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Os primórdios de um modo psicótico de ser

No documento ANDRÉ LUIZ IORIO MÚSICA E PSICOSE (páginas 98-102)

4. Da fenomenologia da música à fenomenologia das psicoses: uma aproximação

4.2 A música como horizonte da fragmentação da subjetividade

4.2.2 Os primórdios de um modo psicótico de ser

Algumas questões merecem um destaque especial em relação ao período entre 1828 e 1831, que vai precisamente de sua primeira estadia em Leipzig até sua volta em 1830, passando um ano em Heidelberg entre essas duas fases de Leipzig. São nas relações com as pessoas próximas que vamos notar algumas características peculiares que chamam a atenção. Em primeiro lugar, a relação com sua mãe, sobretudo nesses primeiros anos após a morte de seu pai. Schumann tem em relação à mãe uma relação de muita ambivalência e franca dependência. Esconde dela, na maior parte do tempo, seu desejo incessante de seguir a carreira de músico. Coloca a música como uma paixão importante, mas não desmerece os estudos jurídicos. Com muito receio, aos poucos, vai revelando a sua mãe seu verdadeiro interesse em seguir a carreira musical. Ao mesmo tempo, pede com freqüência maior suporte financeiro a fim de bancar uma vida social e cultural com um círculo próximo de amigos, além de viagens nas férias. Muitas vezes, Schumann selecionava o que desejava dizer a sua mãe, sempre usando uma estratégia que a seduzisse a fim de ganhar o seu apoio. Descrevia muitas vezes suas viagens, sempre fazendo uso de uma linguagem poética e ricamente descritiva com metáforas efusivas, como se ela fosse um personagem imaginário presente nas próprias descrições dessas viagens. Schumann sabia que sua mãe tinha inúmeras reservas em relação ao seu futuro, sabia que ela via com muita desconfiança sua inclinação para música, apesar de ela ter sido uma grande influência em sua vida em relação à questão musical. Sua mãe esperava que Schumann levasse a música de forma amadora e seguisse uma profissão segura como a advocacia ou se dedicasse aos negócios editoriais fundados por seu marido (pai de Schumann) e seguido por seus irmãos. Schumann nunca “batia de frente” com sua mãe, sempre utilizando em suas cartas uma linguagem amorosa e

mãe. Ao mesmo tempo, colocava-a num espaço especial em sua vida, como sua grande referência e como um personagem imaginário, uma companheira imaginária. Esse modo de relação, algo sedutor, manipulador, ao mesmo tempo com intensa grandeza poética, idealizado, imaginativo, mas também ambivalente e muito dependente, Schumann repete com seus amigos de juventude. Rosen, Flechsig, Götte e Schunke, dentre outros, são exemplos dessas relações construídas através de movimentos de intensa idealização e dependência, sempre escondendo considerável ambivalência. Schumann demonstrava sempre precisar de um parceiro masculino para dividir sua vida e seus ideais. De alguma maneira suas cartas de juventude a esses amigos demonstram os mesmos movimentos que apresentava em relação a sua mãe, fazendo todos os esforços para manter próximas as pessoas a quem julgava ter uma grande dependência emocional. Citações freqüentes em seus diários, criação de poemas com dedicatória a esses amigos, manifestações de amor incondicional beirando um erotismo homossexual e manifestações de ódio eram constantes. Esses amigos talvez configuravam importantes referências transitórias para o amadurecimento de Schumann, mas talvez nenhum deles desse conta das intensas necessidades emocionais de Schumann. Eram seus pares momentâneos, mas não as figuras masculinas que Schumann buscava ser guiado. Nesse quesito, seu falecido pai, o Dr. Carus e Friedrich Wieck eram talvez os maiores candidatos a ocupar esse espaço. A sombra de seu pai sempre estaria presente nesse período inicial da vida de Schumann, sempre através da literatura. Schumann era um poeta e escritor o tempo todo, usava linguagem poética em suas cartas e diários e ansiava a cada instante a escrever uma narrativa ou um poema. Mesmo nos momentos em que a inclinação musical se tornava cada vez mais nítida, sobrevinha a necessidade de Schumann pensar em algum projeto literário. Graças à influência de seu pai, Schumann adquire muita cultura literária, o que contribuiu para se tornar provavelmente o compositor mais culto de seu tempo. Sua paixão por Jean Paul é indescritível. Ama, venera e depende de Jean Paul. Os personagens de Jean Paul exercem gigantesca influência sobre o imaginário de Schumann. O mesmo se aplicaria a E. T. A. Hoffmann. Enfim, é em toda essa veia literária que

