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Romantismo: das concepções filosóficas e estéticas à noção de sublime

No documento ANDRÉ LUIZ IORIO MÚSICA E PSICOSE (páginas 78-83)

4. Da fenomenologia da música à fenomenologia das psicoses: uma aproximação

4.1 Romantismo: das concepções filosóficas e estéticas à noção de sublime

O final do século XVIII e o início do século XIX foi marcado pela crise do Iluminismo. Este possuía dois fundamentos ou pedras angulares: o criticismo racional e o naturalismo científico (Beiser, F.; p. 18, 2000). O problema dos fundamentos iluministas seria justamente a sua exacerbação, gerando de um lado o ceticismo – a polarização do criticismo – e de outro lado o materialismo – a polarização do naturalismo. É justamente nesse cenário de crise dos referenciais iluministas, e como tentativa de solucioná-lo, que emerge o pensamento kantiano. A escapatória possível frente ao ceticismo e ao materialismo, concebida por Kant, foi uma radical separação entre a substancia natural material (res extensa) da substância mental. E é justamente essa solução encontrada pelo idealismo transcendental kantiano que vai separar o mundo da aparência do mundo da “coisa-em-si”, e que vai acabar gerando um futuro problema a ser solucionado pelos pós-kantianos, e sobretudo, pelos românticos.

Mas vamos primeiro tentar compreender a importância da solução - e posterior problema - kantiano. Kant queria defender os referenciais iluministas priorizando a razão, mas também visava criticar os excessos da própria razão. Queria, portanto, defender uma visão crítica que não incorresse no ceticismo e queria defender o naturalismo sem incorrer no materialismo radical. Na sua primeira crítica – a crítica da razão pura – Kant desenvolve um sistema epistemológico onde a possibilidade de verdade dependeria da conformidade entre os objetos e os nossos conceitos, de forma a fazer um acordo entre sensibilidade e conceitos apriorísticos (universais e necessários) que vão determinar a forma de experiência nas dimensões de tempo e espaço. Mas o

Mas, voltando à questão central, como o dualismo kantiano pode aliviar o risco do ceticismo e do materialismo? Na medida em que a razão crítica só pode ser utilizada para explicar a aparência e não a coisa-em-si, ela estaria limitada, mas não destituída de importância. E na medida em que o naturalismo apenas estivesse relacionado às coisas aparentes, não se poderia utilizar suas leis – as leis da natureza - para as coisas-em-si. É assim negado o fundamento central do materialismo: a noção de que todas as coisas do mundo estariam subordinadas às leis da natureza.

Entretanto, as conseqüências do pensamento kantiano não se restringem meramente a um dualismo entre substância extensa e mente. Muitos outros dualismos estariam presentes: necessidade e liberdade, razão prática e razão pura, sujeito e objeto, etc. É justamente em relação à superação desses dualismos que a concepção romântica vai estar preocupada. Duas vertentes podem ser destacadas em relação ao início do romantismo (Ameriks, K.; 2005, p. 10-13): o desenvolvimento do idealismo alemão e o romantismo “precoce” - Frühromantik. À primeira vertente pertenceriam os filósofos pós-kantianos Fichte e Schelling – chegando mais tarde a Hegel e Schopenhauer. Já na segunda vertente, estariam escritores com um estilo mais solto, por vezes filosófico e por vezes anti-filosófico, que usavam de diversos estilos e formas de escrita para expressarem suas concepções pessoais – exemplos desse grupo seriam Hölderlin, Novalis, Schlegel e Schleiermacher. Cumpre também citar os escritos estéticos de Schiller, como precursor do pensamento romântico18.

Mas voltando novamente à influência do pensamento kantiano, é justamente na terceira crítica proposta por Kant que surge a possibilidade de aproximação com o referencial romântico: as questões acerca da estética, mais precisamente em relação ao juízo sobre o belo, propostas na Crítica do Juízo. Kant aborda algo diferente do proposto nas suas duas outras críticas: a questão

18 Nesse aspecto, outros possíveis fios condutores da subjetividade da nascente tradição romântica seriam o “Sturm und Drang” (“Tempestade e Ímpeto”) –movimento literário alemão da segunda metade do século XVIII que introduzia uma concepção diferenciada de emoção e natureza, contrária ao racionalismo, e o “Programa Sistemático do Idealismo Alemão” – texto de 1796 atribuído a Schelling, com possível participação de Hölderlin e Hegel, onde são plantadas as bases do idealismo alemão e do romantismo (Schelling, 1796/1991, p. 39-41).

de um sentimento agradável e prazeiroso na percepção estética, em decorrência de um sentimento de coerência com a natureza que não pode ser conhecido na sua totalidade. À possibilidade de consenso em relação ao sentimento estético, Kant faria alusão a um substrato suprasensível da humanidade, que se aproximaria futuramente da noção romântica de fusão da natureza em si com a atividade de nosso pensamento (Bowie, A. 2005, p. 241-4): a tensão entre a “verdade” dos sentimentos e a “verdade” construìda através de um saber conceitual.

