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2 O RESPEITO AO PASSADO NAS PRINCIPAIS TRADIÇÕES JURÍDICAS:

2.3 Peculiaridades da tradição jurídica brasileira

2.3.1 Os primórdios da tradição jurídica: o Brasil colonial

Pouco após o descobrimento, o Brasil passou a refletir os interesses do mercantilismo da metrópole (Portugal) e em razão deste foi organizado. Diversos são os aspectos em que esse fenômeno é constatável.

Primeiro, no aspecto econômico, é possível falar que o Brasil se construiu sobre uma sociedade agrário-latifundiária, “existindo, sobretudo, em função da metrópole, como economia complementar, em que o monopólio exercido opressivamente era fundamental para a burguesia mercantil lusitana” (WOLKMER, 2003, p. 29).

Quanto a formação social, houve uma intensa polarização entre os latifúndios e a mão-de-obra escrava, constando, de um lado, os grandes proprietários rurais e de outro, os pequenos proprietários, índios, negros e mestiços. Já no âmbito da estrutura política, o que se verificou foi a consolidação de uma instância que incorporou o aparato burocrático da administração lusitana, sem qualquer identidade nacional e desvinculada dos objetivos da sua população e cidade de origem. Nesse ponto, é possível verificar que a metrópole instalou extensões do poder real na colônia, implantando um espaço institucional que evoluiu para uma burocracia patrimonial legitimada pelos donatários, senhores e proprietários de terra. (WOLKMER, 2003, p. 29).

No aspecto ideológico, vigoravam pensamentos e ideias do colonizador, especialmente no que diz respeito ao pensamento escolástico-tomista e nas teses do absolutismo-elitista português (WOLKMER, 2003, p. 30).

O processo colonizador comandado por Portugal instalou e impôs, em uma região habitada por indígenas, uma “tradição cultural alienígena e todo um sistema de legalidade avançada, sob o ponto de vista do controle e da efetividade formal” (WOLKMER, 2003, p. 33). A colonização lusitana trouxe consigo uma cultura considerada mais evoluída e calcada em uma tradição milenária oriunda do direito romano. Assim, possível dizer que o direito português foi, pelo menos inicialmente, a base do direito brasileiro.

Nos anos de 1520 a 1549, a organização político-administrativa da colônia se deu a partir das capitanias hereditárias, cujas características eram eminentemente feudais. Com o seu fracasso, a metrópole deu à colônia a orientação do sistema de governadores-gerais. Nesse momento, ganham especial relevância as Ordenações Reais, que englobavam as Ordenações Afonsinas (1446), Manuelinas (1521) e Filipinas (1603) (WOLKMER, 2003, p. 36).

Com a insuficiência das Ordenações para resolver todas as necessidades da colônia, foram promulgadas diversas leis extravagantes. Posteriormente, com as reformas capitaneadas pelo Marquês de Pombal, uma grande inovação foi a chamada Lei da Boa Razão (1769), que dispunha sobre a interpretação das leis em caso de omissão, imprecisão ou lacuna. Esta lei suplantava a autoridade do Direito Romano, dando preferência “à dignidade das leis pátrias e só recorrendo àquele direito (...) se em boa razão fossem fundadas” (VALLADÃO, 1980, p. 86).

No que toca à administração da justiça no período colonial, alguns aspectos merecem destaque. No período das capitanias hereditárias, cabia aos senhores donatários – possuidores soberanos das terras – exercerem as funções de administradores, chefes militares e juízes. O donatário não dividia com outros o direito de aplicar a lei aos casos ocorrentes, dirimindo os conflitos de interesses entre os habitantes da capitania, confundindo-se, em uma só pessoa, a função legislativa, de acusação e julgamento (MARTINS JÚNIOR, 1979, p. 125). Com o advento dos governadores-gerais, o sistema se modificou, criando-se uma pequena burocracia composta por agentes profissionais, sendo as primeiras autoridades judiciais da época os ouvidores. Com a implantação do primeiro governo-geral, os antigos ouvidores ganharam mais poderes e mais independência com relação à administração política (SCHWARTZ, 2011).

O aumento da população e, consequentemente, dos conflitos, ensejou um alargamento do quadro de autoridades judiciais. Assim, esta passou a ser dotada de três instâncias: a primeira, composta por juízes singulares (ouvidores, juízes ordinários e juízes especiais); a segunda instância, composta por órgãos colegiados (Tribunais de Relação); a terceira instância, composta pelo Tribunal de Justiça Superior, com sede na metrópole e representado pela Casa de Suplicação (CARVALHO, 1980, p. 135).

A magistratura portuguesa compôs, fundamentalmente, a primeira instância brasileira de apelação e influenciou o perfil dos juízes nascidos na colônia, sobretudo a partir do século XVIII. Os magistrados do período colonial revelavam lealdade e obediência aos interesses da Coroa, o que se traduzia em benefícios e futuras promoções e recompensas. Com efeito, a atividade dos magistrados era regulamentada por uma série de normas que visavam coibir o envolvimento dos mesmos com a vida local, mantendo-os distantes e leais à metrópole. Dentre as regras, destacam-se as que determinavam a permanência por um período limitado de tempo em determinado local, a impossibilidade de casar sem licença especial, de pedir terras ou de praticar o comércio em proveito próprio (CARVALHO, 1980, p. 134).

Os magistrados eram escolhidos a partir de dois critérios fundamentais. Primeiro, dentre os membros da classe média, fazendo o uso da carreira para alcançar a ascensão social. A pequena nobreza, composta de filhos de fidalgos, e o funcionalismo, composto por filhos de fiscais, inspetores ou tabeliães foram os que mais contribuíram para a composição de cargos profissionais na justiça. Além da questão relativa à origem social, era imprescindível a formação na Universidade de Coimbra, especialmente em Direito Civil ou Canônico (SCHWARTZ, 2011).

Assim, percebe-se que a relação entre governantes e governados, é caracterizada por um aspecto dual. De um lado, há a constituição de uma burocracia profissionalizada na colônia, de modo a proteger todos os interesses da metrópole e de sufocar as pretensões locais. De outro lado, as relações pessoais – de parentesco, amizades e inimizades – acabam por servir de paradigma na tomada de decisões dos agentes ocupantes de órgãos da administração pública. Essa interface entre a burocracia e as relações sociais e de parentesco vai permear todo o desenvolvimento histórico da tradição jurídica brasileira.