provavelmente repousa a influência de seu pai. O Dr. Carus, por sua vez, constitui um outro tipo de referência para Schumann. Fora talvez seu primeiro psiquiatra ou psicoterapeuta. Incentivador e conselheiro, convidava-o com frequência aos saraus em sua residência. Tolerava consideravelmente a paixão platônica que Schumann tinha em relação a sua esposa Agnes. O Dr. Carus configurava uma referência equilibrada para o universo social de Schumann. Já Friedrich Wieck representava um outro tipo de referência. Personificava o grande mestre, a quem o discípulo deveria seguir cegamente, obedecendo a todas as suas ordens e comandos. Aquele que o tornaria um grande virtuoso de piano e que fora utilizado como um escudo para enfrentar sua mãe, descrente nos projetos pianísticos do filho. Wieck seria o meio para Schumann alcançar seus grandes ídolos como Paganini, Hummel, Moscheles e Liszt. Wieck também o colocaria mais em contato com o mundo social musical. E com Wieck surge Clara, o que nos leva a indagar acerca da relação de Schumann com as mulheres.

Nanny Petsch e Liddy Hempel são moças que começam a fazer parte das fantasias platônicas de Schumann, constantemente citadas no início de seu diário de juventude. Cumpre ressaltar a fantasia de ser “salvo” por Liddy, já citada neste texto, o que provavelmente sinaliza para a fantasia de uma mulher mais forte. Isso fica evidente nas suas fantasias por Agnes Carus, também muito citadas por Schumann em seu diário. Agnes era oito anos mais velha, boa cantora lírica, sensível e talvez uma figura sofrida. Schumann idealizava uma parceira que compartilhasse seus gostos e inclinações estéticas, além de ser uma figura forte o suficiente. Talvez aí residisse a sombra de sua mãe, uma figura sensível e melancólica, mais ao mesmo tempo forte. Schumann tinha incursões tímidas com as mulheres, com contatos reservados e provável atividade sexual esporádica com prostitutas. Seu diário de juventude faz inúmeras menções a contatos com

instabilidade emocional para Schumann. Constantes crises de melancolia, falta de energia e humor depressivo, além de sintomas físicos recorrentes, abuso freqüente de álcool, crises de medo, fenômenos que se aproximavam de vivências alucinatórias e distúrbios do sono eram comuns no dia a dia de Schumann tanto em Leipzig como em Heidelberg. Além disso, Schumann parece desenvolver uma gradual fobia de performance – fobia de palco – o que o isolava mais em termos sociais no cenário musical. Em que pesem os esforços em busca de dependência de figuras seguras e em que pese toda a energia criativa dispendida musical e literariamente, Schumann não encontrava um ponto de equilìbrio. Nem esses seres próximos configuravam um “outro” com quem se poderia desempenhar trocas saudáveis, nem a energia criativa já encontrava uma fonte de expressão suficiente para equilibrar o universo schumanniano, nem propriamente literário, nem propriamente musical nessa fase de sua vida. É nesse momento que começa a surgir a desproporção entre seus grandes ideais artísticos e sua gigantesca fragilidade emocional, traduzida pela suas crescentes dificuldades na marcha de sua vida prática. Aí estariam já presentes as primeiras sementes da eclosão de sua futura psicose.

No documento ANDRÉ LUIZ IORIO MÚSICA E PSICOSE (páginas 98-102)