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Para uma nova cultura política: um repensar e uma retomada

2.1 UMA APROXIMAÇÃO DO PENSAMENTO DE BOAVENTURA

2.1.3 Para uma nova cultura política: um repensar e uma retomada

todo conhecimento científico visa constituir-se em senso comum (IDEM). Ao aprofundar-se nas justificativas de suas teses, BSS aponta de forma assertiva, na direção de demonstrar que os principais traços do paradigma emergente, conferem às ciências sociais uma nova centralidade, na medida em que há um religamento entre o saber científico e o saber do senso comum, de modo a conduzir-nos a “uma racionalidade feita de racionalidades” (SANTOS, 2010a, p. 90).

De fato, o que se pretende, é realizar um conhecimento científico pós-moderno, que só

“se realiza enquanto tal na medida em que se converte em senso comum” (SANTOS, 2010a, p. 90-91), e neste sentido,

a ciência pós-moderna, ao sensocomunizar-se, não despreza o conhecimento que produz tecnologia, mas entende que, tal como o conhecimento se deve traduzir em autoconhecimento, o desenvolvimento tecnológico deve traduzir-se em sabedoria de vida. É esta que assinala os marcos da prudência à nossa aventura científica. (SANTOS, 2010a, p. 91)

2.1.3 Para uma nova cultura política: um repensar e uma retomada da transformação social

Como o próprio título do livro “A gramática do tempo: para uma nova cultura política” pode sugerir, o objetivo central do sociólogo BSS foi lançar as bases fundamentais de uma nova cultura política, de modo que seja possível um repensar e uma retomada da transformação social emancipatória.

A partir desse intento, caberia uma primeira pergunta norteadora: qual é a concepção de emancipação social em BSS? Assim, temos que a emancipação pode ser considerada como

“o conjunto dos processos econômicos, sociais, políticos e culturais que tenham por objectivo transformar as relações de poder desigual em relações de autoridade partilhada” (SANTOS, 2010b, p. 14), sendo que este processo dar-se-ia no que o autor denomina de seis espaços-tempo: doméstico, da produção, do mercado, da comunidade, da cidadania e mundial (SANTOS, 2010b).

Em determinado momento, Santos (2010c) já apontava que o campo social da emancipação deveria apropriar-se da positividade da democracia representativa, porém reconhecendo a sua insuficiência, chegando a defender uma renovação da teoria democrática assentada na formulação de critérios democráticos de participação política para além do ato de votar. Tratar-se-ia de uma articulação entre a democracia representativa e democracia participativa. Dentro desta ótica,

a nova teoria democrática deverá proceder à repolitização global da prática social e o campo político imenso que daí resultará permitirá desocultar formas novas de opressão e de dominação, ao mesmo tempo que criará novas oportunidades para o exercício de novas formas de democracia e de cidadania. (SANTOS, 2010c, p. 271)

Mais ainda, “politizar significa identificar relações de poder e imaginar formas práticas de as transformar em relações de autoridade partilhada” (SANTOS, 2010c, p. 271).

De fato, a nova teoria de democracia proposta pelo autor, além de significar uma certa ruptura com a teoria democrática liberal (moderna), possui o objetivo de “alargar e aprofundar o campo político em todos os espaços estruturais de interacção social” (SANTOS, 2010c, p.

276).

Paralelamente a uma nova teoria da democracia, Santos (2010c) também apregoa uma nova teoria da emancipação. De fato, as duas novas teorias propostas se entrelaçam, pois a noção de emancipação do autor possui um forte elemento democrático, uma vez que considera que “a emancipação não é mais que um conjunto de lutas processuais, sem fim definido. O que a distingue de outros conjuntos de lutas é o sentido político da processualidade das lutas” (SANTOS, 2010c, p. 277).

Esse sentido político da processualidade das lutas evocada, tem a ver, para o campo social emancipatório, com a ampliação e o aprofundamento das lutas democráticas nos mais diversos campos da prática social, pois conforme o autor,

uma tal concepção da emancipação implica a criação de um novo senso comum político […]. Revaloriza-se o princípio da comunidade e, com ele, a ideia da igualdade sem mesmidade, a ideia de autonomia e a ideia de solidariedade. (SANTOS, 2010c, p. 277-278)

Tenhamos em mente, que esse processo de transformação apregoado pelo autor, fundar-se-ia em dois princípios aparentemente contraditórios, quais sejam: o princípio da igualdade e o princípio do reconhecimento da diferença (SANTOS, 2010b). O primeiro princípio corresponderia a uma profunda redistribuição material e simbólica; já o segundo, representaria o reconhecimento da existência da diversidade de concepções acerca dos recursos e das relações com os mesmos, inclusive nas diferentes formas de sua distribuição (IDEM).

