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Os valores “autênticos” e a embalagem dos discursos: As melhores empresas para

3.3 OS “VALORES” PODEM SER ÚTEIS E DESCARTÁVEIS

3.3.2 Os valores “autênticos” e a embalagem dos discursos: As melhores empresas para

Observa-se que os funcionários podem estar sendo vistos como sujeitos com pouca capacidade de escolher, decidir e até mesmo de pensar. Os gerentes recebem prontas, diariamente, novas identidades que já vêm com a descrição das atitudes ideais e aceitas para que se tornem autênticos praticantes dos valores da empresa. Conforme Cuche:

para definir a identidade de um grupo, o importante não é inventariar seus traços culturais distintivos, mas localizar aqueles que são utilizados pelos membros do grupo para afirmar e manter a sua distinção cultural. Uma identidade diferenciada resulta unicamente das interações entre os grupos e os procedimentos de diferenciação que eles utilizam em suas relações (2002, p. 182).

Poder-se-ia afirmar que ao “programar” o surgimento de novas identidades estimuladas e constituídas através da conquista de prêmios ou da participação em competições internas, as empresas poderiam estar deixando de cativar o indivíduo que realmente desejam, ou seja, aquele que se constitui através do que ocorre nas suas interações e trocas recorrentes dentro do ambiente de trabalho. Estariam “sem aproveitar” traços fundamentais que constituiriam o sujeito, como a sua necessidade de ajudar e de ser ajudado, além da sua capacidade de cooperar de forma voluntária e autêntica.

Vendo-o como alguém que, se não for estimulado emocionalmente, não irá aderir ao que está sendo determinado no momento, as empresas têm-se utilizado dessas “ferramentas de sedução” como forma de fazer com que esse “consumidor interno” se sensibilize com o “você faz parte da nossa história”, “nossa empresa pertence a você”, “pessoas são o nosso maior patrimônio”, “empresas felizes são mais lucrativas”, percebidos como alguns dos slogans utilizados pelo ideário empresarial, atualmente.

Constata-se nas empresas pesquisadas que existe uma retórica de “seriedade e ética” que precisaria ser confirmada pela empresa através do “exemplo das lideranças”, o que significaria mais uma competência atribuída aos gerentes.

Para fazer parte do guia que seleciona as 150 melhores empresas para trabalhar no Brasil17, sob a ótica dos clientes internos, uma das empresas

pesquisadas distribuiu para todos, gerentes e funcionários, um questionário preparatório para a participação no concurso. A intenção era ver “como estava o clima antes de se expor”. A empresa prometeu total sigilo nas respostas que poderiam ser “sim”, “não”, “às vezes”, “somente”, “em último caso” ou “em parte”. As perguntas eram, entre outras:

1. O líder de sua área tem feito reuniões com a equipe para repassar informações corporativas (da empresa) e locais (das lojas)?

2. Em sua opinião o líder da sua loja pode ser considerado um “agente de comunicação” da empresa?

3. Quando necessita de uma informação e não a encontra em um dos canais de comunicação da empresa, você costuma procurar o seu líder e perguntar a ele?

4. Em sua opinião, a empresa prepara os seus líderes para que repassem informações para as equipes?

5. Cite os momentos nos quais o seu líder costuma conversar com a sua equipe.

Simultaneamente, o mesmo questionário foi entregue aos gerentes, a fim de checar se as informações eram coerentes. As perguntas foram adaptadas, mas possuíam a mesma intenção:

1. Você tem feito reuniões com a sua equipe para repassar informações? 2. Você se considera um “agente de comunicação da empresa”?

3. Quando necessitam de uma informação e não a encontram em um dos canais de comunicação da empresa, as pessoas da sua equipe costumam procurá- lo e fazer a pergunta para você?

17 Pesquisa feita sobre o ambiente de trabalho e as práticas de Recursos Humanos das empresas

brasileiras, promovida pelas revistas VOCÊ S/A-EXAME (2007, p. 16). Em 2007 inscreveram-se 491 empresas e foram processados 123 445 questionários. Além de avaliação no papel, também é feita uma verificação in loco do que acontece nas companhias pré-qualificadas.

4. Você se sente preparado e instrumentalizado pela empresa para repassar informações para a sua equipe?

5. Cite os momentos nos quais você costuma conversar com a sua equipe. A empresa poderia comparar as respostas a fim de identificar o que era comum entre o que estava sendo dito pelos funcionários e pelos gerentes. Uma estratégia que poderia gerar desconfiança, mas que foi “aceita pelos funcionários pelo fato de poderem dizer o que pensam e serem ouvidos”, constatou um informante. O cabeçalho orientava: “Responda com sinceridade as perguntas e ajude a melhorar a comunicação da nossa empresa com você, com sua equipe e com o seu líder”.

