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Clarice Lispector: criador e criaturas : uma leitura de A hora da estrela

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Academic year: 2017

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ROBSON RICARDO DAL SANTO FARIA

CLARICE LISPECTOR: CRIADOR E CRIATURAS

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ROBSON RICARDO DAL SANTO FARIA

CLARICE LISPECTOR: CRIADOR E CRIATURAS

UMA LEITURA DE A HORA DA ESTRELA

Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista, Câmpus de São José do Rio Preto, para obtenção do título de Mestre em Letras (Área de Concentração: Teoria da Literatura)

Orientador: Prof. Dr. Sérgio Vicente Motta

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COMISSÃO JULGADORA

Titulares

Prof. Dr. Sérgio Vicente Motta - Orientador Prof. Dr. Igor Rossoni

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, ao meu orientador, Prof. Dr. Sérgio Vicente Motta, mestre que, pacientemente, soube compreender a excessiva imaturidade de seu orientando e, junto com ele, lidou com as conseqüências dessa imaturidade.

À Prof.ª Dr.ª Lúcia Granja, pelas valiosas considerações sobre o meu trabalho e por, tão prontamente, se dispor a fazê-las.

Ao Prof. Dr. Arnaldo Franco Júnior, um paciente que soube ouvir e dialogar com um aluno ainda em formação.

Ao Prof. Dr. Jaime Ginzburg, semeador de idéias, que espero tenha encontrado em mim campo fértil para o germinar do conhecimento.

Aos funcionários da seção de pós-graduação por atenderem as minhas súplicas quando estas foram inevitáveis.

À Lígia Aparecida de Oliveira Silva, diretora da escola na qual leciono, pela compreensão, apoio e, acima de tudo, pela amizade demonstrada neste período tão difícil, e tão importante, de minha vida.

À Gisele Barros da Silva Faria, companheira de jornada que, tanto quanto ou mais do que eu, sofreu com as condições do caminho escolhido por mim e com as intempéries durante o caminhar.

Aos Supervisores de Ensino da Diretoria de Ensino Guarulhos - Sul, Luís Novaes e Ângela Sales, pelo acompanhamento, apoio e amizade durante a realização do curso.

À Secretaria Estadual de Educação que, por meio do programa “Bolsa Mestrado”, possibilitou a minha permanência no curso, custeando minhas despesas.

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Tudo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou.

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RESUMO: Este trabalho é um estudo de A hora da estrela de Clarice Lispector. Nele buscou-se identificar, no campo do enunciado, a presença do mito, principalmente do mito judaico-cristão, com o intuito de entender como essas narrativas mitológicas são (re)construídas no texto clariciano. Para tanto, tomou-se por base e como norteadora da análise a teoria arquetípica de Northrop Frye. Com a identificação desse substrato mítico em A hora da estrela, observou-se que o mesmo surge deslocado no enredo, por meio de

inversões, ironias, paráfrases, etc. Também foi possível identificar, na tragetória da protagonista uma releitura da Via Crucis percorrida pelo principal personagem do cristianismo – Jesus.

Ao final, como sugestão de percurso interpretativo a ser trilhado objetivando entender as conseqüências do deslocamento do substrato mítico no livro, indicamos o estudo de Luigi Pirandello sobre o Humor.

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ABSTRACT: This research is a study of A hora da estrela by Clarice Lispector. In this fetched up identify, in the field of enunciated the presence of the myth, mainly the judaic-christian myth, with the intention to understand how this mythologics narratives are (re)constructed in the Clarice Lispector’s text. Therefore, took up for basis and orientation of the analysis the Northrop Frye archetypical theory. With the identification of that mythic substratum in A hora da estrela, observed up that the same is displaced in the plot, through of inversions, ironies, paraphrases, and so on. Also it was possible identify, in the life story of protagonist a reread of the Via Crucis went through by personage principal of christianity — Jesus.

At the end, as interpretative suggestion course with the objective to understand the consequences of mythic displacement in the book, we have indicated the study by Luigi Pirandello about Humor.

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SUMÁRIO

Introdução ...10

1. A Fortuna Crítica — Leituras que abordam o aspecto mítico em A hora da estrela ...12

2. Mitologia e Literatura 2.1. Premissas ...25

2.2. A presença mitológica em A hora da estrela ...31

2.2.1. A história da própria história ...35

2.2.2. A história de Rodrigo S. M ...63

2.2.3. A história de Macabéa ...72

3. Outras histórias dentro das histórias dentro da história 3.1. O Autor-criador, suas criaturas e o mito da criação ...84

3.2. Macabéa e os Macabeus ...85

3.3. Rodrigo S. M. e Jesus Cristo ...91

3.4. O Autor-criador e suas criaturas nos passos da Via Crucis ...93

3.5. Narciso e jogo de espelhos em A hora da estrela — outra leitura possível ...112

Conclusão ...118

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INTRODUÇÃO

Este trabalho é um estudo de A hora da estrela, de Clarice Lispector. Nele, acima de tudo, buscou-se observar e identificar os procedimentos estéticos geradores de significação, num primeiro momento, para depois encontrar perspectivas teóricas que nos ajudassem a entender o “funcionamento” do texto e construir uma leitura possível do livro.

O que nos motivou a realizar esse exercício de interpretação da obra foi encontrarmos, ainda durante a graduação, em um primeiro contato com o livro, elementos que possibilitavam a associação do texto com histórias mitológicas, assunto de nosso interesse. O nosso esforço, desde então, foi o de entender como o nosso objeto de estudo se articula com os mitos aos quais seu texto faz referências, diretas ou indiretas, e como os associa à sua estrutura, a ponto de fundir-se a eles de maneira indissociável, fazendo dessa articulação um procedimento estético que, como veremos, abre a obra para uma gama de possíveis leituras.

Todavia, antes de transitarmos pelo mundo dos mitos e dos rituais presentes em H.E. (faremos uso dessa sigla para nos referirmos ao livro em estudo), voltamos nossa atenção para uma parte da fortuna crítica de Clarice Lispector dedicada, parcial ou integralmente, ao estudo da obra em questão, destacando seus objetivos e buscando, nesses estudos, referências ao mito em H.E. e as leituras suscitadas por esta presença.

Em um segundo capítulo, antes de darmos início ao estudo das histórias mitológicas que surgem entremeadas ao enredo, para deixar claro o que entendemos por mito e abordarmos de maneira correta essa relação que se estabelece entre mito e literatura/arte, recorremos aos estudos de Northrop Frye (1973 e 2000) e de Mircea Eliade (2002), teóricos que nos indicam caminhos a serem seguidos dentro da análise do mito. Neste capítulo, ainda, fizemos uso dos estudos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2006), que entendem o símbolo como elemento constituinte e construtor de arquétipos e mitos.

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No terceiro capítulo, detivemos sobre cinco mitos que constituem a base da tessitura textual de H.E.: o mito da criação; o mito dos Macabeus; o mito de Jesus; o mito da via crucis e o mito de Narciso. Abordamos, neste capítulo, como esses mitos são revisitados

pela obra e quais as convergências e divergências com os mitos de origem. A hipótese aqui levantada, e seguida em todos os momentos da análise, enquanto observamos a presença de um substrato mítico na obra, é a existência de uma relação paródica na trajetória de Macabéa com a Paixão de Cristo.

É importante, porém, deixarmos claro que nosso trabalho em nenhum momento se deteve sobre aspectos estruturais tais como: narrador, espaço, tempo, personagens, etc. Não que os mesmos sejam tidos por nós como irrelevantes. O fato de nosso enfoque no estudo de H.E. ser outro e também por acreditarmos que outros estudiosos do livro já deram a merecida atenção a esses elementos da narrativa é que nos referimos a um ou a outro apenas quando se fazem necessários.

