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Outras histórias dentro das histórias dentro da história

3.1. O Autor-criador, suas criaturas e o mito da criação

Há em H.E., após a “dedicatória do autor”, um movimento discursivo que rememora a criação:

Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou. (p.11)

Após fazer alusão à origem primeira das coisas, ao principio mítico de “tudo”, o Autor aproxima esse princípio ao início de seu livro, sua criação:

Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da pré-pré- história já havia os monstros apocalípticos? Se esta história não existe, passará a existir. (p.11)

Ao falar de sua história, a identifica como uma criatura, sua criação:

Não se trata apenas de narrativa, é antes de tudo vida primária que respira, respira, respira. (p.13)

E reitera esse seu posicionamento ao nos contar como é seu processo criativo:

O que me proponho contar parece fácil e à mão de todos. Mas a sua elaboração é muito difícil. Pois tenho que tornar nítido o que está quase apagado e que mal vejo. Com mãos de dedos duros enlameados apalpar o invisível na própria lama. (p.19)

Nesse trecho, ao comparar o ato da escrita com a ação de, com as mãos, “apalpar” a lama, o Autor nos remete à criação de Adão, originário do barro.

Esse Autor, ao aproximar os dois “momentos de criação”, recordando as “origens”, busca uma auto-afirmação, uma validação do processo criativo, em que aparece como o criador, ao mesmo tempo que problematiza essa atmosfera mítica, subvertendo-a e questionando-a, como demonstramos quando tratamos do mito do criador, o que faz com que a auto-afirmação, a validação do processo criativo, não se dê.

Essa negação ocorre, a princípio, pela rejeição da “máscara” de criador por parte de Rodrigo. Veja, no exemplo, Rodrigo S. M. colocando-se, não como criador, mas como personagem da criação divina:

Mas que ao escrever — que o nome real seja dado às coisas. Cada coisa é uma palavra. E quando não se a tem inventa-se-a. Esse vosso Deus que nos mandou inventar. (p.17)

O discurso acima compara indiretamente Rodrigo S. M à figura de Adão que, obedecendo as ordens de Deus, dá nome às coisas do mundo. Desenvolvendo essa metáfora, já que Rodrigo relaciona-se a Adão, poderíamos dizer que Deus seria o “nome de autor” Clarice Lispector e Eva, a Macabéa.

Assim teríamos a seguinte situação: Deus/Clarice cria o Adão/Rodrigo e retira dele uma costela para criar a Eva/Macabéa. Porém, esse Deus não é presente:

A quem interrogava ela? a Deus? Ela não pensava em Deus, Deus não pensava nela. Deus é de quem conseguir pegá-lo. Na distração aparece Deus. (p.26)

Esse Adão/Rodrigo, possui um certo desprezo por sua função:

(Quanto a escrever, mais vale um cachorro vivo.) (p.35)

A Eva/Macabéa, em nenhum momento é tentadora:

Você, Macabéa, é um cabelo na sopa. Não dá vontade de comer. (p.60)

Poderíamos aqui, ao resgatar o mito da criação, falar do mito da criação de Afrodite. Esta deusa teria nascido da mutilação (castração) do deus Urano, cujo sêmen teria caído no mar e ali a deusa teria sido concebida, mas sem vida. Vida esta dada por Zéfiro, vento leste, que a teria soprado em suas narinas. Assim como Afrodite, Macabéa pode ser vista como tendo sua origem na já comentada “auto-flagelação” de Rodrigo S. M. e tem a sua vida insuflada em seu corpo pela ação da figura autoral, que con/funde Clarice Lispector e Rodrigo. S. M.

3.2. Macabéa e os Macabeus

o nome de Macabéa e Olímpico, que nos remetem aos 1º Livro dos Macabeus (1Mc) e 2º Livro dos Macabeus (2Mc), da Bíblia, e às personagens que fazem parte desses livros.

O crítico clariciano, Dany Al-Behy Kanaan (2003), ao se deter sobre H.E., aponta várias convergências entre 2Mc e esse último livro de Clarice, publicado ainda em vida. Kanaan chama atenção para o fato de que, tanto o autor-narrador do livro bíblico e o autor-narrador de H.E. se confundem com as figuras dos escritores de seus respectivos livros, afirmando que:

Como no texto bíblico, de saída, a figura da escritora e do narrador (autor) se confundem. Como o narrador acima [2Mc], este autor precisa “dos outros para [se] manter de pé” e espera uma resposta. (p.108)

Ele ainda atenta para o fato de que as estruturas de ambos os livros são semelhantes por terem uma espécie de “Introdução”, que antecede a história propriamente dita e um tipo de “Prólogo”, que sucede a história, além de dizer que:

A narrativa em A hora da estrela, semelhante ao texto bíblico, é mais “episódica” do que “histórica”. (p.113)

Rodrigo S. M., no início de H.E., chama a atenção de seu leitor para essa característica “episódica” de sua história:

O seu ritmo é às vezes descompassado. E tem fatos. Apaixonei-me subitamente por fatos sem literatura – fatos são pedras duras e agir está me interessando mais do que pensar, de fatos não há como fugir. (p.16)

Também o narrador-autor de 2Mc, em seu prefácio, avisa a seus leitores que o que fará será resumir os “fatos [...] desenvolvidos em cinco livros por Jasão de Cirene”, retirando desses fatos todos os seus “pormenores”, a fim de:

[...] proporcionar um regalo aos que se contentam com uma simples leitura, uma comodidade aos que se comprazem em confiar os fatos à sua memória, e utilidade a todos que depararam com estas páginas. (2Mc 2, 25)

Entretanto, em seu estudo, como foi dito, Kanaan mostra apenas as convergências entre os textos, não se detendo sobre as divergências que ocorrem e sobre as leituras possíveis geradas por essas divergências, sem falar que, como já apontamos no capítulo sobre a fortuna crítica de H.E., o objetivo de Kanaan é desenvolver uma análise mais psicológica do que literária. Vejamos mais atentamente a relação intertextual que ocorre entre

2Mc e H.E..

Tanto 1Mc como 2Mc contam a história do povo Macabeu que, durante séculos, sofreu a opressão do povo romano. Porém, enquanto 1Mc conta a história de todos os irmãos Macabeus e seus descendentes, suas lutas e mortes, 2Mc se detém sobre a história de Judas Macabeu, o primeiro a iniciar a resistência aos romanos, relatando suas vitórias e terminando antes de sua morte.

Também a narrativa de H.E. se detém sobre a história de apenas uma nordestina, todavia essa, mesmo com sua resistência inconsciente à opressão a sua volta, tem sua morte contada por Rodrigo em seu mínimos detalhes.

Apesar das semelhanças entre as duas histórias, são também diversas as comparações que podemos fazer pelas divergências e oposições que existem entre ambas. Vejamos algumas delas.

Enquanto que o autor de 2Mc afirma que seu trabalho será árduo para que o leitor seja agradado:

Para nós, que tomamos sobre nós o penoso trabalho deste resumo, trata-se não de uma tarefa fácil, mas de uma questão de suores e vigílias, comparável ao árduo trabalho do organizador de um banquete que busca a satisfação dos outros” (2Mc 2, 26-27)

Rodrigo S. M. também reconhece a dificuldade de escrever a história:

Não, não é fácil escrever. É árduo como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados. [...] Sem falar que a história me desespera por ser simples demais. O que me proponho contar parece fácil e à mão de todos. Mas a sua elaboração é muito difícil. (p.19)

Porém, a sua intenção, declaradamente, não é a de agradar ao leitor – “Que não esperem, então, estrelas no que se segue: nada cintilará, trata-se de matéria opaca e por sua própria natureza desprezível por todos.” (p.16)

O autor da declarada “adaptação” de 2Mc se recusa a alongar-se, a falar sobre a história e não narrá-la:

Comecemos, portanto, aqui o nosso relato sem nada acrescentar ao que fica dito: despropositado seria, com efeito, alongar-nos no que precede a história e resumir, em seguida, a própria história. (2Mc 2,32)

Para ele a história tem muita importância. Já Rodrigo S. M. admite alongar- se no que “precede a história”, por acreditar que a sua história não é tão boa:

Mas desconfio que toda essa conversa é feita apenas para adiar a pobreza da história, pois estou com medo. (p.17)

Em 2Mc existe a “divina providência”. Deus sai em socorro do povo “eleito”:

Enquanto se suplicava ao Senhor todo-poderoso que guardasse intactos, em toda a segurança, os depósitos para os que os haviam confiado, Heliodoro, de sua parte, executava o que fora decidido. Acercava-se já, com sua guarda, do Tesouro, quando o soberano dos Espíritos e de todo o poder fez uma grande aparição, de tal modo que todos os que tinham ousado ir lá fora foram feridos pelo poder de Deus, perdendo vigor e coragem. (2Mc 3, 22-24)

Neste trecho observamos a figura divina agindo em apoio ao seu “povo”, que estava para ser atacado por Heliodoro. Já em H.E., para Macabéa, Deus não existia – “Rezava mas sem Deus, ela não sabia quem era Ele e portanto Ele não existia” (p.34).

O autor de 2Mc se dirige ao leitor com o intuito de encorajá-lo, mesmo diante do sofrimento do povo judeu por ele narrado:

Recomendo, portanto, aos que tiverem entre as mãos este livro que não se deixem desencorajar por causa dessas calamidades, mas que, ao invés, ponderem consigo mesmos que essas perseguições não aconteceram para a ruína, mas para a educação de nossa gente. (2Mc 6, 12)

Rodrigo S. M. também se dirige aos seus leitores, ora encorajando-os:

Acho com alegria que ainda não chegou a hora de estrela de cinema de Macabéa morrer. Pelo menos ainda não consigo adivinhar se lhe acontece o homem louro e estrangeiro. Rezem por ela e que todos interrompam o que estão fazendo para soprar-lhe vida, pois Macabéa está por enquanto solta no acaso como a porta balançando ao vento no infinito. (p.83)

E às vezes para desencorajá-los — “Eu bem avisei que era literatura de cordel, embora eu me recuse a ter qualquer piedade” (p.33).

Em 2Mc, Judas Macabeu interpreta um sonho e este se realiza. No sonho, Judas e seus companheiros venciam as tropas romanas. Já Macabéa tem o futuro previsto por uma cartomante, um futuro cheio de alegrias e pleno de vida, entretanto a cartomante erra as previsões e Macabéa morre atropelada.

Apesar das diferenças, tanto o “epílogo do Abreviador”, de 2Mc, quanto o final de H.E. são semelhantes. Em ambos os autores se dirigem aos seus leitores indagando-os

sobre a satisfação decorrente da leitura:

Se está boa a composição e logrou êxito, é o que eu desejava, se pouco valor tem e não excede a mediocridade, foi o que pude fazer. (2Mc 15,38)

O final foi bastante grandiloqüente para a vossa necessidade? (H.E., p.86)

Quanto à história de opressão e sofrimento, ela, de uma certa maneira, é resgatada em H.E., pois também Macabéa é oprimida:

Limito-me a humildemente — mas sem fazer estardalhaço de minha humildade que já não seria humilde — limito-me a contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela. (p.15)

Essa opressão ocorre por meio da ação de todas as personagens da história, e aqui não poderíamos deixar de citar a ação de Olímpico, que contribui para esse estado de Macabéa. O nome de Olímpico nos faz recordar o monte Olimpo, morada dos deuses greco- romanos, que nos remetem ao povo grego, personagens no livro Macabeus, completando, com isso, a reconstrução desse mito em H.E.. Olímpico utiliza Macabéa como "trampolim" de uma possível ascensão social (por meio dela conhece Glória, com quem passa a se relacionar, abandonando Macabéa). Todavia, ao contrário dos Macabeus, que chegaram a morrer por seus ideais, não há nenhuma resistência física por parte da personagem Macabéa:

Nunca se queixava de nada, sabia que as coisas são assim mesmo [...] (p.35)

Pensou, pensou e pensou! Chegou à conclusão que na verdade ninguém jamais a ofendera, tudo que acontecia era porque ninguém jamais a ofendera, tudo que acontecia era porque as coisas são assim mesmo e não havia luta possível, para que lutar? (p.40)

Sua forma de resistir, como aponta Paulo Germano Barrozo de Albuquerque (2002), é não participando do jogo social, como o faz Olímpico, que sabe “no certo” que vai “vencer”, enquanto Macabéa acha que não precisa “vencer na vida”. Também Arnaldo Franco Júnior (2000), ao apontar essa atitude da personagem, afirma que Macabéa é a única personagem do livro que não “adere” a nenhuma “máscara”, como fazem as outras personagens. Essa diferença de resistência entre Macabéa e os Macabeus é irônica, o que dá à reapropriação do mito uma função paródica.