A empresa reuniria os gerentes para divulgar os resultados. Com aqueles cujas respostas “não fechavam” com a respectiva equipe, a empresa através da área de Recursos Humanos, faria reuniões individuais, o que foi considerado muito positivo, “pois não foram expostos publicamente, o que antes era comum”, conforme um informante. Essa demonstração de respeito permitiu que os gerentes discutissem as respostas com as suas equipes, o que reforçou para os funcionários a intenção da empresa em tratar o assunto com ética e seriedade.

Mesmo se tratando de uma estratégia para participar do ranking das 150 melhores empresas para trabalhar no Brasil, o questionário abriu espaço para um novo tipo de conversa entre os gerentes e suas equipes, aumentando, conforme foi percebido, a expectativa de muitos funcionários quanto ao que a empresa faria com os resultados. No Guia das “150 melhores”, entre as 53 companhias inscritas que possuem mais de 1500 funcionários, os pontos negativos apontados pelos entrevistados tem a ver com “dificuldades da gestão”. Esses pontos foram observados pelos jornalistas que efetuaram as entrevistas nas próprias empresas e os principais problemas identificados em 2007 são:

Não realizar uma avaliação formal de desempenho.18 Há chefias intransigentes e centralizadoras.19

O programa de voluntariado mobiliza apenas um grupo de colaboradores que se sente abandonado.20

Os gerentes se sentem pressionados pelas demandas resultantes da expansão dos negócios.21

18 Bradesco, Copacol (63.065 e 4.590 funcionários). 19 Cargill (6.183 funcionários).

20 Case New Holland (1.998 funcionários). 21 CPFL Energia (5.723 funcionários).

Como a avaliação fica a cargo de cada gestor, alguns funcionários dizem não receber feedback.22

Falta de equilíbrio entre vida pessoal e profissional: tem gente trabalhando cerca de 14 horas por dia.23

Funcionários não entendem as métricas que definem a participação nos lucros.24

Não existem programas voltados para a qualidade de vida do trabalhador, RH diz que o pessoal é muito jovem para isso.25

Não há convênio médico, avaliação de desempenho e feedback formal para todos os funcionários.26

Ausência de auxílio-educação e diferença entre os benefícios dos atendentes e dos gestores.27

A concessão de bolsas foi suspensa, atingindo até mesmo quem já estava com curso em andamento.28

O grande desequilíbrio entre trabalho e vida pessoal. Os processos decisórios são confusos e têm provocado retrabalho.29

A estrutura é muito enxuta, o que sobrecarrega o pessoal. É preciso também padronizar os benefícios.30

O pessoal reclama de sobrecarga de trabalho e diz que as metas costumam ser superestimadas.31

A sobrecarga de trabalho incomoda os funcionários. A qualidade de vida da maior parte do time tem andado em segundo plano.32

Percebe-se que estimulados pelos planos de saúde, pelos benefícios de maneira geral e pela participação nos lucros os funcionários se submeteriam a um trabalho estafante, sem tempo para dedicar a si mesmo e à família, podendo estar convencidos de que essa é a única lógica do trabalho. A avaliação dessa pesquisa confere pontuação ao Índice de Qualidade do Ambiente de Trabalho (IQAT), através das notas dos funcionários, ao Índice de Qualidade na Gestão de Pessoas (IQGP), com a nota da empresa e a nota final refere-se ao Índice de Felicidade no Trabalho. (IFT).

Entre algumas das empresas pesquisadas nota-se que há o desejo de participar dessa listagem das “melhores” e, ao mesmo tempo, há um receio de não conseguir a pontuação mínima. As empresas estariam criando estratégias de sedução e de comunicação para serem “louvadas” pelos seus funcionários, com o propósito de se capacitarem para competir.

22 Dow Brasil (1.933 funcionários). 23 GE do Brasil (6.743 funcionários). 24 HP Brasil (1.623 funcionários). 25 Lojas Renner (8.570 funcionários). 26 Marisol Nordeste (1.581 funcionários). 27 McDonald’s (29.319 funcionários). 28 Móveis Gazin (2.310 funcionários). 29 Natura (4.544 funcionários). 30 Pepsico (6.966 funcionários). 31 Souza Cruz (6.387 funcionários). 32 Unilever Brasil (12.167 funcionários).

Observou-se que estes “programas de comunicação” internos, que colocariam novas roupagens em antigos discursos, poderiam estar servindo de elixir para que a sobrecarga de trabalho possa ser diluída através de eventos, prêmios, competições, festas e outras ações que fariam parte do cotidiano das empresas, que necessitam identificar fatos para celebrar.

3.4 A REPRODUÇÃO E O SIGNIFICADO DE ALGUNS DISCURSOS NA PRÁTICA: