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CAPÍTULO 3 – ENTRE A REGULAÇÃO DO MERCADO E A PRESERVAÇÃO DO ESTADO

2. Os tratados comerciais e a política externa da Doutrina Monroe

2.1. Os sentidos da Doutrina Monroe: entre o mercado, o contrato social e o

imperialismo

Existe uma grande discussão teórica a respeito de quais seriam os destinatários da Doutrina Monroe, ou seja, de quais seriam os governos estrangeiros aos quais as mensagens do discurso se dirigiam especificamente. Alguns autores, seguindo as ideias de Dexter Perkins (Harvard), defendem que a mensagem destinou-se às monarquias da Santa Aliança principalmente, tendo sido uma resposta às suas pretensões expansionistas e

428 O original, eminglês: “(...) Men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain

unalienable Rights, that among these are Life, Liberty, and the Pursuit of Happiness”. Ver: In Congress, July 4,

“recolonizadoras” nas Américas429. Existem também autores, que como E. H. Tatum,

acreditam que a Doutrina Monroe tenha sido uma ofensiva diplomática contra o Império britânico, seja em decorrência do crescimento do sentimento de repulsa aos britânicos após a guerra de 1812, seja por sua aproximação aos processos de independência americanos430. Há, finalmente, autores que identificam exatamente esses processos de independência das

Américas como sendo os principais interlocutores da Doutrina Monroe431.

Todas e cada uma dessas leituras são possíveis por que as mensagens da Doutrina Monroe não contavam com um destinatário específico. O sentido de interdependência da mensagem requeria a máxima exteriorização de seus pressupostos, sobretudo os ligados à proteção ao comércio externo. O discurso de James Monroe “declarava ao mundo” a caracterização de uma política externa que promovia uma reorientação dos sentidos da independência dos Estados Unidos, que passava a se associar cada vez mais à defesa aos princípios da liberdade de comércio e navegação. Em parte, o discurso exaltava a concepão de que proteger o mercado significava proteger a independência. Mas era preciso sublinhar-se nessa declaração a necessidade de um esforço mútuo entre os Estados, tanto na América quanto na Europa, para que a manutenção dessa independência fosse efetiva. Na esteira da política declaratória adotada pelo governo estadunidense desde a montagem do primeiro comitê de política externa na década de 1770, a Doutrina Monroe não foi construída para dirigir-se especificamente a um ou outro governo da Europa ou América, mas a todos eles em conjunto. E essa necessidade de exteriorizar o discurso de Monroe foi o que guiou a atuação de Henry Clay na chefia do Departamento de Estado nos anos subsequentes.

Com relação à aproximação às Américas, o discurso de Monroe reafirmava muitos dos posicionamentos que o próprio Henry Clay defendera no Congresso nos anos anteriores,

principalmente os relativos à proteção à liberdade de comércio e navegação no continente432.

Recorda-se que em 1818, Clay discursara dizendo que os novos governos das Américas, uma vez independentes, deveriam ser “animados por um sentimento americano e guiados por uma política americana”.

À primeira vista, a fala de Clay pode ser interpretada como uma sugestão a criação de um “sistema americano” composto por uma aliança entre os Estados das Américas fundado na

429 PERKINS, Dexter; 1963. 430 TATUM, E.; 1936.

431 WHITAKER, Arthur; 1966. 432 Ibidem. p. 359.

defesa às suas respectivas independências. Uma aliança, que por sua vez, conformaria um bloco político que se oporia às monarquias europeias. Entretanto, a condução dos relacionamentos externos sob a chefia de Clay no Departamento de Estado mostra que a administração estadunidense não esteve interessada na criação de uma aliança multilateral no continente, tampouco na interrupção dos relacionamentos políticos com a Europa. Entre 1825 e 1829, o Departamento de Estado negociou tratados comerciais com pelo menos sete governos estrangeiros, entre eles a Dinamarca, a Prússia, as Cidades Hanseáticas, a Áustria, a Grã-Colômbia, a República da Guatemala, o México e o Império brasileiro. E no continente americano, especificamente, o Departamento de Estado só não concluiu tratados comerciais com o Chile e com o Peru por que o encarregado de negócios responsável pela aproximação, James Cooley, faleceu em Lima em inícios de 1828433.