É interessante notar que quando fala de uma transformação social emancipatória, o autor – reconhecidamente pós-moderno – traz ao movimento intelectual pós-moderno um componente da modernidade. Em outras palavras, a concepção de pós-modernidade de BSS não recusa absolutamente a modernidade, no que tange, especificamente, à questão da emancipação, o que o diferencia substancialmente do que designa, criticamente, por pós-modernidade celebratória. Tal compreensão pode ser ratificada pelos próprios dizeres do autor:

no início da década de 1990 a acumulação das crises do capitalismo e do socialismo dos países do Leste europeu levaram-me a ampliar o conceito de pós-moderno e pós-modernidade que passou então a designar, não só um novo paradigma epistemológico, mas um novo paradigma social e político.

Tratava-se agora de pensar a transformação social para além do capitalismo e para além das alternativas teóricas e práticas ao capitalismo produzidas pela modernidade ocidental. (SANTOS, 2010b, p. 26)

Apesar de ser possível perceber a sua não completa ruptura com a modernidade, pelo menos no que concerne à busca da emancipação social, há que se ter claro também de qual

emancipação não se trata. Nesta linha, de acordo com Santos (2010b), a ideia de pós-modernidade como uma crítica radical à pós-modernidade ocidental, deveria propiciar uma nova teoria crítica, porém, não nos mesmos termos da teoria crítica advinda da modernidade, de modo que a ideia de transformação social não fosse convertida numa nova forma de opressão social.

Embora o autor reconheça os valores da liberdade, da igualdade e da solidariedade como fundamentais, ao mesmo tempo, pensa que falta um ingrediente a esta formulação, qual seja, a do reconhecimento da diferença. E é justamente aí que consiste uma das maiores contribuições do autor, que ao não romper completamente com a busca de uma emancipação social transformadora e, concomitantemente, trazendo esse devir social e político para a pós-modernidade, certamente trouxe um incômodo tanto para os teóricos críticos presos ainda a uma concepção universalizante de sociedade, quanto aos pós-modernos, sendo estes artífices de um movimento celebratório da diferença, mas que não levaria a lugar algum, a não ser a um reforço do status quo, conforme a visão de BSS. É dessa perspectiva que provêm a concepção de pós-modernidade de oposição ou, dá no mesmo, de pós-modernidade crítica.

Outro argumento de Santos (2010b) a favor da necessidade de se reinventar a emancipação social, é que se vive hoje numa sociedade na qual persistem problemas modernos, para o quais, contudo, nós não dispomos de soluções modernas. Para tanto, tal reconstrução da transformação social emancipatória só se poderia dar a partir da experiência das vítimas, portanto, por meio de um aprender com o Sul, o que significaria ir mais além da teoria crítica produzida pelo Norte, bem como pela práxis social e política subscrita por ela.

Sem embargo, a visão de emancipação social do autor, como ele mesmo reconhece, contém elementos da teoria crítica, portanto, da modernidade, porém tal concepção vai além, na medida em que repõe as vozes subalternizadas como protagonistas do processo emancipatório, ou seja, reconhecendo a experiência das vítimas daquilo que a modernidade ocidental havia negado.

Assim, uma vez admitida a necessidade de se ouvir as vozes subalternizadas, em outras palavras, as experiências das vítimas, ou ainda o aprender com o Sul, BSS reflete sobre qual o sentido e os limites de uma crítica radical da modernidade ocidental. Dito de outra maneira, o “pós” de pós-moderno significaria o mesmo que o “pós” em pós-colonial?

(SANTOS, 2010b). Tal questionamento induz a pensar que a violência do colonialismo nunca chegou a ser incluída na auto-representação da modernidade ocidental. Assim, tratar-se-ia de uma proposta para uma crítica realizada a partir das vítimas, das vozes subalternizadas, daqueles que foram parte da modernidade pela violência, pela discriminação e pela exclusão

(SANTOS, 2010b). Uma consequência epistêmica deste processo é que a ideia de exterioridade à modernidade ocidental seria central na formulação do pós-colonialismo (SANTOS, 2010b; DUSSEL, 2000; MIGNOLO, 2000).

