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Seguindo o pensamento de Ball (2001), o novo paradigma de governo educacional, assente em tecnologias políticas centradas na competitividade económica, tem, por um lado, conduzido ao crescente abandono dos propósitos sociais da educação, por outro lado, tem gerado novas formas de controlo dos professores através de novas práticas de trabalho e, sobretudo, por via da indução de novas subjectividades profissionais. A centralidade da gestão nos processos de re-regulação do Estado

avaliador e a introdução da linguagem tecno-empresarial dos ―recursos humanos‖ e dos

―objectivos de produtividade‖ reconfiguram as instituições educativas, através do desenvolvimento de novas relações e de valores na vida profissional dos professores, construindo-se uma nova cultura de desempenho competitivo que actua para ―transformar e disciplinar as organizações do sector público‖ (Ball, 2001, p. 106). O estabelecimento de novas formas gestionárias de vigilância e de monitorização, como os sistemas de avaliação, a definição de objectivos ou a comparação de resultados, gera, um novo ambiente moral, assente no individualismo competitivo e no instrumentalismo, eliminando-se consequentemente os espaços para a reflexão e para o diálogo. Como alerta este autor,

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a sobrevivência no mercado educativo torna-se a nova base de propósito comum – pragmatismo e auto-interesse, e não mais ética e julgamento profissional, passam a ser as bases para os novos jogos de linguagem organizacional (p. 107).

Esta ―reengenharia cultural‖ do sector público, ao instituir lógicas empresariais competitivas de desempenho como medida da produtividade, não poderá ter como consequência o desgaste das dinâmicas ético-profissionais nas escolas, ao submeter o juízo profissional às exigências da performatividade e ao degradar o compromisso com os valores do serviço público? Como acentua Ball (2002), estas dinâmicas associadas ao desempenho ganham visibilidade através da proliferação de mecanismos formais de controlo:

A base de dados, a reunião de avaliação, a revisão anual, a redacção de relatórios e a candidatura a promoções, inspecções e comparação com pares estão em primeiro plano. Não é tanto, ou não só, uma estrutura de vigilância, mas um fluxo de performatividades tanto contínuas como acidentais (pp. 9-10).

Continuando a seguir a teorização deste autor, o fluxo constante de exigências de mudança, consubstanciado nos discursos da autonomia e da responsabilidade, da qualidade e da eficácia, parece ser fonte de incerteza e instabilidade, sobretudo quando nem sempre é claro o que se espera dos professores (2005). Por isso, a performatividade afectará inclusive dimensões emocionais do trabalho, uma vez que muitos professores, não se reconhecendo contudo em termos identitários nestas abordagens gerencialistas, são forçados a reequacionar as suas práticas, adequando-as às regras geradas de modo exógeno, com vista à concretização de metas organizacionais (2004). Já em estudo anterior (2002), este autor refere que os professores ingleses vivem uma ―esquizofrenia individual‖, lutando por preservar o compromisso ético com os valores sociais da educação. Como também afirmaram Grimmet e Neufeld (1994), essa complexa gestão da impressão externa sobre o seu trabalho coloca em risco a sua autenticidade em relação aos seus valores morais e à sua identidade profissional. Afectada a sua autenticidade, os professores (e também as escolas) tenderão a produzir versões de si para responderem às exigências postuladas pelas tecnologias de performatividade, criando uma ―fachada calculada‖ (Ball, 2002, p.16), uma imagem construída para o exterior. Os que não o fazem, resistem, ou abandonam a profissão. Porém, a energia posta nestas fabricações e na aquisição da informação necessária ao controlo, seja ao nível individual, seja ao nível organizacional, reduz o espaço de investimento no

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desenvolvimento profissional, para fazer melhoramentos e evoluir. Segundo Ball (2005),

é o efeito generalizado da visibilidade e da avaliação que, penetrando na nossa maneira de pensar a respeito da nossa prática, produz a performatividade. Muitas vezes, as exigências de tais sistemas geram práticas inúteis ou até mesmo danosas que, no entanto, satisfazem os requisitos de desempenho (p. 549).