A tradição romântica se caracterizou pela “arte vivencial” (Gadamer, 1960/1997, p.117). Esta concepção problematiza a diferenciação entre alegoria e símbolo. O primeiro pertenceria à esfera do logos, como um discurso, uma interpretação ou uma representação imagética de algo. O segundo não se restringiria à esfera do logos “pois não é o seu significado que se liga a outro significado, mas, ao contrário, é o seu ser próprio e manifesto que tem significado” (Gadamer, 1960/1997, p. 120). É justamente essa conexão imediata entre fenômeno e idéia, entre expressão e significação, entre visível e invisível, essa unidade perfeita e indissolúvel que caracteriza o ser e o sujeito romântico. O fragmento abaixo da correspondência entre os poetas Schiller e Goethe no final do século XVIII ilustra bem esta noção de símbolo:

...Observei exatamente os objetos que produziram tal efeito e notei que eles são propriamente simbólicos. Isto significa que, como eu quase não preciso dizer, trata-se de casos eminentes, os quais em uma multiplicidade característica se apresentam como representantes de muitos outros e encerrando em si certa totalidade, exigindo uma seqüência, despertando em meu espírito algo semelhante e algo estranho, e exigindo unidade e totalidade tanto do externo quanto do interno... (Carta de Goethe a Schiller de 16 de agosto de 1797, Goethe e Schiller, 1797/1994, p. 208)

verdade absoluta desvelada inteiramente, mas conserva um elemento de estranheza e de mistério ao mesmo tempo que carrega uma familiaridade. Por exemplo, uma música que expressa uma determinada dor, mas também expressa o mistério infinito das dores. Na medida em que se fala de uma arte vivencial e da imediaticidade do símbolo, enquanto veículo de unidade entre expressão e significação, podemos imaginar o papel do pathos para a arte no romantismo.

...O ente sensível tem de sofrer profunda e intensamente; tem de existir pathos para que o ente racional possa proclamar a sua independência e manifestar-se atuando...Pathos é portanto a primeira e implacável exigência feita ao artista trágico, sendo-lhe permitido levar a apresentação do sofrimento até aos limites possíveis, desde que traga consigo um prejuízo para a sua última finalidade, uma opressão da liberdade moral...(Schiller, 1997, p. 165)

Com a subjetivação da expressividade, abre-se um caminho para uma nova arte, não mais fundamentada apenas na noção de beleza, mas tendo como base de sustentação a noção de sublime20. Algo que traz a desmesura, o excesso, a contradição entre a sensibilidade e a racionalidade. E é nesse sublime que se encena a forma artística talvez mais poderosa do século XIX: a música. E é nela que podem ser encontrados rastros significativos do pathos romântico. Em que pese toda a questão envolvendo a subjetivação da expressividade no romantismo, as afetações são uma temática de longa história na música, remontando, sobretudo no século XIX (embora se remeta ao barroco), à querela entre a doutrina dos afetos e a doutrina da música absoluta, tendo nesse segundo caso o crítico Eduard Hanslick21 como maior defensor. É importante frisar que, no século XIX, surgiam duas racionalidades nessa fase pós-kantiana: de um lado a vertente

acerca de um mundo supra-sensível. Nesse sentido, a arte seria para Schelling a apresentação sensível do absoluto (Machado, R., 2006, p. 80-100).

20 Importante salientar a diferença da noção de sublime entre Kant e Schiller. Para o primeiro, só há verdadeiro sublime na natureza. Para Schiller, embora bastante influenciado por Kant, o sublime seria uma liberdade moral do homem pela razão frente a impulsos do mundo sensível (Machado, R., 2006, p. 58-9).

21 O livro O Romantismo e o Belo Musical de Mário Videira, Editora da Unesp, expõe com profundidade essa temática, com ênfase especial às concepções de Hanslick.

que desemboca em Schopenhauer e Nietzsche, que se direciona a uma racionalidade mais obscura, e de outro lado, o pensamento positivista que busca um domínio técnico sobre a natureza. Assim sendo, à subjetivação da expressividade, que, em última instância, levaria ao extremo uma concepção de música a partir das afetações, se oporia uma busca pela música em si, pela própria música, independentemente sobre seus efeitos no sujeito.

4.2 A música como horizonte da fragmentação da subjetividade

No documento ANDRÉ LUIZ IORIO MÚSICA E PSICOSE (páginas 78-83)