugal.

(CHRISTINO, Boletim 7, p. 56-57).

Gilberto Freyre, em seu clássico “Casa Grande e Senzala”, à sua maneira, reconheceu a decisiva contribuição trazida pelo negro africano sobre o português falado no Brasil (BORBA, 2012). Para Borba (2012, p. 44), Freyre entendia a língua falada no Brasil “como fruto dos contatos linguísticos que ocorreram ao longo do período colonial”, sendo que, conforme a “visão freyriana, o processo que teria levado à mudança das variedades tem como agentes principais as amas negras e as crianças brancas, agentes de mudanças linguísticas e de mudanças nas relações sociais” (BORBA, 2012, p. 45).

Ainda no que tange à questão da língua, porém numa outra vertente, Ilari (2012) interseccionou a questão do estrangeirismo quando procurava discutir o episódio da independência política e a construção de uma ideologia linguística no Brasil do século XIX. A partir deste intento, um dos temas dominantes foi o do Brasil como país que fala uma língua própria, uma “língua pátria”, uma “língua nacional” ou mesmo uma “língua brasileira”

(ILARI, 2012).

Reconheça-se que não é de hoje que se discute o papel do estrangeiro no imaginário social brasileiro, sendo o estrangeirismo um elemento de preocupação de autores nos mais variados campos do conhecimento, por exemplo, na publicidade (NASCIMENTO; SANTOS, 2010), na literatura e história (BORGES, 2006), informática (MARTINS; MONTEIRO, 2005), na música (CONTIER, 1994), na crítica literária (CANDIDO, 1976).

Vários foram os pensadores brasileiros que teceram algumas considerações sobre o estrangeirismo, porém nem sempre com esse nome. Nesta direção, Romero (1954), por exemplo, já apontava sobre a característica brasileira de imitação do estrangeiro no âmbito intelectual. Freyre (1970) aludiu à vocação do brasileiro para mimetizar o que vinha de fora.

Holanda (1995) alertou sobre a possibilidade do brasileiro ser um “desterrado em sua própria terra”, no sentido de que o mesmo tendia a importar de outros países a sua maneira de viver.

Guerreiro Ramos (1983), por sua vez, sinalizou a questão tendo como foco a adoção de modelos institucionais dos centros dominantes no mundo, como uma forma mesma de busca de superação do atraso, portanto, com vistas ao progresso.

De um ponto de vista histórico, pode-se dizer que o fenômeno do estrangeirismo iniciou-se com o próprio movimento de colonização exploratória e extrativista empreendida pelos portugueses, transplantando para cá, processualmente, um modelo de sociedade a partir de referências europeias, o que demonstrava, mais ou menos rapidamente, o espírito dominador do colonizador branco em relação aos cativos indígenas da terra e, posteriormente, aos escravos negros africanos (HOLANDA, 1995).

Ribeiro (1995, p. 19), referindo-se ao surgimento do brasileiro sinalizou que o mesmo teria surgido “da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos, uns e outros aliciados como escravos”.

De fato, este transplante civilizatório não se deu de forma negociada, mas sim por meio de um processo de violência e dominação, sendo que a “negociação” que houve, se assim se poderia

dizer, foi entre os “bagos do branco português e o ventre na índia nativa”, dando origem assim, ao proto-brasileiro ou ao “zé-ninguém” (RIBEIRO, 1995)16.

Uma vertente explicativa que nos pareceu atraente à compreensão da(s) origem(ns) do estrangeirismo entre os nativos, foi a abordagem a partir do psicanalista italiano Contardo Calligaris (1993), que quando da primeira edição de suas notas de viagem ao Brasil, externalizou seu estranhamento e perplexidade quanto ao projeto de emigrar de muitos brasileiros, representado pelo “aqui não presta, vamos embora para onde presta”

(CALLIGARIS, 1993, p. 13). Dentro desta perspectiva, inquieto com a expressão corriqueira entre os locais de que “este país não presta!”, o autor refletiu que deveria “haver alguma razão que coloca os brasileiros, com respeito à própria identidade nacional, em uma curiosa exclusão interna […]” (CALLIGARIS, 1993, p. 14). O que Calligaris (1993) fez, de certa forma, foi colocar o “dedo na ferida”, e explorar uma de nossas feridas narcísicas, talvez uma das mais profundas, o nosso “complexo de inferioridade” e a “necessidade de um pai”, representados difusamente no “este país não presta!”.