Em análise convergente, Torres Santomé (2006) também considera que a

performatividade, gerando competição entre técnicos cumpridores e disciplinados, tem

consequências emocionais, de mal-estar e de desmobilização subjectiva dos professores relativamente ao compromisso educativo. Mesmo a nível organizacional, a

performatividade parece gerar artificialismos, quando associada à competitividade entre

escolas, ou à manutenção de uma imagem externa favorável da organização. Com efeito, que efectivo papel têm documentos estruturantes, como o Projecto Educativo, o Regulamento Interno, ou mesmo o Projecto Curricular, na acção pedagógica concreta da escola? Estes documentos representam de facto a visão da comunidade educativa, ou serão produto de modelos pré-formatados, adaptados por equipas reduzidas, sem recurso a uma discussão interna alargada, construídos com o único propósito de confirmar hierarquicamente a sua existência, ou apresentar em momentos de prestação de contas? Como verificaram Flores, Day e Viana (2007), ―os documentos existem, mas para serem arquivados (para inspecção e estatísticas) e não para serem postos em prática (diferença entre a ―imagem da escola‖ e a realidade)‖ (p. 28). Deste modo, os documentos de escola que servem de referência para a formulação de objectivos parecem ser, eles próprios, fabricações, não relevando de um planeamento estratégico, colectivo e participado.

Reconfiguração identitária do professor

A identidade profissional do professor vai sendo reconstruída num processo dinâmico de socialização ao longo da experiência profissional. À medida que assume papéis, valores e normas do grupo profissional em que se insere, o indivíduo vai desenvolvendo a sua identidade profissional, na interacção entre os valores profissionais e pessoais e as condições sociais, culturais e institucionais em que trabalha diariamente (Day, 2007). A autonomia, a capacidade de ajuizar de modo autónomo e a capacidade

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crítica são características de uma profissionalidade docente responsável e comprometida com os propósitos sociais e morais do ensino. Segundo Fullan e Hargreaves (2001),

é a aplicação da experiência acumulada, da sabedoria e do conhecimento especializado às circunstâncias específicas e variáveis da prática educativa que define grande parte do profissionalismo dos professores; isto é, a capacidade de estes fazerem juízos discricionários informados no ambiente em constante mudança da sala de aula (p.43).

Contudo, esta identidade associada a uma tradição humanista do ensino, apoiada na crença no valor intrínseco da educação parece ser posta em causa não só pela agenda da performatividade, que pressiona a mudança das subjectividades, das identidades, dos valores, como também por uma visão mais funcional do ensino, ao serviço da competitividade económica, orientada para os resultados académicos e reforçada por dispositivos de controlo indirecto a partir do centro. Através da restrição das condições de trabalho, impõem-se novos limites à autonomia dos professores, reduzindo as possibilidades de decisão colectiva e os espaços de reflexão sobre o trabalho profissional, uma vez que o novo profissionalismo, preconizado pelas recentes reformas, assenta numa identidade individualista e competitiva, submissa às decisões exógenas, que cumpre acriticamente, e orientada por padrões54 de desempenho definidos externamente à profissão (Sachs, 2003).

Este novo profissionalismo, implicando uma abordagem técnico-instrumental da profissão de professor, acarreta riscos de desprofissionalização, perante a definição exógena do currículo e dos padrões de referência, a intensificação do trabalho do professor, ou o incremento de práticas avaliativas que, através da responsabilização, ―disciplinam‖ a acção dos professores. Ao comparar as reformas dos anos 90 em quatro países nórdicos, Calgreen (2002) salienta esta transformação quando afirma que

a reconstrução dos professores transforma profissionais, com referências sólidas e com um código de ética profissional, em técnicos de sala de aula que transmitem e avaliam um currículo que foi desenvolvido por terceiros (p. 120).

Ora, esta reconfiguração da identidade docente, com contornos de

funcionarização dos professores, dado o ―acentuar do fosso que separa os actores e os

54 Standards é um termo sem tradução exacta para o português, que pode significar: critérios, normas, padrões de qualidade. Assim, no contexto deste estudo, assumimos standards como padrões de desempenho, em consonância com o Conselho Científico para a Avaliação do Desempenho, Recomendação nº 3/CCAP/2008.

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decisores‖ (Nóvoa, 1995, p. 21), e de reforço da sua subordinação face ao Estado (Loureiro, 2001), revela-se como um retrocesso na construção da profissão, precisamente quando surgem apelos a uma regulação autónoma interna à profissão, que reforce a autonomia do profissionalismo docente e o poder de intervenção social dos professores (Sanches, 2009; Seiça, 1998).