É notório, portanto, que a expressão “política americana” proferida por Clay merece uma análise mais aprofundada, afinal, a ratificação dos tratados de comércio com algumas das principais monarquias da Europa evidenciam que a condução da política externa estadunidense na administração Quincy Adams não se dirigiu unicamente aos governos americanos, tendo mantido firmes contatos político-diplomáticos com o continente europeu.

Muitos autores apresentam o imperialismo do governo dos Estados Unidos como uma resposta a essa aparente contradição434. Por meio desse conceito, a expressão de Clay – “política americana” – adquire um significado referente à política externa neutral adotada pelo Departamento de Estado propriamente. Nesse caso, a política externa neutral seria interpretada como sendo uma campanha genuína do governo estadunidense com destino às Américas, que aos poucos teria adquirido adeptos entre os novos Estados surgidos no continente na década de 1820. Nessa direção, há um hipotético objetivo imperialista por parte do governo dos Estados Unidos sobre o continente435, fundamentado, por exemplo, na tentativa de se desafiar a preponderância britânica nas Américas, como sugerem Tatum e Wright436, ou mesmo na de se defender os investimentos dos cidadãos estadunidenses na região, como nos estudos de Conniff sobre as construções de canais no istmo do Panamá437. Por essa interpretação, para Clay, “a política americana pela qual se guiariam os novos Estados americanos”, portanto, era exatamente a tomada do posiconamento neutral

433 ADAMS, Charles; 1875. p. 17.

434 MAGDOFF, Harry; 1979. pp. 91-93. Ver também: SCHILLING, Voltaire; 1984. pp. 12-19. 435 FERRERAS, Norberto; 2013.

436 TATUM, E; 1936. WRIGHT, Antônia; 1978. 437 CONNIFF, Michael; 1991.

crescentemente defendido e adotado pelo governo dos Estados Unidos, que lideraria esse “sistema americano” cuja política externa interdependente oporia as Américas à Europa.

É uma interpretação bastante plausível, sobretudo quando se relaciona a aproximação do governo estadunidense ao continente com a preponderância do Império britânico nas Américas. Por outro lado, tal interpretação apresenta suas primeiras imprecisões justamente ao se considerar que a administração Quincy Adams empenhou-se igualmente à negociação de tratados de comércio com a Europa438. E raramente se explica essa ofensiva político- diplomática em direção às monarquias europeias como também sendo parte das pretensões imperialistas do governo estadunidense, o que evidencia uma fissura na interpretação.

Isso não significa que o governo dos Estados Unidos não tenha tido objetivos imperialistas sobre as Américas central e do sul durante sua aproximação política na década de 1820. Mas parece mais frutífero ao estudo dos tratados de comércio, especificamente, a compreensão de que os objetivos imperialistas fizessem parte de um processo sociológico

maior, originalmente proposto por Pierre Rosanvallon439.

Como explica Rosanvallon em seus trabalhos sobre a expansão do liberalismo econômico no Ocidente, as defesas à regulação do mercado foram demandas sociais que mantiveram em inícios dos Oitocentos uma profunda relação com o propósito pelo qual se buscava abolir as interferências políticas sobre as dinâmicas da sociedade, de forma que os indivíduos deixariam de obedecer à ordem natural para observarem ordenamentos baseados em princípios e interpretações liberais. Segundo o autor, a regulação do mercado passou a representar às sociedades modernas a possibilidade de desapaixonar – dépassioner – as relações de poder, neutralizando a violência representada pelas guerras e os conflitos políticos entre Estados440. Para o autor:

O liberalismo acompanha a entrada das sociedades modernas em uma nova era da representação do elo social, fundado na utilidade e na igualdade, e não na existência de uma totalidade preexistente. Contra o universo rousseauniano do contrato, ele é a primavera de uma crítica ao comando e à vontade. O Liberalismo faz da despersonalização do mundo, as condições ao progresso e à liberdade.441 (...) A utopia econômica do século XVIII (...) participou

438 Diversas legações diplomáticas com objetivos de concluir tratados de comércio foram enviadas pela

administração Quincy Adams à Europa, especialmente ao Império britânico, ao francês, ao austríaco, ao russo, entre outros, tendo algumas, como a legação que se destinou à monarquia prussiana, obtido grande êxito em suas missões.