Assim, em busca de respostas às suas inquietações, o autor vai propor que o problema tem a ver com a “umtegração”, um neologismo que tem a ver com “uma dificuldade relativa ao UM, ao qual uma nação refere os seus filhos, relativa ao significante nacional na sua história e na sua significação” (CALLIGARIS, 1993, p. 15). E um desdobramento dessa proposição é que

se os brasileiros podiam falar do Brasil como se fossem estrangeiros, é que de alguma forma “Brasil”, o UM das suas diferenças devia ser algo mais ou algo menos do que um traço identificatório fundando a filiação nacional […]

(CALLIGARIS, 1993, p. 15).

Nessa direção, na falta desse “UM”, de acordo com o pensador italiano, os nativos tenderiam a ter uma necessidade de referenciais externos – paternos, segundo a terminologia freudiana – em seu imaginário, que se expressaria tanto pelo culto quanto pela repulsa, tanto pelo amor quanto pela subalternidade em relação a esse referencial, processo este construído a partir do relacionamento de duas personagens centrais, o colonizador e o colono, que funcionariam como figuras retóricas dominantes do discurso brasileiro (CALLIGARIS,

16 Interessante notar que esse proto-brasileiro – mameluco (mistura do índio com o branco) – inicialmente não fora “acolhido” nem pela mãe índia e, muito menos, pelo pai branco (português). Então quem ele era? A este proto-brasileiro desamparado pela figura materna/paterna, Ribeiro (1995) vai “apelidar” de “zé-ninguém”.

1993). De fato, segundo o autor, “o certo seria dizer que, no discurso de cada brasileiro, seja qual for a sua história ou a sua posição social, parecem falar o colonizador e o colono”

(CALLIGARIS, 1993, p. 16).

Note-se que Calligaris usou o termo “parecem falar o colonizador e o colono”, e não o

“falam o colonizador e o colono”, talvez devido a uma certa cautela, pois embora as argumentações desenvolvidas pelo autor ao longo do texto, em boa parte sejam difíceis de rebater, parece-nos que há limites ao tentar transpor análises advindas da experiência clínica individual para a esfera cultural ou social mais ampla. Além disso, o texto foi escrito num determinado período histórico e a partir de uma amplitude geográfica limitada, o que talvez não desse conta da diversidade cultural dentro do país e, tampouco, dos movimentos trazidos pelos acontecimentos futuros do mesmo. Contudo, reconheça-se que a instigante reflexão trazida pelo psicanalista possui uma base antropológica-histórica, bem como um olhar clínico para o comportamento humano e social, fazendo-nos refletir, portanto, se tais proposições ainda resistiriam na atualidade.

Santos (2010), refletindo sobre os processos identitários no espaço-tempo da língua portuguesa, aponta que desde o século XVII, Portugal se mostrava um país semi-periférico no sistema mundial capitalista moderno. Portanto, o colonialismo português, uma vez tendo sido protagonizado por um país, ele mesmo semi-periférico, teria dado origem a um colonialismo subalterno, o que, por sua vez, remeteria as colônias a uma dupla colonização: por parte dos portugueses e dos países centrais (principalmente a Inglaterra).

Embora o papel e o legado da colonização portuguesa sejam presentes fortemente até os dias de hoje no Brasil, verifica-se que durante o final do período colonial, a elite nativa (uma oligarquia latifundiária), bem como uma burguesia industrial nascente (já no período de industrialização), iniciou um “afastamento” de Portugal e, concomitantemente, uma procura por outra(s) referência(s) estrangeira(s). Nesta direção, mesmo já independente, o Brasil inicia um processo de colonização, agora autoinduzida, saindo, portanto, de um ciclo lusitano, para o ciclo Paris-Londres e, finalmente, ao ciclo estadunidense (CALDAS, 2007).