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1. A FORTUNA CRÍTICA

Leituras que abordam o aspecto mítico em A hora da estrela

Antes de adentrarmos o universo mitológico e passarmos a estudar H.E., é necessário que observemos a fortuna crítica de Clarice Lispector e, em meio a vastidão que é a mesma, destaquemos aqueles estudos que se detiveram sobre a obra em questão com o intuito de detectar algumas tendências críticas que norteiam a análise desse livro. Devemos, com isso, verificar se, em meio a esses estudos, existe alguma referência à presença mitológica ao longo do enredo e, em caso positivo, como esses mitos são abordados pela crítica clariceana.

Poucos são os estudos que se detêm única e exclusivamente sobre H.E. como é o caso de Igor Rossoni (1993), e de Márcia Lígia Guidin (1994).

Os estudos de H.E., em sua maioria, ou são ensaios curtos que aparecem em revistas de literatura e em coletânea de ensaios sobre a obra de Clarice, ou são capítulos que se encontram em análises que abordam algum aspecto recorrente no todo ou em parte da obra de Lispector.

Os tipos de abordagens são os mais diversos possíveis e vão desde análises literárias tradicionais até análises psicológicas do texto. Observamos, também, análises fenomenológicas, filosóficas, biográficas, históricas, sociológicas, etc.

Antes de voltarmos nossa atenção para esses estudos é válido ressaltar que, independente do tipo de abordagem feita por esses críticos, o que interessa ao nosso trabalho é verificar se os mesmos identificam, dentro de H.E., procedimentos estéticos que nos remetam, direta ou indiretamente, a algum mito ou se os mesmos reconhecem no texto alguma referência, implícita ou explícita, a histórias que pertencem, de alguma forma, ao universo mitológico.

Caso o estudo abordado identifique algum desses procedimentos construtivos que buscamos, passaremos então a atentar para as análises e leituras geradas nesses trabalhos pela identificação e aplicação das abordagens escolhidas sobre esses elementos textuais, deixando claro que a abordagem que norteará nossos estudos será a arquetípica, desenvolvida nos estudos de Northrop Frye e Mircea Eliade. Sobre a abordagem por nós escolhida, discorreremos melhor no capítulo posterior. Agora, voltemo-nos às análises de H.E..

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maneira, se dedicam a contrapor vida e obra e, na maioria das vezes, observar reflexos da vida na estruturação textual.

Uma destas obras é CLARICE – Uma vida que se conta, de Nádia Battella Gotlib. Neste livro, a autora reconstrói a história da vida de Clarice Lispector, evocando alguns trechos de suas entrevistas e de textos que trazem traços dessa vida tão estudada. Entretanto, Nádia é uma das poucas pesquisadoras de Clarice que, já na apresentação de seu livro, deixa claro que, apesar de contribuírem uns com os outros, os dados biográficos e de leitura crítica são trabalhados em seu texto de forma a não criar relações de dependência entre eles. A explicação dessa atitude, podemos ler abaixo:

Neste livro entrelaçam-se vida e obra de Clarice Lispector. Dados de informação de ordem biográfica e dados de leitura crítica de seus textos alternam-se e complementam-se, sem que, equivocadamente, se estabeleçam mútuas relações de dependência. Reconheço, porém, que um laço íntimo aí se instala, talvez pela importância que a linguagem e a narrativa sempre tiveram na vida de Clarice. Afinal, a própria palavra constrói a busca de uma identidade, nessa “vida que se conta”.

Num universo em que o documental e o fictício se misturam, procuro examinar como os ingredientes dessa narrativa de vida e de obra se organizam, considerando-os na complexa alquimia criativa em que ferve o líquido de mutações, metamorfoses, transfigurações, cujo segredo, em última instância, parece inviolável. Contudo, não se pode negar que há... coincidências. E tais coincidências, a feiticeira Clarice conhecia bem. E tanto praticava com eficácia o parecer como se fosse que, nesse jogo, nós, leitores de sua vida e de sua obra, por vezes nos sentimos ludibriados, de modo até magicamente perverso, e enredados numa das grandes questões que essa narrativa de vida traduz: os limites entre o histórico e o ficcional. De quem é a voz? Quais as pessoas e quais as personagens? O que é história e o que é ficção? Enfim, o que é real e o que é imaginário, nesta história de Clarice? (p.15)

Nádia tem a preocupação de não misturar, no desenvolvimento do percurso biográfico, vida e obra para que o leitor mais desatento não tenha a impressão de que Clarice, por meio de seus textos, apenas relatava fatos de seu cotidiano. Nádia tem plena consciência que isto é encenação e ela “joga” com isso no seu livro. Em CLARICE – Uma vida que se conta, há um espaço em que se trata da luta da escritora contra o autobiográfico e, logo ao

iniciar essa parte de seu trabalho, Gotlib coloca como epígrafe uma fala da própria Clarice onde ela diz que:

Mas eu não quero contar minha vida para ninguém [...] não pretendo jamais publicar uma autobiografia. (p.113)

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sucinto de sua vida, apresentando dados biográficos que incessantemente eram-lhe perguntados em entrevistas. Podemos subentender, como diz Nádia, uma “certa irritação da autora em relação às constantes, e quem sabe, impertinentes indagações a respeito de sua vida pessoal” (p.115) demonstrando, mais uma vez, o repúdio quanto à importância dada aos fatos de seu cotidiano, de sua história e a fuga declarada do autobiografismo.

Outros trabalhos também reconhecem uma mediação existente entre vida e obra, entretanto desenvolvem uma abordagem biográfica diferente, que observa a obra como um reflexo mais direto da vida real. Um exemplo da concretização desse tipo de atitude é o livro Clarice Lispector – A paixão segundo C. L., de Berta Waldman. Pelo título da obra podemos já ter uma idéia de seu conteúdo, pois o fato de vermos misturados o título de uma das obras e as iniciais do nome da autora ocupando o lugar das iniciais G. H., de sua personagem, dá-nos indícios de que o processo argumentativo desse livro tende a criar “laços” mais fortes entre vida e obra, buscando, algumas vezes, respostas na vida para perguntas surgidas no texto clariciano e vice-versa. No trecho abaixo podemos comprovar a hipótese levantada:

Há autores em relação aos quais os dados da vida entremeiam com a obra, compondo um único objeto. Para Clarice Lispector, no entanto, o fato importante, o acontecimento maior foi certamente o texto. Nele e a partir dele é possível levantar não os seus dias, mas o seu modo de viver os dias. E de morrer.

Embora não gostasse de dar entrevistas, de falar de si, Clarice escrevia a seu respeito. Aí, é ela quem socializa sua intimidade, oferecendo aos leitores coordenadas de sua vida pessoal. (1992, p.14)

Na seguinte fala de Waldman obtemos resposta para o fato de, ao se analisarem os livros ou levantarem dados da vida da autora, os pesquisadores muitas vezes não imporem divisas entre realidade e ficção:

Quem nos conta todas as histórias é Clarice Lispector que se conta através delas. (1992, p.120)

Essas leituras podem ser justificadas pelo seguinte: Clarice fazia uso de fatos de seu cotidiano para construir os seus textos e, ao fazer isso, deixou brechas, deu motivos para que quem a estudasse entrevisse realidade em meio à ficção. Todavia, atitudes como essas não se restringem a Clarice Lispector e seus estudiosos. Quantos não foram os críticos que viram Goethe na sua personagem Wether e quantos outros até hoje sustentam que o narrador-personagem de “Em busca do tempo perdido” é o próprio Marcel Proust?

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[...] o fantasma de Clarice [...] culpa-se pela falta inconfessável. O fantasma da mãe morta-viva, molusco viscoso e rastejante. [...] A filha impedida de ser, mulher em estado latente, mata simbolicamente a mãe de corpo molenga [...] a mãe, sob a forma de uma barata, é esmagada contra a porta de um armário pela narradora embriagada pelo desejo de matar. (p. 43-46)

Percebemos, nesse recorte, uma busca de Claire por uma motivação, advinda da vida pessoal de Clarice, para a criação da personagem G. H. e sua atitude de esmagar uma barata contra a porta de um armário.

