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Os Tipos de Interação Pessoal em Sêneca

No documento Um estudo das obras de Sêneca (páginas 122-125)

Quando estudamos as interações no Satyricon, propusemos uma divisão em quatro tipos: senhor-escravo; patrono-cliente; protetor-protegido; amigo-amigo. Essa qualificação detalhada foi possível graças às características da fonte estudada então. Petrônio nos dava todas as condições para fazê-lo: tínhamos personagens individualizadas que eram caracterizadas pelo autor e que interagiam entre si. Naquele caso, portanto, era possível mapear detalhadamente essas interações.

No caso do estudo de Sêneca, o quadro é outro. Esse autor trata de interações de forma genérica, sem se prender a casos particulares. Mesmo assim, ele nos traz algumas indicações conforme a tipologia que vimos caracterizada em Petrônio. Assim, Sêneca mostra-nos, por exemplo, que há interações que podemos classificar como aquelas entre senhores e escravos, protetores e protegidos, patronos e clientes e entre amigos.

No que se refere aos amigos, Sêneca destaca que esse termo é de uso corrente e nem sempre designa uma relação tal qual a conceituamos quando tratamos dos instrumentos analíticos. Ele recomenda a Lucílio que distingua as verdadeiras amizades (uerae amicitiae)1

não deixando confundir essa relação com aquela que tem com alguém a quem trata genericamente de amigo (illo quasi publico usus es)2

. Ou seja, há um uso permissivo do conceito, que pode servir tanto como forma de tratamento quanto designador de uma relação.

Ainda no campo das relações de amizade, Sêneca trata das amizades verdadeiras e daquelas que são mais comuns, as falsas amizades, motivadas pelo oportunismo, típicas dos aduladores3

.

1 Epistulae Morales, III, 2. 2 Idem, III, 1.

Tratemos inicialmente da amizade ideal. Ela é permanente4

e desinteressada. Além disso, o amigo verdadeiro é indispensável e confiável5

, gerando garantias de bem-estar para ambas as partes6

. Sêneca destaca que um amigo é mais importante do que um filho. Recriminando Lucílio, escreve:

Tanta covardia tu mostras pela morte do teu filho? Que farias se tivesse perdido um amigo? [...] Mesmo que tivesses sofrido a perda de um amigo (o que seria o máximo dos infortúnios), mesmo assim devias aplicar toda a tua energia em mostrar-te mais alegre por o ter possuído do que triste por o ter perdido7

.

Contudo, há os falsos amigos. Estes que só querem a amizade por interesse próprio, sem estabelecer a comunhão de interesses que Sêneca preconizava para a verdadeira amizade. Sêneca destaca que: “amizades desse tipo chama-se-lhes correntemente de ‘oportunistas’; alguém que seja tomado por motivo de sua utilidade deixará de agradar quando deixar de ser útil”8

.

Ainda que Sêneca procure distinguir as amizades efetivas daquelas que apenas recebem genericamente esse nome e, ainda mais, destaque a diferença entre as amizades permanentes daquelas que nascem com base no oportunismo para logo deixarem de existir, ele mesmo trata, na maioria das vezes, da amizade sem designá-las mais claramente como tipos9

. Isso não surpreende à medida que o objetivo de Sêneca, obviamente, não era compor tratados sociológicos. Desse modo, por vezes ele afirma que

4 Idem, III, 2 e CXIX, 4.

5 De Tranquilitate Animi, VII, 1. 6 Epistulae Morales, CXX, 2.

7Idem, XCIX, 2-3. É verdade – e isso precisa ser destacado – que se trata de um filho que, ao morrer,

conhecia mais a ama do que o pai”. Não se deve recorrer a comparações anacrônicas, pressupondo que o que é um filho em uma família aristocrática é o mesmo que um filho em outras famílias em outros momentos históricos e ambientes sociais. Contudo, parece claro que o nosso argumento de que a relação de amizade era o que havia de mais importante na visão de Sêneca não se perde por conta disso. Para outra referência, cf. CVII, 1-2.

