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3. A LEI FEDERAL Nº 9.474/1997 E O MODELO DE PROTEÇÃO NACIONAL AO REFÚGIO

3.3 A OUTRA FACE DO PROCESSO NACIONAL DE DETERMINAÇÃO DO STATUS DE

As Organizações da Sociedade Civil desenvolvem papel fundamental no acolhimento aos solicitantes de refúgio no país. Além de possuir espaço com direito a voz e voto na composição do CONARE e integrar o processo de determinação nacional, essas instituições

234 BRASIL, Ministério da Justiça e Segurança Pública. Atas da 128ª e 129ª Reuniões Ordinárias do Comitê

Nacional para Refugiados – CONARE. Disponível em: http://www.justica.gov.br/seus-direitos/refugio/anexos.

atuam ainda na implementação das soluções duradouras no país, bem como auxiliam diretamente tanto solicitantes de refúgio quanto refugiados já reconhecidos, atuando diretamente na inserção dessas pessoas no país. Outrossim, atuam na implementação de políticas públicas e na elaboração de diagnósticos destinados à informar e aprimorar o processo de solicitação nacional de refúgio.235A atuação dessas organizações fundamenta-se na noção de solidariedade horizontal, a qual consiste nos deveres de solidariedade da sociedade civil por meio da colaboração econômica desinteressada dos indivíduos e grupos sociais, espontaneamente ou por expressa solicitação do Estado, visando a garantia de satisfação de direitos e auxiliando Estado diante das dificuldades e/ou incapacidades apresentadas.236

Em suma, as entidades que atuam no país, bem como possuem espaço no âmbito do CONARE nos termos do art. 14, VII da Lei 9.474/97, são a Caritas Arquidiocesana e o Instituto de Migrações e Direitos Humanos – IMDH. Com relação a Caritas237, esta foi fundada no Brasil em 1956 como parte da rede Caritas Internationalis, a qual possui unidades em 165 países e territórios, sendo reconhecida como entidade de utilidade pública federal e um organismo ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB. No caso, a Caritas atua em parcerias tanto com o Governo brasileiro e o ACNUR tanto em programas de proteção destinados ao acompanhamento do processo de solicitação e obtenção da documentação necessária no país de acolhida; quanto de assistência relacionadas à acessibilidade de serviços como moradia, saúde, educação, alimentação e formação. Com relação ao IMDH, este exerce seu papel em Brasília e possui um convênio com a Caritas de São Paulo, representando a sociedade civil no Grupo de Estudos Prévios do CONARE. Ademais, possui um histórico positivo na assistência aos refugiados, uma vez que auxilia tanto nos processos de integração quanto nas discussões para aprimoramento da política nacional de refúgio.Além dessas, outras instituições também auxiliam os refugiados no Brasil como, por exemplo, a Associação Antônio Vieira - ASAV que realiza um trabalho em cooperação com o ACNUR voltado às políticas de reassentamento no território nacional.238

Outro exemplo é a atuação do chamado Sistema “S” na inserção e integração dos refugiados no país, uma vez que entidades como o SESI e o SENAI oferecem cursos técnicos

235 MAHLKE, Helisane. Direito Internacional dos Refugiados: novo paradigma jurídico. Belo Horizonte:

Arraes Editores, 2017, p. 234.

236 NABAIS, José Casalta. Por uma liberdade com responsabilidade: algumas considerações sobre a

solidariedade e a cidadania. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 137-139.

237 CARITAS BRASILEIRA. Quem somos e Histórico. Disponível em: http://caritas.org.br/quem-somos-e-

historico. Acesso em: 20 de dez. 2018.

238 MAHLKE, Helisane. Direito Internacional dos Refugiados: novo paradigma jurídico. Belo Horizonte:

de capacitação e profissionalizantes aos refugiados, com vistas a permitir mais facilidade de inserção dessas pessoas no mercado de trabalho. Igualmente, o SESC oferta cursos básicos de português, bem como propicia acesso a bibliotecas, restaurantes, internet e projetos de inclusão social, permitindo a associação dos refugiados como usuários plenos e, assim, franqueando-se o acesso a toda sua rede social de serviços disponíveis no país.239

A atuação no âmbito do auxílio no processo de determinação pode ser observada, por exemplo, nos casos até meados de 2012, nos quais os recursos eram interpostos com auxílio dessas entidades que tradicionalmente realizam o atendimento de solicitantes de refúgio e refugiados nos principais centros do país: as Caritas Arquidiocesanas de São Paulo, Rio de Janeiro e Manaus e Instituto Migrações e Direitos Humanos - IMDH (em Brasília). Mediante convênios com o ACNUR e com o Ministério da Justiça, estas entidades prestam orientação jurídica geral aos estrangeiros, bem como informam acerca das etapas do processo de reconhecimento, além de também poderem realizar as entrevistas dos solicitantes. Igualmente, apresentam pareceres sobre a demonstração (ou não) da condição de refugiado e participam das discussões no Grupo de Estudos Prévios e nas Plenárias de decisão do CONARE. Ademais, colaboram com os solicitantes de refúgio que tiveram a sua condição de refúgio indeferida, auxiliando-os na elaboração dos recursos.240