Também a personagem Olímpico sofre com a opressão da cidade grande, o que se reflete em seu sobrenome "de Jesus" que, simbolicamente, evoca a dor e o sofrimento

da personagem bíblica, mas, “aderindo” a uma “helenização” contemporânea, subverte sua posição e garante a sua “passagem” de oprimido a opressor, “cabra safado”, matador e político.

Outros críticos claricianos apontaram essa relação entre H.E. e a história do povo macabeu. Yudith Rosenbaum (2002), ao abordar esse fato, nos diz que:

[...] não se pode ignorar a força simbólica do nome Macabéa, o que traz um novo olhar interpretativo para a obra. Ela representa toda a descendência dos hebraicos macabeus, zelotas bíblicos oprimidos pelos gregos, quando estes dominaram Jerusalém em 175 a.C. e forçaram a helenização dos judeus proibindo a Torá e os ritos religiosos monoteístas. A história dos macabeus conta como eles resistiram e não cederam à cultura dos deuses olímpicos do paganismo grego, continuando fiéis à Lei de Moisés, garantindo a liberdade religiosa e a não-assimilação pela nova sociedade que se impunha. A simplicidade resistente de Macabéa não permite que se adapte à civilização moderna, pois ela era “incompetente para a vida”, para a sociedade capitalista — diferentemente de Olímpico de Jesus, que já foi seduzido pela sociedade de consumo, perdendo seu “delicado essencial”. (p.60-61)

Podemos ver, nesta citação, como Yudith identificou essa relação entre H.E. e a história judaico-cristã e, assim como Arnaldo Franco Júnior, verifica em Macabéa essa “impossibilidade de adaptação à civilização moderna”. Olga de Sá (2000), ao analisar a personagem Macabéa, afirma que ela “tem o heroísmo dos seus irmãos bíblicos, os sete macabeus” (p.271). Apesar de não desenvolver essa leitura, logo após ela nos fornece indícios para uma outra relação entre a personagem e a mitologia judaico-cristã, quando observa que:

Seu nome abreviado Maca é, graficamente, quase idêntico à Maçã, sem os adornos sinuosos do til e da cedilha, que situam aquela fruta na escuridão nasal e sibilante dos bosques e das tentações. (p.271)

Neste trecho, Olga de Sá, além de nos remeter ao mito do pecado original (Gênesis, 3), nos faz recordar o livro “A Maçã no escuro”, de Clarice Lispector, no qual a personagem Martim realiza uma busca por um esvaziamento de sua própria identidade, uma busca pela essência, após pensar ter matado uma pessoa. Porém, ao contrário de Martim, Macabéa não possui a “escuridão nasal e sibilante dos bosques e das tentações”, ela é a instauração do “esvaziamento do eu” (NUNES, 1995, p.165), a ela não é necessária a busca, pois Macabéa já é o “puro ser”, como diz Yudith Rosenbaum (2002), ao afirmar que:

Ao não pensar-se, Macabéa acaba sendo imagem emblemática de uma espécie de utopia clariceana de atingir o puro ser, it neutro, êxtase pleno, adesão total aos sentidos, que se faz pela negação da razão discursiva. (p.59)

se sobrepõem sobre ela (datilógrafa, mulher, pessoa, bobo da aldeia, virgem humilhada, donzela, virgem Maria e macabeu), a identidade que é plena em si mesma, a existência que é, somente, sem a necessidade de uma função, de um existir pelo outro ou para o outro.

3.3. Rodrigo S. M. e Jesus Cristo

Falar da relação existente entre o narrador-escritor-personagem Rodrigo S. M. e a personagem bíblica Jesus é caminhar por entre as palavras, frases e expressões, tateando nas entrelinhas da trama textual e nelas ressaltando aquilo que está implícito. Diferente do que ocorre com os outros mitos, a este só é “permitida” a sua apresentação e referência indireta.