Lícia Manzo (1997), outra crítica do trabalho de Clarice, faz a seguinte análise do livro Perto do Coração Selvagem:

Espécie de biografia de um futuro já traçado, Perto do Coração Selvagem

antecipou, num certo modo, a consumação de um casamento descompassado e impossível, e no qual, muitas vezes, Clarice e seu marido assumiram os papéis dos personagens por ela criados nesse seu primeiro romance. (p. 20)

Nessa leitura do livro Perto do Coração Selvagem, de Lícia Manzo, novamente vemos uma busca por encontrar na obra reflexos da vida íntima da autora.

Não queremos afirmar aqui que não nos é possível divisar aspectos da vida do autor na sua obra. Muito pelo contrário. Todo escritor, no processo de criação de um universo literário próprio, necessita de material para construí-lo, e Clarice “joga” com o material biográfico dentro de sua obra para construir sua ficção, e o faz conscientemente, como quando, em seu livro Um sopro de vida, a sua personagem-escritora, Ângela Pralini, se diz autora de um livro de Clarice, A Cidade Sitiada.

Porém, o posicionamento por nós assumido diante do texto literário, e que em momento algum invalida ou visa invalidar essas outras leituras, não nos permite afirmar que o objetivo de um autor, que faz uso de palavras, matéria-prima básica de seu trabalho, que nos remetem a sua vida real, é o de contar a sua vida, ou até mesmo de antevê-la e expressá-la nas linhas de seu trabalho.

O crítico Carlos Mendes de Sousa, em seu ensaio A revelação do nome (2004), que desenvolve um estudo sobre a presença, direta ou indireta, do nome de Clarice Lispector dentro da obra da autora, ao falar do movimento biográfico dentro dos estudos claricianos, tece as seguintes considerações:

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mergulho que não deixa intervalo e os torna a própria escrita. A literatura é desencadeada num processo em que a vida é compartícipe geradora de um território entre territórios. A intensidade da entrega pressupõe a inclusão da figura do eu (o trabalho sobre si mesmo) no processo de pesquisa que é a escrita. Essa mesma idéia foi veiculada na conferência sobre a literatura de vanguarda que Clarice iria repetidamente pronunciar em vários sítios: “É maravilhosamente difícil escrever em língua que ainda borbulha, que precisa mais do presente do que mesmo de uma tradição. Em língua que, para ser trabalhada, exige que o escritor se trabalhe a si próprio como pessoa”. (p.143)

Observamos nesse trecho que a Carlos Mendes de Souza, de uma certa forma, não agrada esse movimento que coloca a literatura como um reflexo da vida, principalmente da vida íntima do autor, mas reconhece que em Clarice há uma atitude de entrega, de “mergulho” nessa escrita, vivida de forma tão intensa, que faz da autora a própria escrita.

Entendemos que o artista, para criar algo vivo, necessita desse material, que é a vida. Assim, se buscarmos na vida do autor respostas para perguntas decorrentes de seus trabalhos, nós as encontraremos, pois o processo mimético é inerente à obra de arte. Entretanto, ao fazer uso de elementos de seu cotidiano, o artista os transforma em outra coisa, que passa a estabelecer relações com um universo outro que não o real. O escritor, por exemplo, ao descrever uma ação que poderíamos divisar em nosso dia-a-dia, transforma-a em linguagem que nem sempre nos é verossímil. Essa linguagem, ao ser criada, está ligada ao universo literário, e as ações, por ela descrita, abandonam o plano da realidade e passam a existir, somente, no plano da ficção, mesmo que as mesmas nos remetam, de alguma forma, a ações reais.

Maingueneau (2001), ao desenvolver análises discursivas e filosóficas sobre o texto literário, faz alusão a essa relação quando diz que:

A negociação bio/gráfica proíbe, portanto, de se confiar numa concepção simples das relações entre “a vida” e “a obra”, a de um indivíduo que faria experiências que teria depois o poder de exprimir pela escrita. A vida não está na obra, nem a obra na vida, e contudo elas se envolvem reciprocamente. (p.61)

Neste ponto concordamos com Maingueneau. Reconhecer que essas duas “realidades” não se encontram uma dentro da outra e que mesmo assim há um envolvimento entre ambas, nos parece passível de aceitação.

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permite reconhecer na obra, como demonstraremos, os mitos de Narciso, do Criador e da Criação, além de ser um dos índices, dentro a obra, que nos permitem divisar, em H.E., as estações da Via Sacra.

Como sabemos, Clarice nasceu na Ucrânia em 10/12/1920 (1925?) (há, aqui, um jogo de Clarice que mentia o ano de seu nascimento, 1920, dizendo, em entrevistas que havia nascido em 1925). Trazida para Alagoas, Brasil, pelos pais, judeus, quando tinha dois meses, foi morar, logo depois, em Recife, onde passou sua infância. Órfã de mãe, que morreu algum tempo após seu nascimento, viveu com seu pai e com a tia.

Em 1937 muda-se com o pai e as irmãs para o bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, onde cursa Direito. Naturaliza-se brasileira em 1943, casa-se com um colega de faculdade, o diplomata Mauri Gurgel Valente. A partir de 1944 acompanha o marido em missões diplomáticas pela Europa e em 1959, após separar-se, retorna definitivamente para o Rio de Janeiro.

Podemos associar Clarice com sua personagem Macabéa devido ao fato de as duas serem órfãs (Clarice de mãe e Macabéa de pai e mãe), terem vivido a infância no nordeste com a tia, terem vindo para o Rio de Janeiro no final da adolescência, serem datilógrafas e mulheres.

Essas semelhanças permitem que muitos teóricos e críticos de Clarice encontrem-na em meio à sua obra. Como exemplo, recortamos trechos dos respectivos livros de Claire Varin e Lícia Manzo:

“A hora da estrela” é a história da vida de uma jovem órfã que vai trabalhar no “inacreditável” Rio de Janeiro. Redigido durante dois anos e meio, o livro fez sofrer a escritora, pois devia extrair de seu passado doloroso o Nordeste de sua infância. Educada em Recife, ao norte de Alagoas de onde vem Macabéa, é só aos doze anos que Clarice, órfã de mãe, se instala no Rio com sua família. Perde seu pai aos dezenove anos, idade de Macabéa. (2002, p.168–169)

Neste ponto, Claire faz uso de dados biográficos da autora, como o fato dela ter sido criada no Nordeste e, após ter ficado órfã, ter vindo morar no Rio de Janeiro, para associá-la à figura de Macabéa. Lícia Manzo, diferentemente, vê na morte da personagem uma “preparação” de Clarice para a sua própria morte, que se daria pouco tempo depois do lançamento de H.E.:

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Quanto à identificação da autora na construção do autor-narrador-personagem de H.E., um dos vários motivos que levam os críticos a realizá-la é a forma como o próprio texto o faz quando, na incomum “DEDICATÓRIA DO AUTOR”, podemos ler a seguinte advertência: “(Na verdade Clarice Lispector)”.

Todavia, logo após, essa voz que “fala” identifica-se como “homem” e em nada se diferencia da voz discursiva de Rodrigo S. M., possibilitando, assim, leituras que vêem em Rodrigo S. M. a própria escritora.

Lícia Manzo (2001) questiona-se sobre os motivos que levam a autora a “esconder-se por detrás de Rodrigo” (p.214), dizendo que:

Rodrigo S. M. é o nome do autor-narrador de A Hora da Estrela. Mas, se as idéias e as experiências de seu personagem-escritor parecem ser exatamente as suas, por que Clarice opta mais uma vez por não falar diretamente a seus leitores? [...] A opção de esconder-se por detrás de Rodrigo serviria mais uma vez a seu receio de caracterizar seus escritos como confessionais ou autobiográficos? De qualquer modo, na apresentação de A Hora da Estrela ela adverte: “Dedicatória do autor (na verdade Clarice Lispector)”. (p.214)

Outros fatos são também aludidos por Lícia Manzo para justificar sua leitura, como o relato de Olga Borelli, no Suplemento Literário de Minas Gerais (19 de dezembro de 1997, p.08), no qual a mesma afirma que o Olímpico “nasceu numa ida à feira de São Cristóvão”, feira típica de migrantes nordestinos no Rio de Janeiro, o que se reflete na fala de Rodrigo S. M. quando este diz:

Se sei quase tudo de Macabéa é que já peguei uma vez de relance o olhar de uma nordestina amarelada. Esse relance me deu ela de corpo inteiro. Quanto ao paraibano, na certa devo ter-lhe fotografado mentalmente a cara — e quando se presta atenção espontânea e virgem de imposições, quando se presta atenção a cara diz tudo. (p.57)

Assim, Olimpico e Macabéa teriam a sua origem num mesmo lugar. O que dizer então da cartomante e da declaração que Clarice dá a Júlio Lerner (1977), falando do fato que aconteceu em sua vida e que a motivou a criar a personagem madama Carlota e os acontecimentos que a envolvem?