No entanto, ressalva-se que o trabalho desenvolvido pelas organizações da sociedade civil na acolhida e integração dos refugiados no Brasil, em especial a Caritas, é realizado por meio de convênios e parcerias firmadas anualmente perante o governo e o ACNUR, situação esta que gera insegurança na proteção aos refugiados, uma vez que não há qualquer obrigação dos parceiros em financiar os projetos e ações desenvolvidas pela entidade.241 Igualmente, destaca-se que a participação da sociedade civil não se encontra adstrita às entidades mencionadas, uma vez que não há nenhum óbice legal para que outras entidades se integrem ao sistema nacional de proteção e somem esforços para seu aprimoramento, ainda que de forma indireta.242 Igualmente, a atuação do ACNUR é de suma importância no processo de acolhimento dos solicitantes de refúgio e, assim, no procedimento nacional de determinação do

239 AMORIM, João Alberto Alves. A Integração Local do Refugiado no Brasil: a proteção humanitária na prática

cotidiana. IN: JUBILU, Juliana Lyra; GODOY, Gabriel Gualano (orgs.). Refúgio no Brasil: comentários à lei

9.474/97. São Paulo: Quartier Latin/ACNUR, p. 239-255, 2017, p. 389-390.

240 LEITE, Larissa. Esfera Recursal no Processo de Reconhecimento da Condição de Refugiado: uma

Expectativa Brasileira. IN: JUBILU, Juliana Lyra; GODOY, Gabriel Gualano (orgs.). Refúgio no Brasil:

comentários à lei 9.474/97. São Paulo: Quartier Latin/ACNUR, p. 239-255, 2017, p. 250-251.

241 SOARES, Carina de Oliveira. O Direito Internacional dos Refugiados e o Ordenamento Jurídico Brasileiro:

Análise da Efetividade da Proteção Nacional. 2012. 252 f. Dissertação de Mestrado em Direito - Programa de

Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, p. 120.

242 MAHLKE, Helisane. Direito Internacional dos Refugiados: novo paradigma jurídico. Belo Horizonte:

status de refugiado. Embora não exerça um papel decisório quanto à solicitação de refúgio, o órgão auxilia o Governo brasileiro na consecução de metas e medidas estabelecidas nos diversos Tratados, convenções, declarações e acordos internacionais como, por exemplo, as metas contidas no Plano de Ação do México de 2014 que, dentre as quais, pode-se destacar, por exemplo, o programa fronteiras solidárias para auxiliar o tratamento adequado de refugiados nas áreas limítrofes, o programa cidades solidárias no auxílio à integração local e o programa reassentamento solidário.

No que tange à implementação das soluções duradouras no país, a atuação do ACNUR se apresenta de forma essencial. Conforme explicitado no capítulo anterior, as soluções duradouras consistem na repatriação voluntária, reassentamento e integração local, sendo papel do ACNUR o auxílio na implementação dessas soluções no âmbito dos Estados. No que concerne à repatriação voluntária, em geral, essa modalidade está associada a uma das hipóteses das cláusulas de cessação e, nesses casos, o órgão desenvolve papel decisivo, uma vez que é de sua competência a elaboração de toda estratégia de preparação e execução da repatriação pretendida. No Brasil, essa alternativa foi utilizada, por exemplo, no caso dos refugiados provenientes de Angola e Libéria, logo após a constatação do fim dos conflitos nos respectivos países, bem como o caso de alguns refugiados do Afeganistão que haviam chegado ao país por meio do programa de reassentamento e, em seguida, foram repatriados.243

No que concerne à integração local, o ACNUR tem limitado sua atuação ao fornecimento de recurso e auxílio técnico às demais entidades, entretanto, considerando a multidimensionalidade inerente ao processo de integração, a viabilidade de garantia do conjunto de direitos assegurados aos refugiados no país depende de um real engajamento dos mais diversos atores, no intuito de suprir a ausência de políticas públicas de uma maneira geral destinadas aos refugiados que residem no território nacional e, em especial, quanto à realização de aprimoramentos progressivos da estrutura de acolhida atualmente implementada no Brasil.244

Com relação ao reassentamento245, uma vez que o Brasil faz parte do acordo perante o ACNUR, o país é um dos destinos possíveis para refugiados já reconhecidos em outros países. Em consonância com os art. 45 e art. 46 da Lei Federal nº 9.474/97 que estipulam a modalidade

243 MAHLKE, Helisane. Direito Internacional dos Refugiados: novo paradigma jurídico. Belo Horizonte:

Arraes Editores, 2017, p. 239-240.

244 MAHLKE, Helisane. Direito Internacional dos Refugiados: novo paradigma jurídico. Belo Horizonte:

Arraes Editores, 2017, p. 243-244.