8 Idem, IX, 9.

9 Ainda que assuma que, na prática, é sempre muito difícil perceber que se está frente a um adulador e não

frente a um verdadeiro amigo. Ele destaca que “é em casos como esses que corremos o risco de cair em erro” (Epistulae Morales, XLV, 7)

escravos10

e clientes são amigos11

. É claro que ele não confunde essas categorias, mas utiliza-se delas com finalidade retórica, procurando dar consistência a argumentos que visavam, no mais das vezes, a persuadir seu leitor a aderir a uma postura filosófica. Assim, a amizade é muitas vezes utilizada como designação genérica para a relação pessoal entre dois homens. É nesse sentido que ele afirmará que “os clientes de outro tempo buscavam a amizade. Hoje só buscam o proveito!”12

Em geral, Sêneca tratará das relações de clientela quando examina as muitas relações pessoais que as pessoas importantes tinham com uma multidão de indivíduos ou das interações menos frequentes. Como exemplo do primeiro caso, temos a seguinte passagem:

terás muitos companheiros de mesa, cujos nomes o escravo escolherá na lista dos clientes que vão te saudar. É um erro, porém, procurar os amigos no átrio e colocá-los à prova na sala dos banquetes!13

A segunda ocorrência pode ser inferida da seguinte passagem:

não existe o mínimo fundamento para te deixares persuadir de que alguém é feliz pelo fato de viver rodeado de clientes; os clientes não buscam nele senão o mesmo que buscam num lago: beber até fartar e sujar a água14

.

A relação de proteção é ainda menos apresentada como tal por Sêneca. Ele apenas a indica em algumas passagens como um tipo mais claramente definido. Na maioria das vezes ela aparece sob o rótulo da amizade. Ainda assim, em Hercules Oetaeus, Sêneca defenderá a ideia de que a ambição dos homens cerca os reis daqueles que procuram sua proteção. Mas a mesma ambição pode movê-los a atacá-lo se isso parecer mais

10 O melhor exemplo é o início da Carta 47: ‘São escravos.’ Mas também amigos humildes. (Epistulae

Morales, XLVII, 1.)

11 Trata também da relação entre deuses e homens, que são claramente desiguais, como se fossem amigos.

De Prouidentia, I, 5.

12 Epistulae Morales, XIX, 4. 13 Idem, XIX, 11.

vantajoso15

. Ou seja, a proteção serve para promover aqueles que, inicialmente, estariam em uma situação de inferioridade. Mas, depois de promovidos, por não terem com os reis uma verdadeira “amizade”, passam do campo dos aliados para o dos adversários, procurando suplantá-los. Essa relação, que serviria para produzir amigos confiáveis, pode acabar gerando temíveis inimigos, inimigos terrivelmente próximos. Certamente os assassinatos de imperadores que Sêneca conheceu ao longo de sua vida o ajudaram a compor este quadro.

Ainda que Sêneca não dê indicações para abordarmos esses tipos de interação com mais detalhe, ele deixa claro que essas relações, mesmo com todos os limites que ele critica, acabam por gerar uma comunhão de interesses entre os que se ligam por esses vínculos. Isso pode acarretar tanto benefícios quanto desgraças16

. Seja por se ter uma inspiração oportunista ou verdadeira, como qualifica Sêneca, fica claro que os indivíduos criavam vínculos entre si e conformavam grupos de interesse com base nessas “amizades”.

À primeira vista, essa abordagem mais genérica que Sêneca apresenta das interações poderia nos levar a pensar que a análise das obras desse autor seria muito menos profícua do que a efetuada para Petrônio. Não nos parece que seja isso que ocorra. Vemos uma complementariedade analítica unindo esses dois universos documentais. Se Petrônio nos apresenta o nível micro, permitindo distinguir melhor os tipos de interação, Sêneca nos mostra a faceta macro dessas mesmas interações, permitindo investigar melhor a formação de grupos sociais por meio das interações pessoais e a relação que esses guardam com os níveis sistêmicos impostos pelo Estado e pelo mercado. É essa possibilidade que passaremos a examinar.

No documento Um estudo das obras de Sêneca (páginas 122-125)