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DIA-A-DIA um jogo de pesquisa

4. PLANO INTERPRETATIVO

4.2. Os primeiros sentidos

Antes mesmo de efetivarmos nossa conversa com as crianças sobre suas fotografias, estabelecemos um olhar de outra ordem. Dado simplesmente em função no nosso contato com as sequências das imagens produzidas por elas. Ao manipular cada álbum de fotografia, procuramos estabelecer uma análise preliminar, fundada na sequência das imagens retratadas. O que nos sugeriam estas imagens? Que lugares, pessoas, coisas e situações apareciam ali? O que nos chamava a atenção? Qual eram os assuntos das fotos? Como comparar os modos de produção de sentidos de umas e outras?

Vimos aí um possível caminho interpretativo das imagens desse trabalho, na busca por compreender a narrativa imagética, caracterizando o olhar seletivo do fotógrafo como atravessado por questões culturais, históricas e situacionais.

Ao tentar responder as perguntas, estabelecemos uma primeira estratégia de leitura dos processos de produção de sentidos, singulares de cada criança: elencamos os locais fotografados (em casa ou fora dela), quem ou o quê aparecia nas fotos e o quê estava sendo retratado (se coisas e poses, ou ações e relações). Nessa primeira leitura imagética, a ordem das fotografias apontava para relações estabelecidas pela criança no seu cotidiano – e a variedade do que era fotografado sugeria diferentes padrões ou modos de produção de sentidos, fundamentalmente ligados ao que estava em jogo quando das escolhas no ato fotográfico. Listamos, então, em tabelas, o que víamos na sequência fotográfica de cada um dos participantes do jogo. Assinalamos com um “P” as fotos em que pessoas ou coisas apareciam de modo mais “pragmático”, indicando fotos de ações ou relações; com um “L”, a imagens mais literais, como as fotografias de objetos ou pessoas em pose; e com um (*) as fotos feitas por outras pessoas.

A partir da visualização dos dados na tabela de cada criança, construímos, para cada uma delas um gráfico do fotografado. No eixo horizontal, apresentamos a sequência fotográfica e no eixo vertical listamos as categorias de quem ou do quê a criança fotografou (assinaladas com os números de 1 a 6, conforme a tabela).

Nº da foto

LOCAL QUEM, O QUÊ E COMO

Casa

Escola Outro

A própria criança Outros

Objetos 6 dentro fora Animal

0,5 Sozinha 1 Com adultos 2 Com crianças 3 Adultos 4 Crianças 5 1 2 3 n

Tabela 5. Modelo de tabela para a marcação do gráfico do retrato do fotografado

Com as informações assim dispostas, procuramos estabelecer uma estratégia de leitura de padrões de produção de imagens que nos levassem a interpretação de padrões de produção de sentidos.

Estávamos cientes, no entanto, que deste primeiro nível de análise, evidentemente, não emergiriam os sentidos que procurávamos, mas dessa estratégia surgiram indícios dos processos de escolha e dos modos de funcionamento das diversas crianças. Fica muito claro, quando contabilizamos comparativamente, por exemplo, que enquanto algumas crianças usam

mais a máquina e fotografam a partir de seu ponto de vista, outras, entregam a máquina a outras pessoas para que lhe fotografem.

Na tabela a seguir, temos o registro da proporção de fotografias tiradas pelas crianças e por outras pessoas no jogo, a quantidade de fotos em que a criança aparece na imagem e quantas dessas imagens foram classificadas como “pragmáticas” (retratando ações ou relações) ou “literais” (retratando coisas e pessoas em pose):

Fotos tiradas pela criança

Fotos da tiradas por outra pessoa

Fotos em que a criança aparece

Fotos

pragmáticas Fotos literais

Rafael 17/25 (68%) 8/25 (32%) 8/25 (32%) 11/25 (44%) 14/25 (56%)

Daniela 22/25 (88%) 3/25 (12%) 14/25 (56%) 4/25 (16%) 21/25 (84%)

Paulo 20/25 (80%) 5/25 (20%) 8/25 (32%) 6/25 (24%) 19/25 (76%)

Joana 8/26 (≈31%) 18/26 (≈70%) 18/26 (≈70%) 20/26 (≈77%) 6/26 (≈23%) Tabela 6. Percentil de fotografias de cada caso estudado, relativo a quem era o fotógrafo, à proporção com que a

criança participante da pesquisa aparece nas imagens e ao pragmatismo ou literalidades das imagens. Destacamos (dados circulados), diante da leitura dessa tabela, o descompasso entre a quantidade de fotos feitas pelas próprias crianças e aquelas feitas por outras pessoas – enquanto Rafael, Daniela e Paulo fizeram a maioria das fotos de seus jogos, 70% das fotos de Joana não foram feitas por ela (e em todas essas, ela aparece).

