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Os saberes que marcam o trabalho docente: Pontos de vista em

3 UMA OBSERVAÇÃO, UMA ENTREVISTA E UMA OFICINA: PROPOSTA

3.4 Oficina: Um espaço de produção de narrativas

3.4.2 Os saberes que marcam o trabalho docente: Pontos de vista em

124 Charlot (2009) entende como saberes os conteúdos da consciência, enunciáveis através da linguagem. Na medida em que os sujeitos desta pesquisa enunciam como marcas um conteúdo predominantemente subjetivo onde se inserem suas vivências pessoais – experiências, desejos, “traumas”, potencialidades ou limitações, afetos e valores – estas marcas, passam a desfrutar deste estatuto de saberes e assumem importância para a compreensão da relação do professor com o saber no âmbito desta análise. A este respeito, as professoras seguem comentando: Eu acredito que nós deixamos marcas, nós deixamos marca em cada aluno que passou pela gente. A gente deixa marcas positivas ou negativas que vai até mudando o nosso desejo de ser professor, por exemplo [...] cada professor que passou pela gente não deixou uma marca também? Alguns a gente nem lembra, mas teve outros que deixaram marcas na gente, e eu acredito que é a mesma coisa com os nossos alunos, desde os pequenininhos que estão lá com quatro anos, cinco anos, seis anos. (Professora C)

O que é mais interessante é falar que deixa marcas, né? E é muito interessante a gente fazer essa reflexão [...] As marcas são tão graves que eu fiz o magistério e me deixaram tantas marcas que eu passei muitos anos fora de sala de aula porque eu não me via capaz de ser professora. Não que eu não conseguisse dominar uma turma, ensinar, mas pelas coisas que eu vi que não consegui fazer. Por exemplo, as minhas amigas conseguiam fazer um cartaz perfeito com a letra linda e quem não conseguia era muito desprezado, eu nunca consegui. Então como é que eu vou ser professora? Minha letra é muito feia, então eu fiquei com aquilo na minha cabeça durante anos e anos. [...] porque eu fui muito perseguida pela minha letra e hoje eu vejo que a minha letra não é obstáculo pra eu ir adiante”, entendeu? Que não me faz menor que outra pessoa.” Então a gente tem que pensar bem as colocações que a gente faz pros nossos alunos pra ver se a gente não vai deixar uma marca dessa que vai... A minha demorou dez anos.(Professora E)

Vocês estão falando uma coisa muito séria. (Professora D)

Os saberes experienciais, oriundos da vivência do professor como aluno, são identificados como marcas que emergem e parecem informar o delineamento da ação pedagógica fazendo parecer que as marcas da vida escolar do professor podem ser evidenciadas nos posicionamentos que este assume em sala de aula.

Então eu tento lembrar como era na minha vivência de aluno, o que os professores não fizeram comigo e o que fizeram, mas que não era legal, que constrangia e que eu não devo fazer, assim eu vou mediando e acho que dá certo. (Professora D)

Eu penso assim, às vezes essas marcas são tão profundas que elas agem positivamente e negativamente na gente. Às vezes elas fazem o que a Professora D falou, quando a gente é influenciado negativamente e a gente se dá conta disso a gente decide: “Não, eu não vou fazer de tal forma

125 porque isso pra mim não foi legal”. Mas muitas vezes as marcas são tão profundas que a gente não se dá conta que aquilo foi ruim. Na verdade a gente sabe que foi ruim, a gente não gostou da experiência, mas aquilo tá tão intrínseco na gente, tão arraigado que a gente age da mesma forma. E têm também as marcas positivas, aquilo que fez bem e que a gente quer fazer igual, “Puxa, isso foi tão legal, eu gostei tanto disso, aquele professor, eu admirava aquele professor, a postura dele e eu quero fazer parecido, sei que não vou ser igual, mas eu quero adotar uma postura parecida com a postura que ele tinha”. Então tem o lado positivo, mas essa questão negativa de você não se dar conta e estar fazendo a mesma coisa isso é muito sério... E às vezes você demora a cair em si que você tá fazendo a mesma coisa que fizeram com você, é horrível. [...] A gente tem que se dar conta do que está fazendo. [...] E às vezes a gente tá cobrando isso dos alunos, né? “Nossa, mas que letra feia” do mesmo jeito que a gente passou, sem perceber que aquilo fazia mal pra a gente. (Professora F)

Hoje com esse fato [após relatar um ocorrido na terceira série entre ela e uma colega onde se sentiu injustiçada pela professora] eu tenho um cuidado quando acontece alguma coisa de um aluno com o outro porque às vezes um não sabe falar o que aconteceu e aí você chega lá no outro que bateu e já descasca ele. Então eu vou ver os fatos, ainda levo um tempo pra fazer uma acareação, trago o outro, olho no olho para não ser injusta. Porque gente, eu não gosto desse tipo de injustiça, eu acho que eu fui tão injustiçada nessa parte e marcou, marcou demais em mim. E aí hoje eu procuro não fazer essas injustiças com os meninos, vou atrás, pergunto, escuto, “Ah, lá no futebol fulano me deu um chute”. “Lá no futebol? Estava jogando? Como que foi?” Antes de dar aquela bronca, é melhor conversar, ouvir, porque o professor geralmente faz igual um trator, passa por cima e não quer nem saber não. (Professora B)

