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Os Ventos das Transformações: Novos Percursos

Capítulo 5. RELAÇÕES ENTRE A BAIA, A CIDADE DO SALVADOR E O

5.4 Os Ventos das Transformações: Novos Percursos

A cidade de Salvador foi uma das muitas “cidades-capitais” que nasceram “luminosas” como as conceitua Lefebvre (2000), pois sua existência estava atrelada as possibilidades de domínio e riqueza para seus idealizadores. As demais vilas do Recôncavo também abrigavam sua luminosidade, haja vista que a riqueza das fazendas de açúcar, tabaco, café, algodão propiciou a existência de uma elite rural, que também habitava a capital Salvador. Lefebvre ajuda a refletir sobre este processo urbano:

No sistema urbano que procuramos analisar se exerce a ação desses conflitos específicos: entre o valor de uso e valor de troca, entre mobilização da riqueza (em dinheiro, em papel) e o investimento improdutivo na cidade, entre a acumulação de capital e sua dilapidação nas festas, entre a extensão do território dominado e as exigências de uma organização severa desse território em torno da cidade dominada (LEFEBVRE, 2000, p. 06).

A luminosidade do Recôncavo baiano pode ser percebida até o presente com os casarios, igrejas barrocas, conventos, artes móveis, grandes obras como a ponte em ferro fundido instalada entre as cidades de Cachoeira do Paraguaçu e São Félix, no período do Segundo Reinado, e outros fragmentos de riqueza de demais cidades daquela região. Além é claro da arquitetura, monumentos, teatro, festas religiosas e populares da capital Salvador.

Entretanto, no final do século XIX a praga no açúcar, a concorrência do açúcar no Caribe e, posteriormente, com a implantação das estradas de rodagem, trouxe a quebra do sistema açucareiro, e com isto inicia-se um processo de decadência desta região. Ressalta-se que as famílias dos produtores muitas vezes deixaram tudo, mesmo seus empregados e escravizados, e partiram para morar na cidade do Salvador. Azevedo (2011) nos ajuda a compreender este processo:

No final do século XIX, a agroindústria do açúcar, que sempre viveu altos e baixos, devido ao protecionismo e à concorrência internacional, recebe seu tiro de misericórdia devido a uma praga e ao agravamento da concorrência do açúcar do Caribe. Nem a criação do Imperial Instituto Baiano de Agricultura (1877), em São Francisco do Conde, e dos engenhos centrais estimulados pelo Governo Imperial, como o Bom Jardim (1880), em Santo Amaro, com tecnologia industrial, contornariam a crise da agroindústria de exportação (AZEVEDO, 2011, p. 210).

Neste processo de ganhos para alguns, outros milhares ficaram a margem do processo econômico, onde o valor de uso foi emparedado pelo valor de troca, que deixava a margem tudo aquilo que não era lucro, cidades, homens, mulheres, crianças, presente e futuros esquecidos.

Com o processo capitalista de exclusão, os esquecidos continuaram suas vidas, insistiram com suas formas de comércio, transgredindo as regras, utilizando das micro- fissuras e rugosidades do sistema capitalista para sobreviver. Lefebvre (1973) nos revela que “[...] a posição entre o valor de uso (a cidade e a vida urbana, o tempo urbano) e o valor de troca (os espaços comprados e vendidos, o consumo dos produtos, dos bens, dos lugares, e dos signos) surgirá em plena luz” (LEFEBVRE, 1973, p. 27).

Destas fissuras e rugosidades no presente, pode-se contatar que os espaços possibilitam, ainda que de forma mínima, a sobrevivência das economias locais. É o caso da permanêcia da Feira de São Joaquim, que substitui a Feira de Água de Meninos e abriga ainda os “homens lentos”, aqueles alijados do poder capitalista. Fato que, também ocorre com a Rampa do Mercado Modelo, que após o incêndio há 102 anos, deslocou este mercado para um sítio próximo, mas em certa medida longe da margem do mar, modificando as relações sociais, culturais e econômicas das populações provenientes da BTS.