Com efeito, vários são os autores que se referem ao profissionalismo docente em transição (Carlgren, 2002; Flores, Day & Viana, 2007; Robertson, 1996; Sachs, 2003, contrapondo uma profissionalidade autónoma, intelectual e reflexiva, imbuída de preocupações sociais e morais na sua acção, a uma emergente profissionalidade empresarial, associada ao cumprimento de padrões exógenos, ao sucesso académico medido por testes estandardizados, à aceitação acrítica de reformas centralmente definidas. Alarcão (2001b) defende um professor reflexivo, na senda de Schön (1991), que saiba questionar o contexto e assuma uma maior intervenção nos processos de concepção e organização da escola, enquanto actor social, capaz de gerir responsavelmente a sua própria actuação. Fullan e Hargreaves (2001) salientam a colaboração e o trabalho de equipa como contextos favorecedores de um

profissionalismo interactivo, socialmente empenhado, com incidência nos propósitos

éticos e morais que subjazem à acção dos professores. Por seu turno, Sachs (2003) conceptualiza o profissionalismo activista assente na acção emancipatória, colectiva e colaborativa, em comunidades de prática, com preocupações de equidade e justiça social. O professor activista, envolver-se-ia na transformação futura de escolas democráticas, em ambiente de confiança e respeito mútuo (Sanches, 2004a). Este ethos colaborativo que perpassa nas diversas abordagens colide, no entanto, com o ethos competitivo do profissionalismo empresarial que perpassa no discurso dominante:

O discurso gerencialista fomenta uma identidade empresarial na qual o mercado e as questões da prestação de contas, economia, eficiência e eficácia configuram o modo como os professores, individual e colectivamente, constroem as suas identidades profissionais. Em alternativa, os discursos democráticos, que contrastam com os gerencialistas, sustentam uma identidade profissional activista na qual as culturas colaborativas são parte integrante das práticas de trabalho do professor (Sachs, 2003, p. 134).

A (re)construção emancipatória da identidade docente é, assim, dificultada por paradoxos sobre a natureza da profissão docente que decorrem do discurso político quando serve a mercantilização da educação: apela-se à revalorização da profissão,

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através da participação dos professores na construção do currículo ou na governação da escola, mas verifica-se uma desprofissionalização e uma intensificação do trabalho; reconhece-se que repensar as práticas lectivas é tarefa extremamente exigente, mas são atribuídos cada vez menos recursos à formação docente; estimula-se a autonomia docente, mas aumenta a vigilância política e social, através de processos de prestação de contas (Sachs, 2003). Neste sentido, Lawn (2001) defende que ―as alterações na identidade são manobradas pelo Estado, através do discurso, traduzindo-se num método sofisticado de controlo e numa forma eficaz de gerir a mudança‖ (p.117). Segundo este autor, a reconstrução da identidade profissional dos professores através do discurso, das regulamentações, dos programas de formação é uma preocupação constante da governação, uma vez que estes profissionais, sendo numerosos, são também importantes tecnologias de disseminação das políticas educativas que o Estado pretende implementar.

A reconstrução identitária dos professores promovida pelas políticas gerencialistas induz, porém, uma desprofissionalização que, implicando a perda de capacidades críticas e emancipatórias poderá no futuro comportar riscos para a sustentabilidade de futuras lideranças, sobretudo se for acompanhada, como já se verifica55, da saída massiva de professores mais experientes (Hargreaves, 2005). Tendo desenvolvido identidades mais fortes, estes professores parecem mais resistentes à reconfiguração identitária. Como interpretar, então, a vasta desistência dos professores portugueses mais velhos, face às exigências das últimas reformas educativas? O desencanto provocado nos professores pelas agendas gerencialistas, alerta Day (2007), pode ter efeitos cruciais nas identidades emocionais e intelectuais dos professores, com óbvias consequências no seu desempenho, na sua acção educativa. É que a (re)construção forçada da identidade profissional dos professores, assente na erosão da sua autonomia, pode, paradoxalmente, a longo prazo, ―diminuir a capacidade dos professores para elevar os standards do ensino‖ (p.56). No exacto momento em que o ensino como profissão do conhecimento exige maiores competências críticas e maior empenho dos professores (Hargreaves, 2003), as estratégias de controlo contínuo da eficiência podem induzir a passividade e o conformismo. Considerando que a identidade que perpassa no modelo de avaliação em análise e no discurso oficial que o propõe é a

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Segundo notícia publicada em 20 de Fevereiro de 2010, no Diário de Notícias, citando como fonte a Direcção Geral de Recursos Humanos em Educação, entre 2006 e Fevereiro de 2010, ter-se-ão reformado 17.460 professores no sistema público de educação.

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do novo profissionalismo, técnico e instrumental, as posições dos professores não serão antes de mais reacções à sua reconfiguração forçada em técnicos de ensino, em aplicadores acríticos de orientações centrais, contrariando a sua autonomia profissional?