Essa associação apenas nos chamou a atenção quando, em uma fala de Rodrigo, nos causou estranhamento um desejo expresso pelo mesmo: “Quero que me lavem as mãos e os pés e depois — depois os untem com óleos santos de tanto perfume” (p.86). A princípio acreditamos se tratar de uma referência à cerimônia em que Jesus lava os pés de seus discípulos (João 13,1-17). Estávamos enganados. Fazendo a leitura dos quatro evangelhos bíblicos (Marcos, Mateus, Lucas e João), descobrimos que essa fala de S. M. nos remete, na realidade, à unção de Jesus ocorrida em Betânia, pouco antes de se iniciar a via crucis que culminaria na sua morte. Essa unção é realizada quando Jesus é acolhido pela irmã de Lázaro, que ele havia ressuscitado dos mortos. Nessa ocasião, Jesus é questionado por deixar que a mulher lhe unte com óleos perfumados e o mesmo diz que não é possível recriminar uma pessoa que age daquela forma em vista de seu sepultamento, antevendo, com isso, a própria morte. Também Rodrigo está prestes a se declarar morto, quando afirma esse seu desejo.

Após esse indício procuramos outros com a finalidade de confirmar, ou não, essa associação, e ela se confirmou, tanto por convergências como por meio de divergências entre as duas “personagens”. Vejamos, primeiramente, o episódio em que Jesus tem seu nascimento anunciado por uma estrela:

[...] e perguntaram: “Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Vimos o seu astro no oriente e viemos prestar-lhe homenagem”. (Mt 2,2)

A estrela marca o momento da morte de Macabéa e de Rodrigo S. M., uma “estrela de mil pontas” (p.85). Depois, Rodrigo compara o seu trabalho com a carpintaria:

Pretendo, como já insinuei, escrever de modo cada vez mais simples. Aliás o material de que disponho é parco e singelo demais, as informações sobre os personagens são poucas e não muito elucidativas, informações essas que penosamente me vêm de mim para mim mesmo, é trabalho de carpintaria. (p.14)

A carpintaria era o ofício conhecido pelo Cristo.Em outro momento, Jesus cura um “impuro”, leproso, triunfando sobre a “impureza contagiosa” (Mt 8,2). Rodrigo afirma que, se escreve-se sobre o personagem bíblico Lázaro, se “cobriria de lepra” (p.39). Enquanto Jesus salva as pessoas da morte (Mt 9,18), S. M. não salva Macabéa da morte. Outra divergência entre essas figuras é o fato de que Jesus aproxima-se dos pobres, dos necessitados, buscando-os. Rodrigo afirma que “a classe baixa nunca vem a mim” (p.19).

Rodrigo ambiciona um certo reconhecimento pelo seu trabalho, que não vem, pois a sua literatura havia tido um “mau êxito” (p.17). Quanto a Jesus, este não quer que sejam divulgadas as suas ações, as curas que realiza — “Então Jesus lhes disse severamente: ‘Cuidado! Que ninguém o saiba’”. (Mt 9,30).

Enquanto Jesus, em nenhum momento dos evangelhos, aparece mantendo relação sexual, S. M. declara ter dormido com uma mulher:

Escuridão? Lembro-me de uma namorada: era moça-mulher e que escuridão dentro de seu corpo. Nunca esqueci: jamais se esquece a pessoa com quem se dormiu. O acontecimento fica tatuado em marca de fogo na carne viva e todos os que percebem o estigma fogem com horror. (p.18)

Há um momento, na Bíblia, em que Jesus acalma a tempestade:

Enquanto navegavam, Jesus adormeceu. Um vendaval se abateu sobre o lago; o barco fazia água e eles se achavam em perigo. Aproximaram-se e o despertaram, dizendo: “Mestre, mestre, estamos perecendo!” Ele acordou, ameaçou o vento e as ondas; eles se apaziguaram e fez-se a bonança. (Lc 8,23-24)

Rodrigo, no início da narrativa afirma não temer a tempestade:

Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite. (p.18)

Assim como o Cristo vive a sua “Paixão”, o narrador-escritor afirma, também, que viveu a sua:

Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e o seu desespero. E agora só queria ter o que eu tivesse sido e não fui. (p.21)

Em um momento da história, no qual pessoas se aproximam de Macabéa e a observam morrer sem fazer nada, Rodrigo diz:

Mas quem sou eu para censurar os culpados? O pior é que preciso perdoá-los. É necessário chegar a tal nada que indiferentemente se ame ou não se ame o criminoso que nos mata. (p.81)

Essa fala nos faz recordar passagens bíblicas em que Jesus diz: “Quem nunca pecou, que atire a primeira pedra”; ou “Pai, perdoai-os, pois eles não sabem o que fazem”

Antes de iniciar o martírio de Jesus, o mesmo participa de uma ceia, na qual

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