Não podemos deixar de atentar para o fato de Rodrigo S. M. e Clarice Lispector, dentre outras coisas, serem escritores, pertencerem à classe média e, quando crianças, terem se criado no nordeste, dados estes motivadores de leituras biográficas de H.E..

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pergunta que é recorrente nos livros de Clarice Lispector: essa autora que se faz presente em suas obras tem alguma relação com a pessoa real Clarice Lispector?

Michel Foucault, em uma comunicação apresentada à Société Française de Philosophie, na tarde de 22 de Fevereiro de 1969, diz que o nome do autor é diferente do

nome próprio:

O nome próprio e o nome de autor encontram-se situados entre polos da descrição e da designação: têm seguramente alguma ligação com o que nomeiam, mas nem totalmente à maneira da designação, nem totalmente à maneira da descrição: ligação específica. No entanto — e daqui derivam as dificuldades particulares do nome de autor —, a ligação do nome próprio com o indivíduo nomeado e a ligação do nome de autor com o que nomeia, não são isomórficas e não funcionam da mesma maneira. (1992, p.43)

Assim, temos uma diferença entre Clarice Lispector, nome próprio que identifica um indivíduo “real” e Clarice Lispector, nome de “autor”, pois o mesmo denomina certo número de textos, aos quais fica preso, e não uma pessoa apenas. Vejamos como Foucault destaca essa diferença do nome de autor dizendo que:

[...] ele exerce relativamente aos discursos um certo papel: assegura uma função classificativa; um tal nome permite reagrupar um certo número de textos, delimitá-los, selecioná-delimitá-los, opô-los a outros textos. Além disso, o nome de autor faz com que os textos se relacionem entre si [...] Em suma, o nome de autor serve para caracterizar um certo modo de ser do discurso. (p.45)

Michel Foucault ainda complementa, afirmando que:

[...] o nome de autor não transita, como o nome próprio, do interior de um discurso para o indivíduo real e exterior que o produziu, mas que, de algum modo, bordeja os textos, recortando-os, delimitando-os, tornando-lhes manifesto o seu modo de ser ou, pelo menos, caracterizando-lhe. Ele manifesta a instauração de um certo conjunto de discursos e refere-se ao estatuto desses discursos no interior de uma sociedade e de uma cultura. (p.46)

Nesse trecho é possível divisar a distinção entre pessoa “real” e figura autoral. A figura do autor é mitificada pelos leitores que, por meio dos textos desse autor, buscam reconstruir seu pensamento, seu modo de agir, sua vida, etc. Ainda nos reportamos a Foucault quando o mesmo diz que:

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admitimos ou as exclusões que efectuamos. (p.51)

Temos aqui, nessa citação, o reconhecimento da ação dos leitores (nós) na construção do autor. Assim, o que pensamos sobre o autor, na maioria das vezes, não é a verdade, mas uma representação de sua figura. O que fazemos é sacralizar e mitificar a figura autoral.

É importante frisarmos que Foucault trabalha o conceito de autoria, revelando-o como uma construção própria da modernidade, uma invenção moderna, burguesa e vinculada ao conceito de indivíduo, com sua extensão, em Estética, para a idéia de originalidade como pautado pelo inédito.

Como em nosso trabalho reconheceremos, na figura do narrador-escritor Rodrigo S. M. o arquétipo do criador e a figura autoral Clarice Lispector, é válido dizer que esse arquétipo ou substrato mítico, que tem relações com a literatura clássica e com um conceito outro de autoria, é retomado na obra por meio do deslocamento, procedimento que discutiremos posteriormente, e que subverte esse substrato, deslocando-o de um lugar “sagrado” (uma escrita que tem por base a inspiração divina — a palavra de Deus — e tudo que é recorrente, cíclico) para outro “profano” (criação humana, individual, inédita — a obra de arte). É o deslocamento que valida, em nosso trabalho, o uso da teoria autoral de Foucault. Não “perdendo de vista” esse posicionamento, vejamos como outro teórico aborda a mesma questão.

A. Alvarez (2006), no primeiro parágrafo do prefácio de seu livro, ao esclarecer qual será seu objeto de estudo, afirma que:

Meu tema é o escrever imaginativo e como lê-lo: primeiro, como um escritor desenvolve uma voz própria e uma presença na página; a seguir, como o leitor aprende a escutar essa voz e a reagir a ela, e, finalmente, como a verdadeira voz e a personalidade pública às vezes entram em choque, se confundem e se contradizem. (p.09)

Nesse seu livro, intitulado A voz do escritor, Alvarez se detém sobre a voz que enuncia nos textos literários e nos mostra como essa voz insere a figura autoral nas páginas do livro. Ele entrevê, nessa voz, a essência da literatura, ao dizer que:

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aqui. O principal é que essa voz é diferente de qualquer outra que já se tenha escutado, e ela está falando diretamente com você que lê, comungando com você em particular, bem no seu ouvido, e no seu jeito todo peculiar. Pode estar falando com você a partir de séculos atrás ou como se estivesse ali, do outro lado da sala – nada mais atual e próximo, aqui e agora. Os detalhes históricos são secundários; o que importa mesmo é que você a escuta — uma presença inegável na sua cabeça, e mesmo assim realmente viva, não importando há quanto tempo essas palavras tenham sido pronunciadas. (p.17-18)

O que nos importa, nesta citação, não é a apresentação dessa voz como essência da literatura, mas o reconhecimento de sua presença, uma espécie de presença autoral, nos textos literários. Essa “voz” fala diretamente ao leitor e, algumas vezes evidencia essa ação, como quando Rodrigo S. M. se dirige a um interlocutor identificado no pronome vós:

Trata-se de livro inacabado porque lhe falta a resposta. Resposta esta que espero que alguém no mundo ma dê. Vós? (p.10)

Acima de tudo, essa voz, como diria Alvares, é “viva”, independente de quem a criou e do fato dele estar vivo ou não.

Esse crítico ainda fala do culto, instituído pela mídia, à personalidade e das conseqüências desse culto voltado à literatura e ao escritor, dizendo que:

[...] o mito do artista e o culto da personalidade se tornaram indistinguíveis quando foram assumidos pela mídia. Tendências da moda nas artes podem ser uma espécie de notícia, mas a vida escandalosa dos artistas dá manchetes muito melhores. (p.141)

Vemos, nessas palavras, o reconhecimento, por parte de Alvarez, da atitude da mídia em dar maior enfoque à vida do artista no lugar de destacar a sua obra. São atitudes como esta que induzem, muitas vezes, o leitor a se aproximar do artista de tal forma a ponto de mitificá-lo e de distanciar esse mesmo leitor de sua obra.

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real encena a existência de uma outra, espelhada na ficção, que nada mais é que um jogo de encenação. Assim ao reconhecermos a “representação” da figura de Clarice em H.E. como elemento construtor de sentido, que nos permite reconhecer a presença do mito em meio à narrativa, assumimos como posicionamento teórico para tratar desse procedimento os estudos de Foucault e Alvarez.

Um crítico que desenvolve uma leitura biográfica e literária da obra de Clarice fazendo uso de uma abordagem psicológica e que reconhece, tanto na vida quanto no texto, a presença marcante da cultura judaico-cristã e de seus textos religiosos é Dany Al-Behy Kanaan (2003).