245 CONARE, Comitê Nacional para Refugiados. Refúgio em números – 3ª edição. Brasília: Ministério da

no atual sistema nacional de proteção, o Brasil já recebeu um acumulado de 719 refugiados reassentados até 2017, sendo no ano de 2014 um total de 43 refugiados reassentados naquele ano, 15 em 2015, 31 em 2016 e apenas 6 reassentados em 2017. Nesse caso, ressalta-se que os programas de reassentamento não estipulam quotas para a realização do reassentamento pelos países, bem como o financiamento das operações de reassentamento é proveniente do próprio ACNUR e, assim, tais operações estão sujeitas à disponibilidade financeira do órgão, sendo a participação da sociedade civil e dos órgãos governamentais voltada apenas ao auxílio na execução dessas operações. Na prática, para viabilizar essa solução, o Brasil envia missões aos países onde estão localizados os refugiados para avaliar a viabilidade da realização de um reassentamento dessas pessoas em território nacional, bem como a disponibilidade dos próprios refugiados em serem acolhidos pelo Brasil e, após da assinatura de um termo de adesão voluntária ao programa, os casos com recomendação positiva são apresentados ao CONARE para deliberação por maioria simples. Além desse procedimento comum, há um procedimento especial, chamado de “fast track” criado para situações emergenciais, nas quais a solicitação é apresentada diretamente ao CONARE e a aprovação do reassentamento exige unanimidade dos membros deste órgão.246

Contudo, apesar de inúmeras iniciativas do ACNUR no país, a atuação desse órgão internacional ainda é limitada, uma vez que não ultrapassa a perspectiva de auxílio e orientação. Em verdade, ao ACNUR, não é permitida a interferência em assuntos considerados internos do Estado no qual se encontra a questão relativa aos refugiados, sendo essa característica observada na própria composição do CONARE, a qual contempla a participação do ACNUR com direito a voz, mas sem direito a voto.247

É nessa perspectiva que se apresenta o atual sistema de proteção nacional implementado para assegurar os direitos inerentes aos refugiados no Brasil. No entanto, o aumento significativo do número de refugiados no mundo e a diversidade da mobilidade humana foram capazes de tornar o fluxo de imigração mais intenso e complexo. E o Brasil não está imune a essa alteração do cenário global, em especial, no que concerne à crise humanitária de refugiados. No entanto, conforme será demonstrado no próximo capítulo, o país ainda exerce um papel modesto em comparação com outros países no tratamento da crise que cada vez mais se alastra sem que haja respostas mais efetivas para, no mínimo, reduzi-la.

246 MAHLKE, Helisane. Direito Internacional dos Refugiados: novo paradigma jurídico. Belo Horizonte:

Arraes Editores, 2017, p. 242-243.

247 MAHLKE, Helisane. Direito Internacional dos Refugiados: novo paradigma jurídico. Belo Horizonte:

Essa nova configuração da questão dos refugiados no globo impõe ao Brasil novos desafios quanto aos fluxos migratórios. Além do aumento do número de refugiados, outras situações relacionadas ao refúgio como a exploração de mão-de-obra migrante, a migração de menores desacompanhados, o tráfico de pessoas, bem como o crime transnacional e o terrorismo, por exemplo, exigem igualmente um posicionamento do Estado brasileiro. Nesse sentido, o dilema que se apresenta é: como conciliar os interesses do Estado relativos à necessidade de controle na fronteira por razões de soberania, segurança nacional e ordem pública com a necessidade de assegurar políticas destinadas ao acolhimento de cada vez mais refugiados provenientes dos mais diversos lugares do mundo?

A resposta a essa pergunta passa não apenas pela tentativa de desenvolvimento e implementação de um novo acordo internacional que atualize as questões necessárias, compatibilizando-as com a nova realidade que se impõe, mas também pela adequação da estrutura já existente, com intuito de evitar que essas pessoas sejam ainda mais penalizadas na espera de um consenso internacional sobre o tema. No caso, a mobilidade humana ganhou novas facetas com o decorrer dos anos e o refúgio, atualmente, apresenta-se de forma mais complexa do que o era em meados de 1951 quando do estabelecimento do Estatuto dos refugiados.

Assim, além da discussão no foro internacional quanto a um novo paradigma global, cabe aos próprios Estados encontrar soluções viáveis no sistema já existente, com fundamento nos princípios da cooperação e compartilhamento de responsabilidades, no sentido de assegurar mais efetividade à proteção no seu respectivo âmbito interno. No caso do Brasil, essas situações e hipóteses serão melhor apresentadas e abordadas no capítulo seguinte destinado à discussão quanto aos novos caminhos e paradigmas que estão sendo apresentados no atual sistema nacional de proteção aos refugiados na busca por minimizar a atual crise e garantir maior eficiência e sustentabilidade a esta proteção no âmbito nacional.

4. O DESENVOLVIMENTO DE UM NOVO PARADIGMA PARA A PROTEÇÃO