Ainda refletindo sobre as feiras locais, que no passado eram as únicas formas de integração dos produtos provenientes do Recôncavo, para o comércio na grande capital, hoje ainda continua a abrigar os excluídos, que envia por meios de transporte rodoviário ou pelos saveiros “É da Vida”, “15 de Agosto”, “Sombra da Lua”, suas produções agricolas, que não conseguem competir com os grandes mercados modernos e transnacionais, mas que ainda

permitem comercializar seus produtos para continuar acreditando nas possibilidades de sobrevivência.

Assim, os espaços vividos, concebidos e percebidos da capital Salvador, no tempo- espaço, estão imbricados ou forçosamente integrados com a Baía de Todos os Santos, que integra as cidades esquecidas, empobrecidas e subutilizadas do Recôncavo. Neste contexto forças, que muitas vezes permanecem nos bastidores, manipulam vidas. Lefebvre (1991) nos traz a seguinte contribuição: “forças muito poderosas tendem a destruir a cidade. Um certo urbanismo, à nossa frente, projeta para a realidade a ideologia de uma prática que visa à morte da cidade” (LEFEBVRE, 1991, p. 100-101).

Das populações do Recôncavo banhadas pela Baía de Todos os Santos enxergamos as possibilidades de resistência, que envolve e revela o projeto de uma capital, que inicia com um planejamento arquitetônico colonial português, com seus momentos de glória, disputas e esquecimento.

Tanto em Salvador como nas cidades do Recôncavo, os espaços sobrevivem. Homens e mulheres são forçados a viverem nas fissuras do sistema econômico vigente, que ao mesmo tempo lhes enfraquecem, mas também lhes possibilitam resistência para superar as tormentas. Aspecto que, nos faz chegar ao que Lefebvre compreende como o direito à cidade, e explicita:

O Direito à cidade se manifesta como forma superior dos direitos: direito a liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar. O direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade) estão implicados no direito à cidade (LEFEBVRE, 1968, p. 135).

Logo, consideramos que desde a criação da Cidade de São Salvador o sistema capitalista implantado trouxe impactos violentos aos seus habitantes, o que envolve o “habitar e o habitat”. Tudo foi modificado, utilizado, e muitas vezes esgotado para dar abertura às novas intervenções, onde os grupos privilegiados eram sempre os mesmos. Assim, trazer à tona reflexões sobre as relações de força entre Salvador, a Baía de Todos os Santos e o Recôncavo consiste em um exercício para constatar as perdas de capital simbólico, econômico, social e cultural que correram nestes cinco séculos.

Constata-se que, para grande maioria dos cidadãos, que foram aleijados dos processos econômicos, os mesmos convivem esquecidos, buscando a todo tempo recriar formas de sobrevivência para “solucionar” seus particulares problemas. Percebe-se que surgem soluções práticas para casos específicos, nos sítios dos habitantes do Recôncavo, pessoas que ainda conseguem bem querer suas terras natais.

Neste contexto, temos uma nostálgica “Velha Bahia” e sua simbologia, signos, personagens lendários convivendo e em contradição com a “Moderna Bahia”, veloz e egocêntrica, liderada por empresários que apenas enxergam o valor de troca, o lucro sem responsabilidade, que quebra possibilidades e arrasta graves problemas sociais. Bauman (2005), nos chama atenção para este processo que envolve nossa identidade em um mundo veloz, que a todo tempo nos instiga a compreendê-lo para continuarmos existindo neste:

É nisso que nós, habitantes do líquido mundo moderno, somos diferentes. Buscamos, construímos e mantemos as referências comunais de nossa identidade em movimento - lutando para nos juntarmos aos grupos igualmente móveis e velozes que procuramos, construímos e tentamos manter vivos por um momento, mas não por muito tempo (BAUMAN, 2005, p.32).

Assim, concluímos que, caminhamos sem saber de que lado os “homens rápidos ou velozes” a depender de suas vontades, nos manipulam. Sendo urgente reconhecer seus projetos para os espaços urbanos entre Salvador, a Baía e o Recôncavo. Apenas dessa forma poderemos enxergar as respostas necessárias, em tempo apropriado, para amenizar o fosso entre direitos e deveres no século XXI.