Em seu trabalho, ele associa fatos da vida de Clarice e passagens dos livros da autora à histórias sagradas dos judeus e cristãos. Seu trabalho é-nos importante pois, como demonstraremos no capítulo seguinte, o que ele entende por religião, nós, pela abordagem aqui adotada, entendemos como mitologia. Assim, os elementos por ele apontados são alguns dos quais estamos buscando no tecido textual.

Um exemplo do tipo de abordagem aplicada por ele sobre a obra é quando reconhece, tanto na vida da autora quanto na narrativa de H. E., a existência de um paralelo entre ambas as “histórias” e a narrativa bíblica do êxodo dos judeus em busca da terra prometida.

Os pais de Clarice eram judeus ucranianos que vieram para o Nordeste brasileiro e depois para o Rio de Janeiro em busca de melhores condições de vida. Macabéa, apesar de não saber porque, é uma nordestina que, junto com a tia, veio parar no Rio de Janeiro, sudeste brasileiro e caminho trilhado por muitos nordestinos em busca de emprego e sobrevivência.

Kanaan, além de apontar para esses fatos, ainda associa ao arquétipo da “terra prometida” à “escritura clariceana”, vendo, tanto em um quanto no outro, tarefas ainda a se realizarem. Mais a frente, em nossa análise, retomaremos e aprofundaremos a leitura desse crítico que será de suma importância para nossas considerações.

Yudith Rosenbaum (2002), assim como Kanaan, utiliza a abordagem psicológica para estudar o texto clariciano e, em seu trabalho, reserva um espaço para falar da relação entre Macabéa e a história bíblica dos Macabeus:

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O estudo de Rosenbaum, somado ao estudo de Kanaan, no quarto capítulo de nosso trabalho, em que trataremos da relação entre H.E. e o segundo livro dos Macabeus, serão de grande valia, pois fornecem leituras que nos auxiliam na construção de nossa análise.

Um estudioso do texto clariciano que não podemos deixar de citar é Benedito Nunes (1995). Em O drama da linguagem, o crítico insere em seu trabalho filosófico um capítulo dedicado a H.E., identificando no livro o que chama de “jogo de identidade”, que consiste na suspensão da:

[...] máscara pública de ficcionista ao identificar-se com S. M. — Na verdade Clarice Lispector — e por intermédio dele com a própria nordestina, Macabéa — a quem se acha colado o autor interposto —, Clarice Lispector faz-se igualmente personagem. (p.164)

Benedito Nunes, em sua abordagem, também reconhece um espelhamento entre autor, narrador e personagem e atenta para a sobreposição de enredos que acontece na obra e que acaba por gerar três níveis fabulativos: a história da nordestina; a história do narrador autor; a história da construção da própria narrativa. Esse último nível desencadeia um procedimento que Arnaldo Franco Júnior (2000) chama de “viés metalingüístico de função irônica”, por problematizar, de certa forma, os elementos da narrativa.

Benedito Nunes não faz referência à presença mitológica em H. E., mas seu estudo aponta para procedimentos estéticos como o jogo de identificação entre o que podemos chamar de “criador” (S. M. e Clarice Lispector) e “criatura” (Macabéa); a metalinguagem, que nos permite entrever referências a determinados mitos.

Franco Júnior, em seu estudo de H.E. que enfoca o Kitch presente no texto, ainda fala em arquétipos e aproxima as personagens da história às personagens tipo do melodrama e dos contos de fadas. Apesar de sua abordagem não ter nenhuma relação com a teoria arquetípica de Northrop Frye, a identificação das personagens como arquétipos e a análise dos mesmos contribui, mesmo que indiretamente, para a nossa análise.

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texto. O sino é um elemento importante por fazer parte de rituais sagrados que evocam histórias mitológicas e, no momento oportuno, recorreremos a Vieira para estudá-lo melhor.

Outra crítica clariceana que se faz necessária em nosso trabalho é Olga de Sá (2000) que, ao realizar uma análise estrutural de diversos livros de Lispector, além de chamar atenção para a metalinguagem e para as semelhanças existentes entre autor, narrador e personagem, associa o nome abreviado da nordestina (Maca) à palavra maçã e ao mito do pecado original. No quarto capítulo, quando voltarmos nossa atenção ao mito da criação, faremos uso desse estudo.

Por fim, a fortuna crítica de Clarice também conta com abordagens intertextuais, como a de Ricardo Iannance (2001), que identificam referências diretas ou indiretas a outros textos ou narrativas, comparando-as, analisando-as. Um dos livros de Clarice estudados por Iannance é H.E., em que se aborda a intertextualidade da obra com o livro Humilhados e ofendidos, de Dostoievski. Chega mesmo a apontar outras intertextualidades presentes na obra como referências a jornais, cantigas de roda, a livros como Alice no país das maravilhas e Os sertões, mas não as desenvolve. A única referência a algo “sagrado” apontada por ele é quando destaca uma fala de Rodrigo S. M. que se aproxima de uma oração, possibilitando uma identificação de Macabéa com a personagem bíblica Maria, mãe de Cristo.

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2. MITOLOGIA E LITERATURA

2.1. PREMISSAS

Antes de abordarmos o texto clariciano pelo viés mitológico, é importante definirmos o que seja mito. Evocamos um teórico que discorreu sobre o assunto, Mircea Eliade (2002), e que, em suas próprias palavras, diz “tentar” definí-lo:

[...] o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a

ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os personagens dos mitos são Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso dos “primórdios”. Os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a “sobrenaturalidade”) de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do “sobrenatural”) no Mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que é hoje. E mais: é em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que o homem é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural. (p.11)

Em resumo, temos o mito como uma história sagrada que nos revela como as coisas surgiram, remontando ao princípio de tudo. Northrop Frye, em Fábulas de Identidade (2000), também se refere ao mito, dizendo que o mesmo:

É uma história na qual alguns dos personagens principais são deuses ou outros seres mais poderosos que a humanidade. Raramente ela está situada na história: sua ação acontece num mundo acima ou anterior ao tempo comum, in illo temporae, na expressão de Mircea Eliade. Por isso, assim como o conto popular, ela é um padrão de história abstrato. Os personagens podem fazer o que querem, o que significa o que o narrador quer: não há necessidade de ser plausível ou lógico em motivação. (p.38)

O mito, então, para Frye, assim como a literatura em suas ocorrências primordiais, não possui relação intrínseca com os registros oficiais da realidade ou da história, e, da mesma maneira como ocorre na literatura, suas ações se dão em um mundo outro que não o real. Northrop Frye completa, afirmando que:

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Aqui é apontado como característica inerente ao mito um tipo especial de “seriedade”, a crença em sua ocorrência ou em um significado “excepcional”, transmitido por esses “relatos”, que explicariam “alguns aspectos da vida”. Da mesma maneira, Eliade faz menção a essa realidade do mito:

[...] o mito é considerado uma história sagrada e, portanto, uma “história verdadeira”, porque sempre se refere a realidades. O mito cosmogônico é “verdadeiro” porque a existência do Mundo aí está para prová-lo; o mito da origem da morte é igualmente “verdadeiro” porque é provado pela mortalidade do homem, e assim por diante. (p.12)

Podemos então considerar o mito como sendo histórias sagradas que explicam a origem das coisas, que aconteceram em um tempo remoto e indefinível, que são, ou foram tidas como verdadeiras por uma comunidade ou povo. Partindo dessa definição, nos permitimos falar em mitologia cristã, ao observarmos as histórias presentes nas religiões cristãs, como o fez Frye, ou em mitologia judaico-cristã, pois as duas se entrecruzam e, tal como a mitologia greco-romana, são reconstruídas em H.E.. Todavia, antes de abordarmos esse procedimento construtivo da obra, é imprescindível compreender qual a importância do mito para a literatura e observar como o discurso em H.E. se desenvolve permitindo que se recupere, em sua estrutura, de alguma maneira, esses mitos.