Nos casos tanto de Rafael quanto de Joana, todas as fotos em que aparecem foram feitas por outras pessoas a quem emprestaram a máquina (dados grifados). Já nos casos de Paulo e de Daniela, além de terem sido fotografados por outras pessoas, apareceram em fotos que eles mesmos fizeram – segurando eles próprios a máquina e mirando o visor para seu próprio rosto. Essa ação foi mais vezes repetida por Dani que, relativamente às outras crianças, foi a que menos emprestou a máquina fotográfica.

Sabemos que o fotografar-se a si mesmo é, por um lado, gesto repetido por muitos nos nossos dias, fotografar-se e se ver na imagem das câmeras dos celulares é cena recorrente – essas duas crianças apenas repetem esse gesto ou sugerem que, a despeito de estarem sozinhos, anunciam a necessidade de marcar seu lugar em um cotidiano distante de algumas pessoas que lhe são significativas? Querem se ver como os outros o vêem?

No que diz respeito ao pragmatismo (fotos de ações e relações) ou à literalidade (fotos de poses ou de objetos) das fotos, notemos (dados assinalados com uma seta na tabela) uma tendência de as crianças que fotografaram mais, também terem feito mais fotos literais. A exceção aqui está em Rafael, seus registros apontam para certa proporcionalidade entre a quantidade de fotos de um e outro tipo – 44% pragmáticas e 56% literais. Enquanto que 84% das fotos de Daniela são literais e 80% das de Paulo também. O caso de Joana é o inverso dos três, ela fotografou menos que os outros (só fez 8 das suas 26 fotos), e 77% dessas fotos são pragmáticas.

Essa distinção entre imagens pragmáticas e literais também pode ser percebida no teor temático dos desenhos das quatro crianças.

Em seus desenhos, Rafael se mostra tão sistemático quanto em suas fotos, eles são a repetição e a explicação literal de suas fotografias – aqueles que acrescentam detalhes às fotografias são o do estudo de música e o do cálculo matemático, mas ambos tratam de temas vistos nas fotos.

Já Daniela, desenha o que não aparece nas fotos: seus pais e sua babá nos desenhos da família – nos quais também aparece o cachorro e a pesquisadora visitante – e as criaturinhas imaginárias que solicitam as fotos no jogo. Mas são todos desenhos literais, como a maioria de suas fotos – todos os personagens aparecem posando para o desenho e, no caso das fadinhas, sem cenário definido, num mundo de glitter colorido.

Os desenhos de Paulo, em quadrinhos, definem sua rotina diária e acrescentam dados mais pragmáticos não registrados pela câmera fotográfica. Seus desenhos, simples e esquemáticos, amplificam os sentidos acerca do seu cotidiano; neles, Paulo se mostra jogando bola e vídeo game, empinando pipa, almoçando, dormindo, assistindo televisão, conversando com amigos e lutando caratê.

E assim também os desenhos de Joana; neles, ela nos mostra outras situações vivenciadas no período do jogo e que não apareceram nos registros fotográficos: ela brincando na pracinha, na praia e na rua, andando de bicicleta, e ainda repete os registros de seus estudos na escola e seu hábito de ver televisão.

Os desenhos, com seus textos, permitem ainda um entendimento acerca do contato das crianças com o universo letrado e do seu próprio processo de letramento, sugerindo inclusive, eventuais falhas. Os registros escritos de Rafael são definições de termos referentes aos desenhos – semelhantes talvez àqueles lidos pelo menino em livros e dicionários (acerca dos quais se refere). Já os de Joana surgem como uma legenda das cenas desenhadas. Os escritos de Paulo, descritivos de sua rotina, iniciam-se, por sua vez, com um cabeçalho escolar, com

registro de nomes e datas e, contrariando essa referência à escola, revelam as lacunas no seu processo de alfabetização. As palavras de Daniela, por sua vez, nomeiam a ela e aos outros e, ao descreverem o dia em que recebeu o jogo, também apontam para um letramento ainda não concluído e para o uso repetido e aleatório de acentos agudos – como setas apontando para letras.

Voltando ao conteúdo do fotografado, havemos de destacar um objeto em comum no cotidiano de todas as quatro crianças: a televisão – Daniela é a única que não fotografa a telinha, mas, por outro lado, é ela quem está montando uma espécie de seriado de TV, no qual é atriz principal. Os desenhos ou filmes que assistem na televisão nos dão indícios também do modo de funcionamento dessas crianças e de como se relacionam com o que veem e ouvem na TV. Enquanto Rafael faz referência a sua coleção de DVDs, Daniela cita diversos seriados veiculados em canais por assinatura, Paulo fala de noticiários com notícias políticas e de crimes (mas também de desenhos animados) e Joana conta dos desenhos que assiste, alguns dos quais já vistos por sua mãe quando criança.

Além desses aspectos acima elencados, chama-nos a atenção e se revelam como dados passíveis de elucubrações, outros pontos dos registros das crianças, cujos detalhes sugerem a história de vida de cada uma delas e o modo de funcionamento de suas famílias. Mas não nos estenderemos em conjecturas, assinalamos somente, o quanto os dados aqui produzidos são passíveis de mais perguntas – feitas a seguir sem a pretensão de obtermos respostas.

No caso de Paulo, destacamos a recorrência em suas imagens (tanto nas fotos como nos desenhos) das retículas e dos gradis – aparecem tanto em sua casa quanto na escola, nos azulejos, nas telas e grades, nas sombras projetadas, no detalhe de um beiral, nos quadrinhos dos desenhos, na rede do gol e mesmo nas figuras humanas com corpos lineares e roupas transparentes. São a marca da divisão, da fragmentação, da incompletude? A marca de um lugar, de um cenário recorrente, de um olhar sobre os mundos ornamentados? Os espaços limitados para cada ação rotineira e repetitiva de seus dias? A necessidade de ter cada coisa em seu lugar ou a revelação de uma ausência? A ausência do pai?

Na fala de Daniela nos chama a atenção o movimento de translação de sua narrativa – sempre girando em torno da menina (ela como um sol e suas narrativas como os planetas em torno dela). O mundo parece girar em torno de Dani e ela se faz notar como centro em todos os seus registros, mesmo quando não aparece nas fotografias. Podemos vislumbrar aqui superproteção ou mimo excessivo? Indícios de intolerância à frustração? Necessidade de ter com quem partilhar o próprio cotidiano?

Em nosso encontro, Rafael, por sua vez, pareceu estar agitado, sua fala apontava para dificuldades de articulatórias de alguns fonemas, de um lado, e vocabulário amplo e capacidade argumentativa, de outro. A contradição se manteve quando, ao lado da sistematização de sua narrativa imagética, movia-se pelo quarto para mostrar sobre o que falava. A contradição se liga ao fato de ainda estar em adaptação à vida em seu próprio país, com necessidade de se reapropriar da língua materna? É um menino solitário entre adultos, apesar de registrar imagens de crianças em seu jogo?

E o que dizer de Joana? O fato de se mostrar através de seus desenhos, mais do que através das fotografias, sugere a importância do universo do sonho em sua vida? A casinha perdida, a árvore com balanço, a florzinha, são indícios de que haveria para ela outro lugar melhor onde viver? Lugar maior e mais claro que o quartinho que divide com os pais?

***

Para continuarmos a efetivar nossas análises, destacamos a pesquisa desenvolvida por Carnicel (2002) quando ele, assumindo a um só tempo os papéis “daquele que faz a foto, aquele que observa a foto e aquele que analisa a foto” (2002, p. 52), propôs a análise subjetiva de 5 fotografias, dentre as 250 feitas por ele, no âmbito de um projeto de pesquisa “que visava registrar, por meio de imagens fixas, o cotidiano de dois bairros (...) de Campinas” (Carnicel, 2002, p. 42).

Foto 18. Um homem está sentado nos degraus que dão acesso à sua casa. Fotografia de Carnicel (2002).

Naquele trabalho, ele (Carnicel, 2002) classificou e descreveu cada uma das imagens, relatando o entorno contingencial de sua produção e os sentimentos e emoções que envolveram a escolha do foco. Sua análise subjetiva foi apresentada em três dimensões (Carnicel, 2002, p.52): a primeira, como fotógrafo, definida “na escolha do que fotografar e na angulação da entrada”; a segunda, como observador, definida “ao mergulhar nas camadas da imagem, apontando coisas [e] detalhes que somente são possíveis a partir das informações fornecidas pelo fotógrafo”; e a terceira, como pesquisador, instaurada “na leitura e na categorização das imagens”.

Diferentemente dele, que sintetizou em si essas três dimensões, para a construção do ato interpretativo e para a configuração dos caminhos analíticos deste nosso estudo, essas três dimensões são partilhadas por crianças e pesquisadores:

Aqui em nosso estudo a dimensão do fotógrafo emerge do ato fotográfico infantil, mas não se limita nem a ele, nem exclusivamente à criança fotógrafa. Isso porque, como o ato fotográfico faz referência a um momento passado vivido pela criança, sua análise nos remete tanto às escolhas do ato de fotografar e das lembranças contingenciais acerca dessas escolhas ditas a nós pela criança, quanto aos ângulos de visão (pontos de vista e foco) encontrados por elas para assinalar aspectos do seu cotidiano. Ângulos de visão estes, como já dissemos, algumas vezes localizados no olhar de um outro que usou câmera para fotografar a criança (com ou sem seu consentimento).

Por outro lado, a dimensão do pesquisador – que de início supúnhamos exclusiva do pesquisador – se constitui quando as imagens e as informações sobre elas são revisitadas após o nosso encontro com as crianças. Ao lermos e categorizarmos esses dados em função das teorias de base dos nossos estudos, constituímos nosso ato numa dimensão fundamentalmente

PESQUISADOR Dimensão do pesquisador CRIANÇA Dimensão do fotógrafo CRIANÇA & PESQUISADOR Dimensão do observador

Fig.6. Dimensões do fotógrafo, do observador e do pesquisador, partilhada por crianças e pesquisadores.

analítica (do ponto de vista metodológico), e portanto pertencente ao território da ciência. Contudo, não podemos deixar de entender este ato como pertencente a uma categoria epistêmica que nasce do encontro com um outro, da escuta do que cada criança tem a nos dizer. E, portanto, a dimensão do pesquisador não é sua exclusivamente, é a dimensão do encontro possível entre um adulto e uma criança.

Já a dimensão do observador sempre foi entendida por nós como uma dimensão relacional, compartilhada por dois sujeitos, afinal de contas,

observar é o que nós, observadores, fazemos ao distinguir na linguagem os diferentes tipos de entidades que trazemos à mão como objetos de nossas descrições, explicações e reflexões no curso de nossa participação nas diferentes conversações em que estamos envolvidos no decorrer de nossas vidas cotidianas, independentemente do domínio operacional em que aconteçam. (Maturana, 2001, p.126).

Assim é que, quando junto com as crianças vemos as fotografias e conversamos sobre elas, podemos mergulhar nas camadas da imagem, buscar detalhes e informações só possíveis de serem apreendidas em função das informações do fotógrafo, construídas no diálogo conosco. Aqui, a imagem é eliciadora de sentido para um outro (o spectator) capaz de ver o que o próprio fotógrafo não viu. Isso porque o ato de rever a fotografia parece provocar (no

operator) uma possibilidade de se produzir sentidos a respeito do que vê. Mas, por outro lado,

a despeito de considerarmos esta área de intersecção, por excelência, como sendo uma dimensão compartilhada, vimos que há nela também uma borda – a marca de uma terceira pessoa que, em alguns casos, interferiu no processo da pesquisa: o outro que fotografou no lugar da criança.

E se esse exercício de distinguir na linguagem da criança, em seu diálogo conosco, suas descrições, explicações e reflexões acerca de sua vida diária, é um ato de observação, entendemos que essa distinção é um ato de produção de sentidos acerca do cotidiano dessas crianças. Observar é, portanto, um ato de linguagem, de interpretação e de sentido.

Notemos ainda que esse espaço de intersecção formado na dimensão do observador pode ser lido como sendo aquele mesmo espaço intersubjetivo da situação comunicativa mínima de Cornejo (2008), ou como o espaço de interpretação do fotográfico, constituído a partir dos três elementos anotados por Barhes (1984) – configurando a dimensão do sentido desta pesquisa (Fig.7). Entendemos ainda que é nessa dimensão dialógica de elaboração de sentidos (a dimensão do encontro) partilhada pela criança e pelo pesquisador no jogo da pesquisa, que se instaurou a possibilidade interpretativa desse estudo.