A proposta de BSS consiste em não renunciar a projetos coletivos emancipatórios, contrariamente ao que ocorre, em sua visão, na pós-modernidade celebratória. Além disso, invoca-se uma “pluralidade de projectos colectivos” que não se coadunam com a propalada transformação social advinda de uma visão da teoria crítica fundada nos princípios da modernidade ocidental, conforme pode-se constatar na seguinte fala:

em vez da renúncia a projectos colectivos, proponho a pluralidade de projectos colectivos articulados de modo não hierárquico por procedimentos de tradução que se substituem à formulação de uma teoria geral de transformação social [...]. Em vez da renúncia a emancipação social, proponho a sua reinvenção. (SANTOS, 2010b, p. 29)

Diante dessa abordagem pluralista, o sociólogo português delineia um salto em direção a uma proposta de transformação social (emancipação) diferente da proposição oriunda da modernidade, porém sem romper absolutamente com a mesma, e aí consiste a beleza e uma certa dificuldade de compreensão. Tal afirmativa pode dar-se, uma vez que o autor coloca um ingrediente que nem o universalismo e, tampouco, a linearidade histórica, típicos da modernidade, previram, que é a dimensão ou o valor do reconhecimento da diferença, ou ainda, da diversidade histórica.

A partir de 1990, restava claro para BSS, que essa reconstrução da transformação social somente poderia ser completada a partir “dos grupos sociais que tinham sofrido com o exclusivismo epistemológico da ciência moderna e com a redução das possibilidades emancipatórias da modernidade ocidental às tornadas possíveis pelo capitalismo moderno”

(SANTOS, 2010b, p. 27), o que o levou ao apelo a aprender com o Sul. A partir daí, o autor elabora um movimento de uma postura da pós-modernidade crítica em direção ao que nomeia como uma teoria crítica pós-colonial (SANTOS, 2010b; SANTOS, 2009). Este percurso rumo a uma abordagem pós-colonialista já tomava fortes tons, quando o autor concentrou-se na análise dos processos identitários no espaço-tempo da língua portuguesa, pois a partir do reconhecimento de que a identidade moderna ocidental é, em grande medida, produto do colonialismo, a identidade no espaço-tempo de língua portuguesa refletiria as especificidades

do colonialismo português, sendo este mesmo também colonizado, portanto, restando numa condição subalterna e semi-periférica (SANTOS, 2002).

Assim, ao propor o que denomina de teoria crítica pós-colonial, BSS reconheceu a relação orgânica desta com a sua proposição de pós-modernismo de oposição, porém também afirmou que vai além do pós-modernismo, bem como mais além do pós-colonialismo.

Segundo as próprias palavras do autor, trata-se de uma visão que traz à tona e nos convida a uma

[...] compreensão não ocidental do mundo em toda a sua complexidade e na qual há-de caber a tão indispensável quanto inadequada compreensão ocidental do mundo ocidental e não-ocidental. Esta abrangência e esta complexidade são o lastro histórico, cultural e político donde emerge a globalização contra-hegemônica como a alternativa construída pelo Sul em sua extrema diversidade. O que está em causa não é apenas a contraposição entre o Sul e o Norte. É também a contraposição entre o Sul e o Sul e o Norte do Sul e entre o Sul do Norte e o Norte do Norte. (SANTOS, 2010b, p. 41)

Ao fazer menção a um projeto coletivo plural, na forma de uma globalização contra-hegemônica que iria além do pós-moderno e do pós-colonial, para uma compreensão e ação transformadora, o autor lança-nos alguns outros desafios: primeiro o de pensar a emancipação social sem uma teoria geral da emancipação; em segundo lugar, o desafio de determinar em que medida a cultura e a filosofia política ocidentais são hoje indispensáveis na reinvenção da emancipação social; terceiro, o de saber como maximizar a interculturalidade sem subscrever o relativismo cultural e epistemológico; por fim, o da possibilidade de se dar sentido às lutas sociais sem dar sentido à história (SANTOS, 2010b).