Retomando Northrop Frye, por meio de sua teoria arquetípica, é importante ressaltarmos o porquê da mitologia e do romance terem relações tão estreitas. Em Anatomia da crítica (1973), ao tratar dessa relação, Frye comenta o seguinte:

Segue-se que o mundo mitológico, as histórias sobre deuses nas quais as personagens têm a maior força de ação possível, é o mais abstrato e convencionalizado de todos os modos literários [...] Por isso os princípios estruturais da literatura relacionam-se tão estreitamente com a mitologia [...] (p.136)

Para Frye, os mitos podem ser considerados as primeiras histórias literárias, pois os mesmos, após perderem todo o seu sentido sagrado e deixarem de ser considerados verdades, ainda se mantêm “vivos” pela estrutura composicional, que se mantém recorrente nos textos literários. Em Fábulas de Identidade (2000), Northrop Frye chama a atenção para o fato de que:

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Oferece-lhe um referencial pronto, respeitável pela antiguidade, que Oferece-lhe permite devotar todas as energias à elaboração de sua forma. (p.38-39)

Northrop Frye identifica, nos mitos, ações que só se realizam em histórias, assim como muitas vezes ocorre na literatura, criando um universo ficcional, e isso oferece ao escritor um “modelo” que lhe fornece uma “base” para a construção de sua própria ficção. Algumas páginas depois retoma o assunto, afirmando que:

O mito, portanto, fornece os principais contornos e a circunferência de um universo verbal que é mais tarde também ocupado pela literatura. A literatura é mais flexível do que o mito e preenche esse universo de modo mais completo: um poeta ou romancista pode trabalhar em áreas da vida humana aparentemente distantes dos deuses vagos e dos resumos narrativos gigantescos da mitologia. Mas em todas as culturas, a mitologia se funde imperceptivelmente na e com a literatura. (2000, p.41)

O escritor, tendo os contos populares ou os mitos como referenciais, se permite lançar a um labor construtivo mais intenso, o que o leva a um processo criativo mais complexo. Todavia esses referenciais são abordados de formas diferentes ao longo dos séculos por diferentes escritores.

Chevalier (2006), em seu Dicionário de símbolos, na introdução, nos fornece uma definição de mito também baseada em Eliade. Esse teórico dos símbolos vê nesses elementos a estrutura formadora de arquétipos e mitos. Estes últimos se apresentariam como:

[...] transposições dramatúrgicas desses arquétipos, esquemas e símbolos ou como composições de conjunto, epopéias, narrativas, gêneses, cosmogonias, teogonias, gigantomaquias, que já começam a deixar entrever um processo de racionalização. (p.19)

Se para Chevalier “o símbolo é [...] muito mais do que um simples signo ou sinal”, pois “transcende o significado e depende da interpretação que, por sua vez, depende de certa predisposição” (p.18), e o mesmo ocorre com o mito, ao estudarmos um texto que se relaciona com os mitos, temos uma intensificação do material gerador de leituras plurisignificativas. Ao aproximar a literatura do mito, o autor amplia a sua rede polissêmica, pois ata a leitura à interpretação do leitor.

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serem a origem de tudo o que foi produzido posteriormente, ainda são, hoje, a base que alimenta e sustenta as atuais:

Assim, no desenho da árvore, o modo mítico, essencialmente religioso, e o seu desdobramento em lendas e contos populares remontam à parte encoberta de suas raízes, quando se vivia num contexto religioso, antes de emergir o conceito de arte. (p.26)

Clarice faz uso dessa origem e fonte com o intuito não só de reafirmá-la, mas de colocá-la em discussão e o faz utilizando-se de elementos ritualísticos que referem-se aos mitos, ao mesmo tempo que os reiteram e os reconstroem.

Podemos ler esse compromisso já nas primeiras linhas da dedicatória do autor, na qual Rodrigo/Clarice, fazendo uso de um rito comum aos poetas de antigamente de evocar as musas inspiradoras, entes mágicos, no princípio de seus textos, rogando-lhes inspiração, afirma:

Dedico-me sobretudo aos gnomos, anões, sílfides e ninfas que me habitam a vida. (p.09)

A continuação do ritual pode ser divisada ao longo de toda a obra. O uso dos pronomes vós — “Sei de muita coisa que não vi. E vós também.” (p.10) — e nós — “É uma história em tecnicolor para ter algum luxo, por Deus, que eu também preciso. Amém para nós todos.” (p.10) — remete-nos ao discurso bíblico, sagrado e litúrgico, discurso próprio dos rituais. Mas o ritual ou a sua paródia, pelo componente irônico, se instala no início da narrativa, rememorando o mito cosmogônico:

Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou. (p.11)

Mas por que a presença do ritual como procedimento estético está presente ao longo do livro? Uma possível explicação é dada por Frye (2000), quando observa que:

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grande parte ocultado dos próprios participantes. (p.21)

Desta forma temos a narrativa voltando-se à sua origem, fazendo-se um ritual ao qual o leitor é convidado a participar e este, como participante, tem o seu significado ocultado. Mircea Eliade (2002), ao delinear a função do mito, nos diz que:

[...] a principal função do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas: tanto a alimentação ou o casamento, quanto o trabalho, a educação, a arte ou a sabedoria. (p.13)

Ele reconhece a própria arte como um rito. No caso de H.E., podemos dizer que se trata de um rito egocêntrico, pois o mesmo se volta para sua própria origem e estrutura, num movimento de auto-afirmação, a “primeira vista”, mas que se revela autocrítico e reflexivo posteriormente, como veremos. Ao se referir à origem primeira das coisas, o “sim”, ao trazer para o seu discurso, dentre outros, o mito da criação, o narrador-escritor, em um primeiro momento, parece buscar esse “modelo exemplar” no qual se pauta para realizar o seu processo individual de criação.

Outra pergunta que se faz presente é: Qual o efeito desse ritual que resgata o mito em H.E.? Novamente buscamos em Mito e Realidade, de Mircea Eliade, uma possível resposta às nossas indagações:

[...] recitando ou celebrando o mito da origem, o indivíduo deixa-se impregnar pela atmosfera sagrada na qual se desenrolam esses eventos miraculosos. O tempo mítico das origens é um tempo “forte”, porque foi transfigurado pela presença ativa e criadora de Entes Sobrenaturais. Ao recitar os mitos, reintegra-se àquele tempo fabuloso e a pessoa torna-se conseqüentemente, “contemporânea”, de certo modo, dos eventos evocados, compartilha da presença dos Deuses ou dos Heróis. Numa fórmula sumária, poderíamos dizer que, ao “viver” os mitos, sai-se do tempo profano, cronológico, ingressando num tempo qualitativamente diferente, um tempo “sagrado”, ao mesmo tempo primordial e indefinidamente recuperável. (p.21)

Podemos dizer então que, ao fazer referências a mitos ou utilizar-se de suas estruturas para a construção de seu enredo, H.E. se aproxima do mito, primeiro deixando-se “impregnar pela atmosfera sagrada” em que ocorre esses fatos míticos, para, logo depois, subvertê-la e dessacralizá-la por meio de recursos estéticos como a paródia, a ironia, o cômico. Todavia, como verificaremos, ao desconstruir o mito por meio de sua estrutura, a obra em si problematiza-se, autodesconstruindo-se.

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momentos, Rodrigo fala:

Devo dizer que essa moça não tem consciência de mim, se tivesse teria para quem rezar e seria a salvação. (p.33)

Neste trecho podemos divisar S. M. se associando a um ser divino, ao qual são dirigidas orações para se obter dele um certo “auxílio”, ajuda esta que Macabéa não recebe por não saber de sua existência.

Podemos, ainda, observar o narrador-escritor de H.E., ao falar de sua escrita, reconhecer que a história que escreverá não é uma história atual:

Proponho-me a que não seja complexo o que escreverei, embora obrigado a usar as palavras que vos sustentam. [...] Relato antigo, este, pois não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de originalidade. (p.13)

Por relato antigo, é-nos possível subentender nas palavras de Rodrigo uma relação, talvez temática e/ou estrutural, mais “intensa” entre seu texto e as histórias mitológicas que fazem parte da cultura humana e que possuem raízes “profundas” na história.