O conteúdo apresentado parece caracterizar de forma interessante a dinâmica das “marcas” nos processos subjetivos, não só de alunos, mas também dos professores, como elementos que podem, sim, marcar presença e produzir saberes que se refletem no trabalho pedagógico, pois, conforme Santos:

A subjetividade é um elemento permanente das partes envolvidas [no processo de ensino/aprendizagem]. O pensar, o sentir o atuar constituem uma unidade integrada, cada um deles leva ao outro, não há como separar, há uma interferência mútua.( SANTOS, 2010, p. 35)

A discussão suscitada no bloco anterior, problematizando o “se dar conta” do que acontece em sala de aula mencionado pela Professora F, evidencia as seguintes opiniões:

Eu só penso assim, perceber, não ser um trator e vir aqui derrubando tudo. Entendeu? Eu fico pensando assim, os meus professores mesmo, poxa, essa questão da minha timidez mesmo, eu ganhei notas muito baixas por conta da timidez, por conta de apresentar lá na frente e eu sabia tudo só que na hora de falar eu gaguejava, travava e a professora, se ela tivesse se dado conta disso... Entendeu? Ter essa percepção “Ah, ela sabe, mas ela tá nervosa.” não! Aí ela já dava uma nota baixa pra mim que não consegui falar lá e gaguejei.(Professora B)

Eu acho que tem a ver com reflexão, você não agir no automático, você pensar. Porque muitas vezes a gente não se dá conta, a gente não se

126 percebe no que a gente está fazendo quando a gente vai no impulso e faz no automático e aí quando você vê você já fez. Muitas vezes eu já me peguei desse jeito, quando eu peguei e falei “Vai apagar isso aqui” de um jeito ríspido, aí quando eu terminei eu falei “O quê que eu estou fazendo? Não precisava ter feito dessa forma”. [...] A gente tem que refletir em cada atitude da gente, eu acho que se perceber, se dar conta é essa da reflexão. A reflexão antes da ação. (Professora F)

Perceber que tem outras formas de fazer... (Professora J)

Observa-se que as falas dão ainda maior visibilidade aos saberes ligados à afetividade e ao relacionamento estabelecido entre professor e alunos na relação com o saber, enfatizando o diálogo, o olhar sensível para o aluno, enxergando o sujeito que ali se desenvolve, que se constitui no interior de um espaço de ensino e aprendizagem, aprendizagem que não é apenas cognitiva. Para os professores, “se dar conta” assemelha-se a buscar ações pautadas intencionalmente pela reflexão, levando em consideração outras dimensões para além da dimensão racional.

É possível desenvolver uma aqui uma reflexão sobre o “se dar conta” discutido na oficina, como uma ação que parece se articular a um posicionamento do professor que valoriza o pensar seus próprios pensamentos, pensar sobre sua atuação, sobre seus alunos, sobre sua relação com o saber. Pensar sobre seus próprios paradoxos.

“Dar-se conta” parece também passar pela percepção dos sentidos nos quais o professor está imerso, os sentidos que produz e o produzem no seu cotidiano profissional, entendendo que “algo pode adquirir sentido, perder sentido, mudar de sentido, pois o próprio sujeito evolui, por sua dinâmica própria e por seu confronto com os outros e com o mundo.” (CHARLOT, 2000, p. 57)

Os temas Os saberes do professor e a seu trabalho pedagógico e Os saberes que marcam o trabalho docente discutidos no interior da oficina em análise evidenciam que o trabalho pedagógico, para os professores, constitui-se a partir da articulação de vários saberes entre os saberes teóricos e os saberes experienciais.

Os professores denotam uma percepção ampliada da sala de aula que transcende o espaço físico, a partir da valorização do aluno, com sua trajetória de vida, com seus saberes prévios, com a discussão sobre a realidade apesar das evidentes carências de recursos tecnológicos.

127 São mencionados ainda aspectos da autonomia docente, uma autonomia relativa que reconhece a importância do outro, juntamente com interrogações sobre o poder de decisão do professor quanto aos saberes dos quais é mediador.

Em relação ao tema emergente ficou evidenciado o reconhecimento do professor acerca das marcas de sua trajetória enquanto aluno, produzindo saberes que informam sua prática docente. As marcas afetivas sinalizam para a importância da dimensão subjetiva no processo de formação que será abordado a seguir.

3.4.3 Os saberes do professor e sua formação inicial e continuada: Pontos de