Quanto ao ciclo de referência portuguesa, não resta dúvida quanto ao papel e ao legado do colonizador no imaginário e cultura locais, havendo reflexos nos mais vastos campos da vida social brasileira. Já a passagem do referencial lusitano para o ciclo Paris-Londres, deveu-se, basicamente, a um fator econômico, haja vista que os dois países eram grandes potências mercantis, sendo que, no caso brasileiro, houve um predomínio inglês, pois as relações econômicas e comerciais do país com os ingleses era mais estreita, principalmente a partir da independência política do Brasil, frente à metrópole portuguesa (IDEM).

Contudo, o predomínio inglês no país, a partir do final do século XIX e início do XX, passou a ser contrabalançado pela nova potência mundial emergente, os Estados Unidos da América (EUA), e assim iniciou-se o ciclo estadunidense de referencial cultural brasileiro (MOURA, 1990). Neste sentido, entre as décadas de 30-60 do século passado, a influência dos EUA se fez sentir no Brasil de forma bastante acentuada, seja no plano econômico, das relações exteriores, políticas e comerciais, bem como na prática e no ensino de gestão (CALDAS, 2007).

Para Ianni (1979), a partir de um poderoso aparato institucional e da indústria cultural, os EUA lograram êxito na pretensão de exercer decisiva influência na América Latina, obtendo assim, uma hegemonia cultural, política, econômica e ideológica sobre a região e, é claro, sobre o Brasil também17. O golpe militar de 1964, no Brasil, deixou o Estado brasileiro a serviço da grande burguesia e da acumulação capitalista em larga escala, evento este que alguns atribuem a um papel contributivo, para dizer o mínimo, de apoio dos EUA às burguesias locais (IANNI, 2004)18.

Ao se buscar explicações ao processo de reprodução do fenômeno do estrangeirismo, a partir mesmo de uma aproximação das condicionantes da fixação da mentalidade brasileira pela figura do estrangeiro, seria útil pensar em termos de suas raízes histórias (CALDAS, 2007; HOLANDA, 1995; RIBEIRO, 1995; IANNI, 1979), econômicas (CALDAS, 2007;

IANNI, 2004), culturais (CALDAS, 2007; IANNI, 2004; RIBEIRO, 1995) e institucionais (CALDAS, 2007).

Seja como for, resta-nos a impressão de que o estrangeirismo como traço cultural brasileiro, poderia, até certo ponto, ser compreendido como um elemento profundo, invisível, que funcionaria quase que “automaticamente” dentro de cada nativo, conduzindo-nos a uma atitude e a um comportamento de autoinferiorização e de fixação pelo estrangeiro, essencialmente, o estrangeiro oriundo do Norte Global.

17 Não podemos nos esquecer de que quando o soft power estadunidense não funcionava em direção aos seus interesses na região, os mesmos não exitavam em apoiar logística, econômica e/ou militarmente (inclusive com inteligência) golpes de estado em vários países da América do Sul e Central.

18 Após a II Guerra Mundial, a geopolítica do mundo é divida em Primeiro Mundo (países ocidentais ricos), Segundo Mundo (países socialistas) e Terceiro Mundo (países subdesenvolvidos). O Brasil, neste período, fazia parte deste terceiro pelotão de países, um país “terceiro-mundista”. Num clima de guerra fria entre as duas grandes super potências (EUA e URSS), vastas áreas do mundo passaram a ser objeto de disputa direta e/ou indireta entre as potências. No caso do Brasil, antes do golpe de 64, havia uma intensa polarização social e política, que culminou com a turbulenta deposição de Goulart e com o golpe militar. Não há dúvida de que os EUA apoiaram as elites locais na realização de vários golpes militares na América Latina (AL.), a fim de manter ou mesmo consolidar o seu domínio hemisférico.