A obra em análise também cria relações com o mito, pois em sua história, recorrentemente, há referências à ação de entidades “sobrenaturais”:

Às vezes a graça a pegava em pleno escritório. Então ela ia ao banheiro para ficar sozinha. De pé e sorrindo até passar (parece-me que esse Deus era muito misericordioso com ela: dava-lhe o que lhe tirava). (p.63)

Por diversas vezes a figura divina aparece ou é referida na trama da narrativa. Também nela é narrada a origem de alguma coisa — em um dos enredos, a origem da personagem Macabéa:

De uma coisa tenho certeza: essa narrativa mexerá com uma coisa delicada: a criação de uma pessoa inteira que na certa está tão viva quanto eu. (p.19)

Em outro, a criação da própria narrativa:

Proponho-me a que não seja complexo o que escreverei, embora obrigado a usar as palavras que vos sustentam. A história — determino com falso livre-arbítrio — vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. (p.12-13)

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revela-nos o fato de a ação narrada ter acontecido (ou acontece) em um tempo indefinível:

Como que estou escrevendo na hora mesma em que sou lido. (p.12)

Uma indefinição que ao mesmo tempo alarga e comprime as fronteiras entre passado, presente e futuro:

Quero acrescentar, à guisa de informações sobre a jovem e sobre mim, que vivemos exclusivamente no presente pois sempre e eternamente é o dia de hoje e o dia de amanhã será um hoje, a eternidade é o estado das coisas neste momento. (p.18)

Nesse trecho entrevemos S. M. “abolindo” o tempo de sua narrativa, fazendo dela, ou pretendendo-a, atemporal, qualidade esta pertencente aos mitos.

H.E. é uma história que o narrador-escritor Rodrigo S. M. afirma verdadeira dentro de um jogo ficcional:

[...] é claro que a história é verdadeira embora inventada. (p.12)

Em H.E., ao se fazer referência aos mitos, a obra cria uma “ponte” com aquele tempo fabuloso e a narrativa “torna-se conseqüentemente, 'contemporânea', de certo modo, aos eventos evocados, compartilha da presença dos Deuses ou dos Heróis” (ELIADE, p.21). Todavia essa “ponte” não é fixa e nem ao menos segura. O trânsito de um lado para o outro, dessa ponte, é complicado, o que faz com que elementos de ambos os lados sejam “atirados” em um mar de questionamentos, impedindo uma afirmação (ou auto-afirmação) seja do mito ou da própria literatura que se relaciona com os mitos.

Vejamos outros exemplos de como o ritual está presente na história, em momentos específicos, sempre por meio do discurso de Rodrigo S. M., e na maneira como ele se realiza.

2.2. A PRESENÇA MITOLÓGICA EM H.E.

• Enredo(s)

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[...] se conjugam, num regime de transação constante, em “A hora da estrela”. A primeira conta a vida de uma moça nordestina que o narrador, Rodrigo S. M., surpreendeu no meio da multidão [...]. A segunda história é a desse narrador interposto, Rodrigo S. M., que reflete a sua vida na da personagem, acabando por tornar-se dela inseparável, dentro da situação tensa e dramática de que participam. Mas essa situação, que os envolve, ligando o narrador a sua criatura, como resultante do enredamento pela narrativa em curso, das oscilações do ato de narrar, hesitante, digressivo, a preparar a sua matéria, a retardar o momento inevitável da fabulação, constitui uma terceira história – a história da própria narrativa. (p.161-162)

Outra crítica, Telma Maria Vieira (2004), também chama a atenção para essas três histórias em H.E.:

Temos [...] uma ficção que engloba três eixos: Rodrigo oscila entre falar de si mesmo e falar de como manusear a palavra para elaborar o texto e, ainda, contar a história de Macabéa. (p.72)

Mesmo parecendo reiterativo, vale ressaltar que Arnaldo Franco Júnior (2000) também observa essa tripartição do enredo, detectando, nesse processo, um “viés metalingüístico de função irônica” (p.109).

Para podermos divisar melhor esses “três enredos”, utilizaremos alguns trechos que servirão de exemplo. A história de Macabéa é facilmente recortada quando observamos Rodrigo posicionar-se como narrador e falar da nordestina, como vemos abaixo:

Ela que deveria ter ficado no sertão de Alagoas com vestido de chita e sem nenhuma datilografia, já que escrevia tão mal, só tinha até o terceiro ano primário. Por ser ignorante era obrigada na datilografia a copiar lentamente letra por letra – a tia é que lhe dera um curso ralo de como bater à máquina. E a moça ganhara uma dignidade: era enfim datilógrafa. Embora, ao que parece, não aprovasse na linguagem duas consoantes juntas e copiava a letra linda e redonda do amado chefe a palavra ‘designar’ de modo como em língua falada diria: “desiguinar”. (p.15)

Dessa maneira, comentando e intervindo na história, como narrador e criador, Rodrigo vai contando e construindo o primeiro enredo, o de Macabéa, sua personagem/criação. Porém, logo após fazer esse breve relato de aspectos da vida de sua personagem, S. M. “abandona-a” e volta a falar de si mesmo, contando um pouco de sua vida (atitude recorrente desde o início do livro), o que faz emergir uma segunda história, a sua história:

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Ainda como exemplo dessa segunda história, em outros momentos, o narrador relata detalhes de sua vida, como acontece nos dois exemplos a seguir:

Sem falar que eu em menino me criei no Nordeste (p. 12)

Quando eu era menino li a história de um velho que estava com medo de atravessar o rio [...] (p. 21)

Chega, até mesmo a nos contar um problema que teve com a sua cozinheira:

O que segue é apenas uma tentativa de reproduzir três páginas que escrevi e que a minha cozinheira, vendo-as soltas, jogou no lixo para o meu desespero – que os mortos me ajudem a suportar o quase insuportável, já que de nada valem os vivos. (p.42)

Rodrigo S. M. faz-se personagem de seu livro e o afirma dizendo que “A história [...] vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro” (p.12-13).

Há alguns momentos em que essas duas histórias se entrelaçam, con/fundindo-se:

ela se me grudou na pele qual melado pegajoso ou lama negra (p.21)

Vejo a nordestina se olhando ao espelho e – rufar de tambor – no espelho aparece meu rosto cansado e barbudo. Tanto nós nos intertrocamos. (p.22)

Enquanto na primeira história, da personagem Macabéa, observamos Rodrigo S. M. como narrador, numa atitude de afastamento crítico, na segunda história, a sua própria, ele, além de narrador, também se posiciona como personagem, aproximando-se de Macabéa e instaurando, com ela, uma relação de contradição e de complementaridade.

Por detrás desses dois enredos encontramos o enredo maior, a coluna dorsal que sustenta toda a obra e que fica condicionada às entrelinhas da trama textual, na qual o narrador-autor se esconde, iludindo-nos e despistando-nos com falas como:

Escrevo neste instante com algum prévio pudor por vos estar invadindo com tal narrativa tão exterior e explícita. (p.12)

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que seja grandioso.) Se em vez de ponto fosse seguido por reticências o título ficaria aberto a possíveis imaginações vossas, porventura até malsãs e sem piedade. (p.13)

Esses recortes mostram como Rodrigo, ao estabelecer diálogos com um possível leitor, discutindo aspectos de sua escritura, vai tecendo sorrateiramente o enredo da construção da própria narrativa, mesmo quando dá a entender (ou finge) que não tem controle sobre a sua criação:

Pergunto-me se eu deveria caminhar à frente do tempo e esboçar logo um final. Acontece porém que eu mesmo ainda não sei bem como esse isso terminará. (p.16)

Juro que nada posso fazer por ela. Afianço-vos que se eu pudesse melhoraria as coisas. (p.35)

Rodrigo S. M. colabora com a estruturação da trama da narrativa em si ao se colocar, a cada momento, dentro da obra, de uma maneira diferente, ora como observador do enredo de sua personagem, ora como agente interativo dentro desse enredo, gerando uma segunda história, ora como um criador consciente e crítico do processo criativo desses enredos, narrando todo o processo de escrita, do início ao fim, dando origem à terceira história.