439 ROSANVALLON, Pierre; 1989. 440 Ibidem. p. 4.

441 O original, emfrancês: “Le liberalism accompagnel’entréedêssociétésmodernesdansune nouvelle ère de La

représentation du lien social, fondéesurl’utilitéetl’égalité et non plus l’existenced’unetotalitépréexistante. Contrel’universrousseauisteducontrat, il est le resort d’une critique ducommandement et de lavolonté. Le

de uma mesma representação da sociedade fundada em um ideal de abolição da política.442 (Tradução minha).

Desapaixonar as relações de poder: esse era o sentido fundamental da negociação de um tratado de amizade, comércio e navegação em inícios do século XIX, ao menos essa era a mensagem que se almejava irradiar à sociedade. Lembra-se que os tratados comerciais já não eram mais apenas pactos entre soberanos. Ao contrário, eles deviam simbolizar aos olhos dos variados grupos sócio-políticos uma limitação ao próprio poder político existente nas relações entre os Estados, fossem repúblicas ou monarquias. Os acordos visavam impedir que as instabilidades políticas prejudicassem as dinâmicas do mercado. E nesse sentido, nos Estados Unidos os tratados de comércio simbolizaram uma exteriorização político-jurídica da Doutrina Monroe, uma vez que seus acordos buscavam afirmar a outros governos os principais pressupostos da Doutrina Monroe.

Os tratados de amizade, comércio e navegação negociados pelo Departamento de Estado entre 1825 e 1829 uniam os princípios da interdependência e da liberdade de comércio e navegação em dispositivos jurídicos que permitiam à administração estadunidense contornar situações políticas desfavoráveis aos interesses de seus negociantes, tanto na América quanto na Europa. Em conjunto, os tratados compunham a efetivação político-jurídica da Doutrina Monroe, transformando o discurso do Presidente em uma política externa oficial da administração. E o tratado de comércio com o Império brasileiro de 1829 fez parte desse processo, podendo ter representado, inclusive, algo bastante similar ao projeto imperial de D. Pedro I frente a suas relações com o Império britânico – isso será retomado mais adiante neste capítulo.

Os elementos que se referiam à negociação de tratados de comércio com as Américas podem ter representado mais que um objetivo imperialista do governo dos Estados Unidos no continente, podendo terem sido indícios de um processo bem mais ampliado envolto ao mercado, em desenvolvimento não só nos Estados Unidos, mas em todo o Ocidente, inclusive no Brasil. Nesse quesito, o tratado de 1829 pode ser um documento importante para a compreensão desse processo maior sugerido por Rosanvallon com relação ao caso específico das conexões político-mercantis entre os Estados Unidos e o Brasil.

liberalism fait enquelque sorte de ladépersonnalisationdu monde lês conditionsduprogès et de laliberté”. Ver:

ROSANVALLON, Pierre; 1989. p. 7.

442 O original, em francês: “L’utopieéconomiquelibéraledu XVIII siecle (...) participentparadoxalement d’une

mêmereprésentation de lasociétéfondéesurun ideal d’abolition de la politique.”Ver: ROSANVALLON, Pierre;

Para que uma compreensão mais aprofundada do texto dos acordos do tratado seja possível, no entanto, é antes necessária a compreensão de quais foram os principais desafios enfrentados pelo Departamento de Estado durante a Presidência de John Quincy Adams nos Estados Unidos. E para isso foi extremamente importante a análise do diário escrito pelo próprio Presidente John Quincy Adams443. Essa fonte possibilitou um melhor entendimento de como a Doutrina Monroe manteve-se como o carro-chefe da política externa dos Estados Unidos depois de 1825 e, em especial, do seu processo de efetivação político-jurídica por via dos tratados comerciais.

Em seu diário John Quincy Adams relatava boa parte das atividades que desenvolvia na administração, entre elas as diversas conferências e encontros que ele tinha com Secretários do governo, parlamentares, diplomatas, negociantes, editores de jornais, amigos, etc. Não raramente, o Presidente também escrevia no diário suas impressões e opiniões a respeito dos variados assuntos que chegavam até ele, inclusive os que se referiam aos relacionamentos externos dos Estados Unidos. Isso permitiu uma pequena listagem dos principais eixos que guiaram a política externa do Departamento de Estado durante a atuação de Henry Clay em sua chefia. E, conseqüente, permitiu também uma maior clareza a respeito dos significados da maior parte dos acordos comerciais do tratado de 1829 com a monarquia brasileira, que como visto, estiveram longe de terem sido os únicos negociados pelo Departamento de Estado nesse período.