Escrevo sobre o mínimo parco enfeitando-o com púrpura, jóias e esplendor. É assim que se escreve? Não, não é acumulando e sim desnudando. Mas tenho medo da nudez, pois ela é a palavra final. (p. 82)

Nessa terceira história, a história do livro, divisamos o nosso narrador não mais somente narrador, como na história de Macabéa, nem narrador e personagem, como em sua história, mas como narrador-escritor-personagem da história da própria narrativa, transformando-se em uma entidade outra, o Autor.

Acreditamos que muito se perde quando esses três planos, que se completam, não são lidos e analisados, dando-se a eles o mesmo grau de importância. Assim, em nosso trabalho, para uma identificação e análise mais eficaz da presença mitológica em H.E., fizemos uma separação didática dos três planos fabulativos, já destacando, na abordagem das personagens, presentes em cada enredo, as referências mitológicas existentes na construção das mesmas.

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agirmos desta forma, corremos determinados riscos, como o de perder a noção do todo da obra. Entretanto, se deixássemos de fazê-la, também poderíamos não observar algumas referências mitológicas que se apresentam na observação das partes e não do todo. Assim, a princípio, enfocaremos, dentro do todo, cada um dos três enredos, procurando minimizar essa ação ao ressaltar as pontes de ligação que existem entre eles.

Passemos, então, para a análise das três histórias com o objetivo de entender melhor esse processo.

2.2.1. A história da própria história

• A primeira cena – o enredo

Sabemos que todo livro tem início pelo seu título, que já nos fornece pistas do jogo fabulador que se desenvolverá a seguir. Alguns títulos chegam a conter em si a essência de toda a obra. O que dizer então de um livro que possui treze títulos apresentados em uma página de rosto, dos quais o segundo é escolhido para compor a capa? E se chamarmos a atenção para o fato de a assinatura de Clarice Lispector estar presente no meio desses títulos? Já com a quantidade de títulos da obra podemos prever a pluralidade de leituras e de perspectivas que podem provir do texto.

Para nós, a história de H.E. tem início não com o “sim” primeiro de Rodrigo S. M. (p.11), nem na “DEDICATÓRIA DO AUTOR”, mas na página de rosto que contém os treze títulos que prenunciam e entremeiam toda a história, num arranjo que Arnaldo Franco Júnior (2000) identifica como “puzzle”, um “joguinho de esconde-esconde em que procuramos uma figura habilmente disfarçada em meio a um espaço” (p.108). Assim como Arnaldo Franco Júnior, outros pesquisadores claricianos nos chamam a atenção para os treze títulos, dentre os quais Nitschack (2004), Rosenbaum (2002) e Nolasco (2001). Este último vê nessa assinatura um décimo quarto “subtítulo” que:

Diferentemente dos demais subtítulos, esse não aparece escrito no corpo da escritura, mas, como essa, é totalmente explicito desde sua origem, remetendo o leitor para um autor sem máscara: traços de um corpo já-escrito e já-lido em outras escrituras clariceanas vêm se dizer ali, nessa última, querendo dizer ao leitor que essas escrituras nada mais são que seus “papéis de identidade”. (p.55-56)

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não atenta para o fato de a assinatura entrar no lugar da conjunção alternativa ou, que indica dúvida ou possibilidade.

Franco Júnior faz a substituição lógica da assinatura ao enumerar os treze títulos em seu trabalho - “A CULPA É MINHA ou A HORA DA ESTRELA ou ELA QUE SE ARRANJE ou O DIREITO AO GRITO ou QUANTO AO FUTURO ou LAMENTO DE UM BLUES[...]” (p.108-109).

Acreditamos que essa substituição não é gratuita e que a assinatura, sendo a marca de identificação da autora, ao ocupar o lugar dessa conjunção, adquire suas funções indiretamente, gerando dúvida sobre a representação dessa entidade/identidade autoral chamada de Clarice Lispector. É nesse ponto que percebemos, em ordem de acontecimentos, a primeira simulação, o primeiro jogo de mascaramento que se realiza na obra. Por meio desse jogo ocorre, em H.E., a ficcionalização da figura autoral, fazendo dessa entidade uma personagem nessa terceira história.

Para falar da ficciononalização do autor em H.E., Telma Maria Vieira (2004) evidência, em sua leitura, os treze títulos da novela, dizendo que:

Outro fato insólito que assinala o início da narrativa é que o título aparece acompanhado de doze subtítulos que, como um poema visual, formam a imagem de um sino.

Considerando que uma das simbologias para o sino é estabelecer comunicação entre o céu e a terra (Cf. Chevalier, 1992, p.835) e que entre os prováveis títulos está o nome da autora, notamos um prenúncio do que será desenvolvido na obra. O sino que estabelece o contato entre os pontos extremos da existência humana (vida/morte), também assinala os extremos da criação artística (realidade/ficção). No badalar do sino, isto é, no desenvolvimento do texto é que haverá o entrelaçamento dos pólos sem que a realidade e a ficção se confundam. E nesse entrelaçamento, no

som do sino, é possível ouvir a autora tecendo a narrativa “inventada sobre a realidade” e falando sobre si. (p.71)

Para a crítica, a composição dos treze títulos é uma das “chaves” interpretativas de H.E.. Ela associa a imagem formada pela disposição dos mesmos à figura do sino que, durante o decorrer da narrativa, afirma “badalar”. Ao longo do livro os sinos não badalam, apesar de existir um desejo do narrador-escritor para que isso aconteça:

Estarei lidando com fatos como se fossem as irremediáveis pedras de que falei. Embora queira que para me animar sinos badalem enquanto adivinho a realidade. (p.17)

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títulos, o badalo desse sino que se movimenta “sem que seus bronzes lhes dessem som”:

Morta, os sinos badalavam mas sem que seus bronzes lhes dessem som. Agora entendo esta história. Ela é a iminência que há nos sinos que quase-quase badalam. (p.86)

Essa imagem produzida pelo discurso do narrador-escritor nos causa estranhamento. Como um sino pode badalar sem que se produza som? Talvez isso possa ser explicado pelo fato de existir uma dúvida inerente a esse “badalo”/conjunção que, ao gerar dúvida ou incerteza, se movimenta entre vida e morte, entre criador e criatura, entre realidade e ficção, sem fazer “ressoar” nenhuma dessas polaridades.

Chama-nos atenção, também, a quantidade de títulos (treze) que, somados à assinatura da autora, totalizam quatorze. Esse número, a princípio, nos faz recordar o número de passos/estações da Via Sacra (quatorze), o que gera uma dúvida: Existe correspondência entre os títulos e os quatorze momentos da Paixão de Cristo? Por enquanto deixaremos esta pergunta sem resposta para retomá-la e desenvolvê-la no capítulo seguinte.

Quanto a transformação do autor em personagem, além de entrevermos indícios desse processo na assinatura de Clarice Lispector, que aparece como elemento constituinte desse sino, “quebrando-o”, essa transformação, como já destacamos anteriormente, também se dá na “DEDICATÓRIA DO AUTOR”, na qual a presença autoral se declara:

(Na verdade Clarice Lispector) (p.09)

A construção da personagem Rodrigo S. M., que se diz autor de H.E., também possibilita esse processo, pois ele, em muitos aspectos, se assemelha a essa Clarice Lispector.

Benedito Nunes (1995) já destacava essa presença autoral, por meio dos questionamentos de S. M. quanto ao ato de escrever, sua finalidade e seus procedimentos, afirmando que:

Uma outra presença, que disputa com a do narrador, insinua-se nessa modalidade de fala: a presença da própria escritora, já declarada na dedicatória da obra, e cuja interferência estende-se à sua caprichosa denominação, A hora da estrela sendo apenas um dentre treze títulos diferentes que lhe podem ser atribuídos. (p.164)

Referências

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